MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000.
O livro escrito por Friedrich Muller faz uma análise, de certo filosófica, sobre o significado do povo – como coletividade social –, explorando a relação deste para com a democracia constitucional, que é o modelo político marcante da modernidade ocidental.
Povo. Especialmente em tempos de eleição, talvez seja a palavra mais dita por todos os candidatos. Isso, pois, no cenário político moderno – talvez dos meados da promulgação da constituição vigente até aqui –, entendeu-se que todo poder realmente emana do povo; e, valendo-se de uma dinâmica que existe desde o início dos tempos em coletividade: todo mundo agrada a quem detém o poder.
Em terra de democracia representativa, quem tem voto é rei. Exceto pelo padrão de vida, pelos direitos sociais e por todo o resto. Mas na boca de todo e qualquer candidato político que esteja concorrendo a um cargo público eletivo, qualquer do povo se sentiria como verdadeira realeza. É neste momento, nestes espaços curtos de tempo que o povo deixa de ser substantivo masculino e passa a ser instituição, prioridade, lei, ou melhor, eleitorado.
Sem dúvidas a fase atual de definição “do povo” é a melhor historicamente. Ao analisar o passado, ver-se-ia que o povo passou por diversas qualificações, desde mão de obra, servos, escravos, a exércitos, fiéis, contribuintes. A história nos mostra – ressalvada a minoria das civilizações que podem não se enquadrar a essa definição – que o povo sempre agiu em função de um governante, de um deus ou de uma sociedade que o oprimia.
Hoje, os governantes, a máquina social, pública, tudo funciona para o povo. Em tese. O povo deixou de ser visivelmente oprimido para ser disfarçadamente oprimido. Ocorre que embora as democracias preguem a igualdade e a soberania popular, pois o aparato jurídico-político, hoje, age em prol da coletividade como um todo, o que se vê, na realidade, é que a parcela que reúne direitos, que ostenta um estilo de vida digno, que tem representatividade e voz ativa, é a menor do povo.
Ou seja, embora em tempos de eleição, de reajuste da máquina pública, não haja discriminação por cor, raça, idade, sexo, orientação sexual, pois todo voto vale o mesmo; ao longo dos outros anos que sucedem o período eleitoral, o povo passa ser o revés da vida política. O eleitorado se torna aquele que melhor representa o candidato que teve êxito pelo sufrágio. O resto, torna-se apenas isso.
Assim, em que pese a democracia ser o modelo político de igualdades universais, no qual todos – do povo – têm o mesmo direito, a mesma função, as mesmas garantias e gozam das mesmas oportunidades, o que se observa é que essa definição é reservada ao dicionário.
Convém, neste ponto, trazer uma citação diretamente do texto do autor, que melhor elucida o que aqui se pretende demonstrar:
Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencialmente e difusamente dos sistemas prestacionais [Leistungssystemen] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa “marginalização” como subintegração. (MULLER, 2000, p. 91)
Muller aborda aqui justamente o conceito de “exclusão”, que é o que vêm acontecendo com boa parte do povo em inúmeras democracias ao redor do globo; não se restringindo às subdesenvolvidas – tais como o Brasil.
O autor explica que mesmo esse conflito de privilégios – este sendo: uns têm muitos e outros não tem nenhum – não atingindo uma parcela tão grande da população, isso leva, inevitavelmente, a uma “reação em cadeia de exclusões”, acarretando em uma “pobreza política” (MULLER, 2000, p. 93).
O que Muller desenvolve a seguir, faz expandir a forma de analisar o contexto subdesenvolvido do próprio país, especialmente no tocante às razões que levaram a este subdesenvolvimento e que o mantém dessa forma. Veja-se.
O autor explica que a exclusão que foi ressaltada acima leva a um problema que supera uma mera condição estrutural problemática – na qual há desigualdade, no entanto, essa é sanável por políticas públicas de inclusão.
Nestes casos de exclusão exacerbada, o que ocorre é que grandes grupos populacionais perdem a sua cidadania, tornando-se demasiadamente dependentes da tutela estatal para a subsistência, necessitando de políticas públicas assistencialistas que os mantenham com alguma dignidade – mas, certamente abaixo do mínimo.
Ora, veja-se então. O estado passa a segregar o povo, de modo que exclui uma parcela desse dos sistemas funcionais da sociedade, de modo a criar uma porção periférica do povo, que possui menos condições e oportunidades, menos visibilidade. Até que, passado tempo o suficiente, essa porção que foi transformada em periférica atinge um ponto tão baixo de dignidade que passa a depender exclusivamente dos sistemas funcionais dos quais foram excluídos, anteriormente, para sobreviver.
É a partir deste contexto, dessa situação de exclusão e preterição, que notórias barbáries aconteceram ao longo da história. Não é necessário muito esforço interpretativo para fazer a conexão com os judeus na época da Alemanha nazista comandada por Hitler. Mas a partir dessa colocação, passa a ser evidente os traços de exclusão dos judeus perante a nação alemã, que os levaram a ser tratados não só como periféricos, ou à parte do povo, mas como menos que humanos. Permitindo, assim, através das próprias escolhas políticas e governamentais da época, que ocorresse um dos maiores genocídios da história humana.
O que Muller parece pretender desenvolver com seu texto é justamente essa análise crítica, não fornecendo necessariamente a resposta do que é o povo, mas demonstrando que a democracia surgiu, e, instaurou-se como sistema predominante no ocidente, para que jamais pudessem ser repetidas situações como a descrita acima. A democracia, portanto, é a melhor resposta e o melhor caminho para a inclusão.
E aqui vale a pena trazer a etimologia da palavra “democracia”, na qual “demos” tem origem grega e significa “povo”, enquanto que “cratos”, de mesma origem, significa poder. E aqui se vê a congruência com a frase contida na redação constitucional, na qual se diz que o poder emana do povo.
Entende-se ser essa, inclusive, a pretensão do autor, demonstrar como devem ser tratados os indivíduos em coletividade, “não como subpessoas [Unter-Menschen] não como súditos [Untertanen], também não no caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do Soberano, do “povo” que legitima no sentido mais profundo a totalidade desse Estado” (MULLER, 2000, p. 115).