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Responsabilidade civil dos pais por abandono afetivo em relação aos filhos menores de idade

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Agenda 04/11/2020 às 20:00

O poder de família abrange direitos e deveres que são atribuídos aos pais em relação à criança, incluindo a responsabilidade de cuidar, educar e zelar o que é atribuído tanto à figura materna quanto paterna.

1 Considerações Iniciais

O instrumento de estudo trata do instituto da Responsabilidade Civil e a possibilidade de aplicação de indenização em virtude de danos morais causados pelo abandono afetivo.

A razão desta pesquisa está presente em decorrência da grande quantidade de casos perceptíveis no contexto atual, em que um dos genitores se torna o responsável legal pela criança, suprindo-lhe todas as demandas afetivas, enquanto o outro apenas provém uma pensão alimentícia ou, em muitos casos, nem arca com essa responsabilidade.

O poder de família abrange direitos e deveres que são atribuídos aos pais em relação à criança, incluindo a responsabilidade de cuidar, educar e zelar o que é atribuído tanto à figura materna quanto paterna.

O dano moral já está caracterizado e consolidado na legislação civil brasileira, contudo, no que tange ao abandono afetivo, este está basilado no princípio legal da afetividade, uma vez que em conformidade com a doutrina contemporânea, o afeto tem valor jurídico maior que uma simples indenização, uma vez que a falta de afeto poderá violar este princípio.

A pesquisa tem como objetivo analisar as especificidades do abandono afetivo e a possibilidade de responsabilização civil dos pais, A metodologia empregada foi essencialmente qualitativa e bibliográfica, usando-se o método hipotético-dedutivo.


2 Breve estudo da responsabilidade civil

Ao tratar da Responsabilidade Civil, busca-se indenização que esteja de acordo com algum dano sofrido, portanto, a ocorrência de dano é fundamental para que haja qualquer espécie de responsabilização.

A palavra responsabilidade “[...] se origina do latim responsus, do verbo respondere, transmitindo a ideia de obrigação de responder pelas ações próprias, pelas dos outros ou pelas coisas confiadas” (BELCHIOR; BRAGA; THEMUDO, 2017, p. 110).

Quando há uma obrigação que não foi cumprida, causando algum dano, surge o dever de indenizar ou recompor o direito de outro sujeito.

Tartuce (2018, p. 46) conceitua a Responsabilidade Civil:

[...] além de ser um instituto jurídico, originário do dever de reparar o dano, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial, decorrente da violação de um dever jurídico, legal ou contratual, a responsabilidade civil representa um Livro do Direito Privado e do próprio Código Civil brasileiro.

No caso da codificação material de 2002, o tema está tratado em três dispositivos da sua Parte Geral (arts. 186, 187 e 188), de um capítulo da Parte Especial (arts. 927 a 954), além de outros dispositivos que incidem no tema, como aqueles relativos ao inadimplemento obrigacional (arts. 389 a 420).

O instituto da responsabilidade civil busca a proteção de danos causados por outra pessoa, ou seja, quando qualquer das partes de uma relação jurídica apresentar a ocorrência de dano de qualquer natureza, há uma obrigação de reparar esse prejuízo.

A configuração de um dano ocorre em virtude de uma conduta praticada em desconformidade com as normas do Direito, o que enseja a obrigação de ressarcimento devido ao não cumprimento de uma obrigação, ou violação de um direito (CORDEIRO et al., 2011).

A responsabilidade civil possui duas classificações: responsabilidade civil subjetiva e objetiva.

O que diferencia uma da outra é a existência da culpa.

A responsabilidade civil objetiva não exige a comprovação de culpa, enquanto a teoria subjetiva tem na culpa seu fundamento basilar.

Nesse sentido, Cordeiro et al. (2011, p. 59) explica que em se tratando da responsabilidade objetiva, quem causou a ação danosa responde sem a necessidade de ser comprovada a culpa, tendo em vista que essa norma se baseia na teoria do risco.

A teoria do risco alerta que “[...] o prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter, ou não, agido com intenção. Responsável é aquele que causou o dano, não importando o que ele tenha a dizer”.

Seguindo a mesma linha, Venosa (2017, p. 256) defende que a responsabilidade subjetiva tem a ideia central da culpa como um de seus pressupostos, enquanto a “responsabilidade objetiva resulta tão só do fato danoso e do nexo causal, formando a teoria do risco. Por essa teoria, surge o dever de indenizar apenas pelo fato de o sujeito exercer um tipo determinado de atividade”.

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O Código Civil traz a responsabilidade civil no artigo 927, o qual determina que aquele que em decorrência de algum ato considerado ilícito vier a causar dano, deverá repará-lo, nos termos do artigo 186 e 187, também do Código Civil.

Os pressupostos que configuram a necessidade de reparação civil são a conduta humana (ação ou omissão), culpa, dano e nexo causal.

O primeiro pressuposto a ser analisado é a conduta humana, também chamada por alguns doutrinadores de ato ilícito.

Segundo Diniz (2012, p. 56), a conduta é o ato humano “[...] comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado”.

Ou seja, o comportamento do sujeito que pratica o ato pode ser comissivo (prática de um ato que não deveria ser realizado) ou omissivo (quando o sujeito não age quando deveria).

Quanto a culpa, ela não é definida na legislação pátria.

Contudo, a regra do artigo 186, expressa que o ato ilícito será configurado caso o comportamento seja culposo.

Neste artigo, portanto, “[...] está presente a culpa lato sensu, que abrande tanto a dolo quanto a culpa em sentido estrito” (SANTOS, 2012, p. 4).

O dolo é a conduta intencional, ou seja, o agente pratica o ato consciente do resultado ou assume o risco de produzi-lo.

Por outro lado, na culpa em sentido estrito, não existe a intenção de lesar, em que pese a conduta seja voluntária, o resultado danoso não é. (SANTOS, 2012).

Em relação ao nexo de causalidade, ele constitui a “[...] relação de causa e efeito entre a conduta praticada e o resultado” (SANTOS, 2012, p. 6).

Não basta a prática de conduta ilícita ou o dano sofrido por outrem.

Deve haver uma ligação entre a conduta e o dano, ou seja, é fundamental que o dano tenha sido causado pela conduta ilícita do agente (relação de causa e efeito).

A ocorrência do dano também é um pressuposto para a configuração da responsabilidade civil.

Segundo Diniz (2012, p. 48), o dano consiste na “lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral”.

Ou seja, o dano é qualquer diminuição ou subtração de um bem jurídico, decorrente da ação ou omissão de um terceiro, que venha a causar lesão a bem jurídico.

Nesse sentido, o dano não lesiona apenas o bem ambiental legalmente tutelado (patrimonial), mas pode vir a causar danos na esfera particular do indivíduo (extrapatrimonial).

O dano pode ser visto sob o aspecto patrimonial, quando lesiona diretamente o patrimônio econômico ou extrapatrimonial (moral), quando causa prejuízo aos direitos de personalidade da vítima.

Após as considerações iniciais acerca da Responsabilidade Civil e o dever de indenizar na ocorrência do dano, a partir de agora, será analisada a possibilidade do abandono afetivo ser considerado um dano extrapatrimonial (moral) e como ocorre essa caracterização.


3 A obrigação dos pais pela afetividade

De acordo com a Constituição Federal do Brasil de 1988, existem garantias constitucionais das crianças e adolescente e do dever dos pais em garantir boas condições de vida e sobrevivência aos filhos.

O artigo 227, traz o dever dos pais em relação aos descendentes, o qual expressa:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O dever dos pais perante os filhos, vai muito além de apenas fornecer o que lhes é materialmente indispensável.

Os pais devem cuidar e zelar pela educação dos filhos, proporcionando também um ambiente favorável, livre de qualquer tipo de violência, proporcionando uma boa qualidade de vida e dignidade.

Independentemente da idade, da condição social, do grau de instrução, todos os cidadãos, desde o nascimento, devem ter uma vida digna e respeito (DILL; CALDERAN, 2011).

Contudo, além das obrigações materiais, há também obrigações afetivas, que são capazes de garantir a proteção dos filhos.

Por esta razão, em se tratando de casos em que um dos genitores ou ambos, não fornece o amparo afetivo ao filho, surge o questionamento acerca da responsabilidade de indenização quanto ao abandono afetivo.

Inicialmente conhecido como abandono afetivo parental, sofreu alterações em seu uso, passando a ser conhecido no Judiciário por abandono afetivo.

Sobre o tema Braga e Fuks (2013, p. 304-305):

Esse sintagma designa o distanciamento ou a ausência afetiva dos pais no convívio com seus filhos.

Ainda que as obrigações alimentícias sejam cumpridas, os pais deles se distanciam, por motivos tanto conscientes como inconscientes, privando-os da convivência e do cuidado afetuoso.

E, apesar de referir-se à possibilidade de o abandono advir de qualquer um dos entes parentais, ou seja, tanto do pai quanto da mãe, a prática revela, até o presente momento, que o abandono afetivo é comumente protagonizado pelo pai.

Tal fato se deve, na grande maioria das vezes, ao fato de que a prole continua residindo com a mãe após a separação do casal, ainda que venha se constatando que a adoção da guarda compartilhada vem crescendo a partir de 2008.

Logo, o abandono afetivo não guarda necessariamente relação com o cumprimento de obrigações financeiras.

A pensão alimentícia pode estar sendo cumprida, mas os chamados "deveres de afeto", esperados da paternidade responsável, acabam não adimplidos pelo pai abandônico.

As demandas de indenização por abandono afetivo estão embasadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que está disposto na Constituição de 1988, em seu Art. 1º, inciso III, que expressa o fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988), reconhecendo na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência e de fruir de um âmbito existencial próprio (SARLET, 2007).

A dignidade da pessoa humana é um valor intrínseco ao indivíduo, não pode ser alienado, tão pouco, renunciado.

Portanto, a dignidade da pessoa humana é uma construção baseada nos valores auferidos aos cidadãos e assegura sua proteção contra qualquer meio de degradação ou tratamento desumano, que o distancie de boas condições de sobrevivência e de uma vida digna.

Por conta disso, o melhor interesse da criança, a paternidade responsável e a afetividade decorrentes desse princípio constitucional transferem aos pais o dever de dedicarem à prole o amparo afetivo para garantir a formação psíquica e emocional (BRAGA; FUKS, 2013).

O direito ao afeto, mesmo sendo mais contemporâneo a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi também, alçado à condição de verdadeiro princípio geral.

Como bem explica Groeninga (2008, p. 28 apud TARTUCE, 2012, p. 1):

O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações.

Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade.

O afeto, por delimitação conceitual, quer dizer interação ou ligação entre pessoas, podendo ter carga positiva (quando há amor) ou negativa (quando há ódio), podendo ambas as cargas estarem presentes nas relações familiares.

A afetividade constitui um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar.

A afetividade nas relações sociais indica que a análise jurídica não pode estar alheia a este aspecto dos relacionamentos.

Desta forma, a afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, que está presente na Constituição Federal e no Código Civil.

Apesar da falta de sua previsão expressa na legislação, percebe-se que os juristas têm se posicionado que a afetividade é um princípio do sistema normativo brasileiro.

Os princípios jurídicos são concebidos a partir das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais, são orientações que se depreendem de toda a ordem jurídica.

O reconhecimento do princípio da afetividade constitui uma nova forma de se pensar a família brasileira (TARTUCE, 2012).

Sobre o princípio da afetividade no Direito de Família, Souza (2018, p. 4):

O conceito de família não é fixo e não possui um modelo, sua base principal é o afeto, tanto que o Princípio da Afetividade não é apenas um fato da vida, psicológico ou sociológico, ele se encontra na Constituição Federal.

Os laços de afeto e o amor são constituídos com a convivência e favorecidos pela unidade afetiva dos pais.

A família, hoje em dia, é nada menos que uma “união afetiva” em que sua essência e razão de existência residem na comunhão espiritual, dentro de uma atmosfera que tem como intenção a fortificação e o crescimento da unidade familiar, na qual homem e mulher constroem igualdades de valores, princípios, oportunidades e direitos.

Ressalte-se que a família, enquanto instituição da sociedade, possuiu uma grande transformação no decorrer do tempo.

A união, que tem como finalidade constituir família, traz em si uma parceria, uma compreensão e companheirismo entre o casal e os filhos, momento em que as relações amparadas pelo afeto são acentuadas, principalmente em virtude dos sentimentos de amor familiar, felicidade e afeto.

O casamento, hoje, não é o único tipo de família para a ordem jurídica, o que passou a privilegiar o fundamento comum de todos os tipos de família: a afetividade, necessária para realização pessoal de seus integrantes.

Nesse sentido, o exercício da paternidade e da maternidade, diretamente relacionado ao estado de filiação, é um bem indisponível para o Direito de Família (LÔBO, 2012).

Sua ausência tem repercussões e consequências psíquicas sérias, ensejando que a norma jurídica garanta amparo legal, inclusive, com imposição de sanções.

A família contemporânea tem no afeto um elemento que estrutura a entidade familiar, sendo também um dever do Estado a proteção de tudo que se vincula a esta entidade.

O afeto é o resultado da transformação da família, possuindo como base muitos dos valores consagrados pela Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, Nunes (2014, p. 5):

O princípio da afetividade está estampado na Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seus artigos 226 §4º, 227, caput, § 5 c/c § 6º, e § 6 os quais prevêem, respectivamente, o reconhecimento da comunidade composta pelos pais e seus ascendentes, incluindo-se aí os filhos adotivos, como sendo uma entidade familiar constitucionalmente protegida, da mesma forma que a família matrimonializada; o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente; o instituto jurídico da adoção, como escolha afetiva, vedando qualquer tipo de discriminação a essa espécie de filiação; e a igualdade absoluta de direitos entre os filhos, independentemente de sua origem.

O núcleo família no decorrer das gerações demonstra uma força voltada para os sentimentos e afeições de cada membro da família.

Por esta razão, o princípio da afetividade aborda a transformação do direito e dos meios de configuração da família, dando enfoque no que diz respeito ao afeto e atribuindo uma ênfase maior ao que ele representa (NUNES, 2014).

Conforme exposto, percebe-se que o afeto é considerado um aspecto intrínseco e inerente ao ser humano, relacionado diretamente à dignidade da pessoa humana, que também é um princípio constitucional.

As relações familiares também são estruturadas por este princípio, principalmente em decorrência da evolução da família, tendo em vista que os laços consanguíneos ou biológicos não são as únicas ligações entre os sujeitos e os sentimentos afetivos também podem nascer de uma convivência harmoniosa, transcendendo a própria genética.

O princípio da afetividade se justifica no momento em que é estruturante nas relações familiares.

Além disso, o Estado tem o papel de proteger a família, intervindo assim nas relações familiares, de forma a promover a celeridade e efetividade ao processo, primar pela concretização dos direitos fundamentais envolvidos, principalmente da criança ou adolescente, que deve ter proteção integral.

E nessa proteção está inclusa a afetividade, o sentimento de segurança e amor gerados por esse novo modelo de entidade familiar, denominado de família socioafetiva.

A partir disso, parte-se para uma análise normativa e jurisprudencial do abandono afetivo.

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