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Transgressão à constitucionalização do contrato e contratos abusivos

Esse estudo objetiva compreender de que forma a transgressão à constitucionalização dos contratos enseja a prática de contratos abusivos. Nessa perspectiva, o estudo analisou como se dá essa abusividade, atentando para a evolução histórica dos contratos.

Resumo: Este estudo objetiva compreender de que forma a transgressão à constitucionalização dos contratos enseja a prática de contratos abusivos. Nessa perspectiva, o estudo analisou como se dá essa abusividade, atentando para a evolução histórica dos contratos e, ainda, à análise pormenorizada, através de críticas e exemplos, da conjuntura político-jurídica atual quanto ao tratamento de contratos abusivos, à luz do advento da constitucionalização. Os resultados revelaram que a herança mercantilista do lucro acima de tudo deixa resquícios que ainda se fazem presentes em relações contratuais hoje; contudo, essas desaparecerão à medida que a constitucionalização é incorporada. Os aspectos históricos e exemplificativos, bem como a apreciação, crítica, das razões para ineficácia dessa constitucionalização demonstram serem fundamentais para a análise de como a inobservância aos preceitos constitucionais possibilita a existência de contratos abusivos. Utiliza-se a metodologia bibliográfica no que se refere aos objetivos e dialética quanto ao método de abordagem, além da historiográfica.

Palavras-chave: Desrespeito à constitucionalização. Abusivo. Contratos. Resquícios. Estado Liberal.

Sumário: 1. Introdução. 2. A existência de contratos abusivos na hodiernidade em virtude do desrespeito à constitucionalização do contrato. 2.1. Aspectos históricos do tratamento dado aos contratos e sua evolução. 2.2. Subsistência de contratos abusivos na contemporaneidade através do desrespeito à constitucionalização dos contratos. 2.3. Análise crítica a respeito da ineficácia da constitucionalização do direito civil. 3. Discussão. 3.1. A perspectiva histórica acerca dos contratos. 3.2. Contratos abusivos na hodiernidade em virtude da transgressão à constitucionalização dos contratos. 3.3. O direito civil pós-constitucionalização e seus pormenores na teoria contratual. 4. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO

O Estado sob a égide do individualismo e liberalismo econômico consubstanciou um Direito pautado na autonomia da vontade. Desse modo, com base na igualdade e liberdade surgiu a figura abstrata do sujeito de direito assegurado por direitos e garantias estabelecidos em lei, entre as quais a possibilidade de realizar contratos com outros sujeitos. Nesse sentido, instalou-se a liberdade contratual. Entretanto, essa última amoldada pela omissão do Estado e por uma igualdade prevista em lei, mas que não se fazia valer na prática, tornou-se fonte de injustiças sociais, bem como de abusos, na medida em que os fracos eram submetidos aos mais fortes, por intermédio de celebrações injustas e socialmente perigosas, e tinham a obrigação de cumpri-las em virtude do caráter obrigatório dos pactos convencionados (TONIAL, 2007).

Assim, surge o Estado social e, através deste, o Estado passa a atuar em uma posição de mediador e interventor das relações interindividuais. A partir desse momento inicia-se a constitucionalização do Direito civil, que abarca então os contratos. Compreendendo-se a Constituição como a Carta Maior, essa passa a irradiar por todo o ordenamento jurídico, de modo que os contratos devem observar seus princípios. Nessa perspectiva, o direito subjetivo passa a ser limitado por preceitos constitucionais (MATTIETTO, 2006). Tais transformações evidenciam uma repersonalização do contrato, no qual “A pessoa prevalece sobre qualquer valor patrimonial” (TONIAL, p.153, 2007). Todavia, ainda, verificam-se na hodiernidade situações em que pessoas ficam submetidas a relações contratuais abusivas.Como, por exemplo, entre vendedores e compradores, onde o primeiro sob a égide da lei da oferta e da procura submete os consumidores a preços abusivos, e esses se veem obrigados a pagá-los, em virtude de este bem ser essencial para sua sobrevivência. É o caso de uma água potável custar muito acima do normal em uma situação de falta da mesma, a exemplo (TONIAL, 2007).

Desse modo, é possível perceber a coexistência da constitucionalização do contrato,que vem a demonstrar a tendência de socialização da teoria contratual, bem como de sua eticização; pautando as relações intersubjetivas em princípios constitucionais como a boa-fé e dignidade da pessoa humana, com situações em que as pessoas são submetidas a relações contratuais abusivas onde a autonomia da vontade e a liberdade contratual se perfaz sobre a pessoa humana. Sendo assim, diante desse paradoxo, questiona-se: Como a transgressão à constitucionalização do contrato possibilita a prática de contratos abusivos.

No decorrer deste trabalho, foram elencadas hipóteses com o intuito de encontrar resposta ao referido questionamento, são essas: A primeira hipótese consiste na suposição de que em virtude da constitucionalização do direito civil, é notório que a Constituição Federal, com todo o seu valor social e os seus princípios de proteção à dignidade da pessoa humana, passa a ter observância categórica em quaisquer relações intersubjetivas. Ainda, vê-se que a herança mercantilista do lucro acima de tudo deixa resquícios que ainda se fazem presentes em relações contratuais hoje; contudo, essas desaparecerão à medida que a constitucionalização é incorporada.

E, por fim, a segunda hipótese propõe ser indiscutível a necessidade que o direito civil possuía de uma constitucionalização, haja vista tamanhas injúrias à dignidade da pessoa humana que ocorreram no período prévio à mesma. No entanto, notar-se-á que natureza capitalística na sua busca por lucros a qualquer preço é uma marca profundamente entranhada na sociedade e, ainda que haja significantes mudanças formais, a realidade fática não há de assimilar todo o valor social trazido pela Constituição de 1988.

Para, além disso, é necessário, primeiramente, identificar o estímulo pessoal que ocasionou a escolha do tema proposto para a realização do presente trabalho. Conhecer sobre princípios e características inerentes aos contratos é essencial, principalmente em uma sociedade moderna a qual utiliza desses instrumentos para realizar um negócio e estabelecer relações de trabalho a partir deles. A evolução histórica e identificação do contrato é indispensável para analisar o tratamento dado desde antigamente até a modernidade que concebeu contratos abusivos a partir do instrumento originário em uma tentativa de aproveitar condições desfavoráveis do sujeito para obter lucro. Dessa forma, a compreensão de como se deu a evolução contratual até os tempos hodiernos, além do surgimento de contratos abusivos, é imprescindível para o entendimento da constitucionalização desses instrumentos na modernidade.

O presente trabalho pretende analisar os efeitos gerados a partir da constitucionalização do contrato paralelamente a uma sociedade que utiliza de contratos abusivos gerados pela inobservância e deficiência de fiscalização. O aspecto político- jurídico será retratado juntamente a críticas, demonstrando que a constitucionalização do contrato não é suficiente para reparar essa espécie contratual. Sendo assim, aspectos históricos e conceituais do Direito Contratual serão exibidos para a compreensão de como se deu essa violação à constituição na modernidade.

Por fim, o objetivo deste trabalho é demonstrar de que forma a transgressão à constitucionalização dos contratos enseja a prática de contratos abusivos. Apontando a evolução histórica no tratamento do contrato para a melhor compreensão de seu conteúdo e, ainda, analisando, pormenorizadamente, através de críticas e exemplos, a conjuntura político-jurídica atual quanto ao tratamento de contratos abusivos, à luz do advento da constitucionalização.

Assim, a metodologia aqui apresentada logra aspecto dialético no que tange ao método, visto que se trata de um método de investigação da realidade através do estudo de sua ação mútua, apresentando uma desestruturação de todo e qualquer conhecimento inflexível, pronto e acabado. Um método que objetiva desconstruir e transformar o objeto de estudo. Quanto aos objetivos infere um caráter bibliográfico, na medida em que pode se fundamentar tanto como um trabalho independente como em uma pesquisa preambular de trabalhos posteriores, pois todo e qualquer trabalho científico presume uma pesquisa bibliográfica preliminar (LAKATOS; MARCONI, 2010).

Além disso, a metodologia de Lakatos entende a metodologia como um programa de investigação historiográfica, de modo que se utiliza da história para localizar mudanças de problemas progressivas ou degenerativas. O tratamento dado aos contratos evoluiu com a sociedade, assim, para melhor compreendê-lo se faz necessária uma visita à sua própria história, aos seus fundamentos; na medida em que ainda está sendo, constantemente, construído, e somente será possível localizar as mudanças observando sua evolução na sociedade. No sentido de que no Estado liberal, por exemplo, contratos eram muito mais arraigados aos seus princípios internos como liberdade contratual e autonomia da vontade, enquanto hoje, em virtude da sua constitucionalização é necessária que se faça sua interpretação à luz de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana; devido às mudanças da sociedade e de suas demandas, consequentemente. Esse olhar só é possível através de uma investigação que não se limita à hodiernidade (LAKATOS; MARCONI, 2010).


2. A EXISTÊNCIA DE CONTRATOS ABUSIVOS NA HODIERNIDADE EM VIRTUDE DO DESRESPEITO À CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTRATO

2.1. Aspecto histórico do tratamento dado aos contratos e sua evolução

É correto afirmar que o contrato passou por várias modificações, sendo estas em relação ao seu tratamento como também em relação a diferentes proteções que trouxe até a modernidade. A evolução contratual diz respeito não somente ao surgimento de novos conceitos e características, mas também de um determinado meio social que corroborou para tal evolução. Os contratos foram determinados de acordo com a evolução social e, dessa forma, consiste no reflexo de demandas de dada coletividade (ALMEIDA, 2012).

O direito brasileiro possui forte influência do Direito Romano clássico, da ciência jurídica medieval, sendo a dos glossários como também a canonista, assim como o jusnaturalismo moderno. A forma em que o contrato era enquadrado no Direito Romano clássico não era visto com uma finalidade de assegurar uma relação econômica e obter uma proteção estatal sobre tal. Aqui, o contrato possuía um alto rigor formalista devido ao não uso da escrita e a alta carga religiosa da coletividade em razão da proteção divina só incidir se o contrato contemplasse a forma. Diferentemente do direito romano clássico, o direito romano pós-clássico apresenta uma desvinculação da formalidade, no sentido de proporcionar um espaço de liberdade aos indivíduos; a simples declaração de vontade das partes já era suficiente para firmar o contrato, sem necessariamente estar sob um véu de formalidade como se dava no direito romano clássico. Os contratos já entravam no âmbito de regulamentação das relações sociais como, por exemplo, a compra e venda e a locação (ALMEIDA, 2012).

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Posteriormente, a sociedade se apresentava mais individualista e livre para reger suas vidas de acordo com a própria conveniência. Na sociedade feudal todos eram proprietários, não só de produção ou de capital, mas também de sua própria força de trabalho. O tratamento contratual era como instrumento que proporcionasse uma liberdade individual, mesmo não o sendo na prática, o princípio central era a autonomia da vontade que regrava as relações, a ideia era que o contrato assegurasse a liberdade individual. Além disso, a religião tinha aqui influição, tendo até mesmo o condão de destituir a relação contratual em decorrência da mentira, que era considerado heresia; a realização de um juramento religioso dava força ao contrato (SILVA; SILVA, 2012).

A liberdade individual tomou rumo e não criou empecilhos para incidir nas relações contratuais. O Estado Liberal era caracterizado pela liberdade dos cidadãos para estabelecer relações e firmar acordos entre as partes, de modo que a autonomia da vontade far-se-ia presente. O respeito dado pelo legislador a autonomia das partes era evidente e o Estado era posto na posição de não intervir, a não ser em casos de vício, garantindo dessa forma a liberdade dos sujeitos para firmar suas relações. Dessa forma, além da influência do direito romano clássico, o Código Civil de 1916 possui forte atuação do Estado Liberal (TIMM, 2013).

O Código Civil de 2003, por outro lado, é guiado e regulado pela Constituição com advento do Estado Social, limitando mais a esfera de liberdade e aumentando a carga de intervenção pública no âmbito de vontade dos contratantes através de normas impeditivas impedindo seu distanciamento pelo desejo das partes (TIMM, 2013). A proteção da Constituição de 1988 no campo do Direito Contratual propicia aos contratantes um véu de proteção do Estado sobre as limitações que determinado contrato possui, ou eventuais vícios que possa apresentar (SANTOS; SIMIONI; SOUZA, 2016).

2.2. Subsistência de contratos abusivos na contemporaneidade através do desrespeito à constitucionalização dos contratos

No Estado burguês de Direito, o individualismo assumiu lugar de prestigio em contraposição ao vivenciado no período medieval. Nesse sentido, a perspectiva na época era de que o Direito público concernia nos assuntos referentes à máquina estatal e o Direito privado na personificação da emancipação do indivíduo onde se tinha como elemento central o contrato. Esse último era pautado no princípio da autonomia da vontade, de modo que essa era praticamente absoluta. O Estado era apenas um pacificador para que as pessoas pudessem ser livres e agir conforme suas próprias regras; o que acabava por acarretar inúmeras injustiças e abusividades. Assim, surgiu, em seguida, o Estado social, no qual a máquina pública sai de uma posição passiva, para a posição ativa, permeando e regulando as relações entre os indivíduos. É nessa seara que se inicia o processo de constitucionalização dos contratos (GOEDERT; PINHEIRO, 2012).

Nesse sentido, a constitucionalização consiste em um amoldamento da legislação infraconstitucional aos princípios e normas da Constituição, de modo a reestruturar os sistemas jurídicos tendo como viés essa última. Nesse âmbito, é importante perceber que a constituição de 1988 é do tipo principiológica sendo, portanto, formada por princípios. Esses são mandamentos nucleares de um sistema, constituindo o alicerce desse e compondo lhes o espírito. Nessa seara subsiste o princípio da dignidade da pessoa humana, compreendido como princípio constitucional político e ideológico, este consiste no núcleo essencial dos direitos fundamentais, bem como premissa fundamental do Estado Democrático de Direito se consubstanciando como fonte ética, atribuindo a cada ser humano o respeito e consideração, por parte do Estado e da comunidade, que lhes são devidos. Nesse sentido, constitucionalizar o contrato é colocar o ser humano como centro respeitando as condições inerentes a ele; não permitindo contratos que os coloquem em situação desigual, desumana e degradante, por exemplo (SCHONING, 2012).

Ainda, a intervenção do Estado na fixação dos conteúdos das cláusulas contratuais permite uma relativização da liberdade contratual. O Estado reduz a autonomia da vontade das partes e passa a estabelecer quais tipos contratuais vão receber a influência de normas cogentes. Isso se faz pertinente para garantir a igualdade substancial entre aqueles que firmam o contrato, de forma que a parte mais fraca seja protegida por meio das normas que restringem a liberdade de estabelecer o conteúdo das cláusulas. Como afirma Lacordaire “entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta” (TONIAL, p.149, 2007). E para, além disso, evitar abusos que se davam em virtude de cláusulas que causavam onerosidade excessiva, desequilíbrio ou que permitia à apenas uma das partes elaborar o contrato e explicitar sua vontade (TONIAL, 2007).

Posto isto, é possível perceber que transgredir a constitucionalização do contrato é transgredir no tempo, permitindo um individualismo exacerbado inobservante da função social. Que se personifica em uma autonomia da vontade absoluta que se traduz em contratos abusivos que diminui e submete uma das partes em detrimento de outra por não o compreender à luz do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana, por exemplo. Contratos abusivos subsistem porque desrespeitar esse processo de constitucionalização significa negar preceitos como relativização da autonomia da vontade, a dignidade da pessoa humana, a função social dos contratos, o princípio da paridade de armas. Entre tantas outras normas constitucionais que vem a colocar os indivíduos em mesma condição de respeito e proteção.

2.3. Análise crítica a respeito da ineficácia da constitucionalização do direito civil

Assim como já fora posto, a absorção de valores sociais pelo último movimento constitucional, sob o qual se instituiu a contemporaneidade brasileira, trouxe inúmeras e significantes mudanças na seara contratual. Dentre as quais, faz-se imprescindível o ressalto que faz Nelson Rosenvald de que “hodiernamente, não mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade à qual se dirige a relação dinâmica” (TARTUCE, p. 2, 2005); a partir do qual se pode perceber que o contrato então passa a internalizar preceitos de recusa a onerosidades excessivas, desproporções entre as partes bem como a possibilidade de injustiça social (TARTUCE, 2005).

Nesse sentindo, Rosenvald perspicazmente prossegue afirmando que “o bem comum na relação obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperação dos indivíduos para a satisfação dos interesses patrimoniais recíprocos” (TARTUCE, p. 2, 2005). Por conseguinte, faz-se nítido que o contrato abandona o viés da relação apenas intersubjetiva entre as partes, levando consigo uma carga social que transcende essa relação – afluindo pela coletividade, resignificando-se à égide do próprio contexto que se encontra inserido.

Ainda neste mesmo espectro, é pertinente trazer à luz da análise contratos e relações entre sujeitos por esses formados que terminam por refutar o avanço dessa mesma constitucionalização que aqui se enaltece. Como exemplo, Flávio Tartuce (2005) traz a situação de um contrato firmado entre uma empresa e uma agência de publicidade, o qual é evidentemente civil e conta com a paridade entre as partes, respeitando todos os conformes constitucionais necessários; contudo, a publicidade que se veicula resultante do mesmo vem a ser discriminatória.

Mesmo que ampla e difundida, a constitucionalização do direito civil se vê falha ao permitir de forma tácita que casos como esse ocorram; e isso não se dá apenas no campo teórico, há inúmeros exemplos concretos e extremamente atuais do mesmo que reafirmam a recorrência dessa denúncia. Pode-se citar como exemplo mais atual que está sendo veiculado enquanto este trabalho é produzido, uma propaganda difundida pela marca “Dove”. Nessa, em “um anúncio de três segundos para um sabão líquido, uma mulher negra [de camiseta também escura] tira uma camiseta para revelar uma mulher branca [usando uma blusa branca]” (FRANCE PRESSE, 2017).

Contudo, após a veiculação da infeliz propaganda, a empresa “Dove” sofreu com a repudia do público que – principalmente nas redes sociais – vem rechaçando o anúncio, taxando-o com racismo explícito. Desse modo, é perceptível que a constitucionalização, bem como o interesse social e coletivo que deveria ser inserido nas relações contratuais não é regrado pela própria lei que o impõe, o que se percebe é um movimento social onde a população acaba por exercer a sua prerrogativa democrático de vetar aquilo que lhe fere os seus direitos. O controle é exercido não pela máquina pública, mas sim pelo povo. Atestando a ineficácia prática da constitucionalização; essa vem sendo aclamada na teoria, mas é preciso que seja consubstanciada na realidade fática do dia-a-dia.

Toda essa exposição que aqui se põe, faz parte de uma herança social, do Brasil, muito mais antiga do que o próprio movimento constitucional; faz parte da dificuldade que o brasileiro carrega em si, de diferenciar o público do privado, respeitando às normas que imperam sobre as suas relações ainda que as mesmas lhes causem desfavor. As leis são leis e são cobradas pelos sujeitos democráticos do Brasil até o momento que as mesmas passam a interferir no direito individual; pois a partir daí se faz operante é o – quase mítico – “jeitinho brasileiro” (HOLANDA, 1995).

O que se coloca aqui não é uma crítica ao viés necessário que evidentemente há na constitucionalização do Direito Civil, esse é indiscutível. Mesmo porque é por causa desse que a população tem o direito de contestar a veiculação de tal propaganda discriminatória – por exemplo. A intenção do trabalho é trazer para a discussão o que o Sérgio Buarque de Holanda (1995) discorreu há décadas e aqui ainda hoje faz recorrente; trazer à luz do academicismo um dos motivos para a ineficácia da mesma constitucionalização, que é essa habilidade individualista do brasileiro que se faz traço marcante mesmo nas grandes corporações. O esquivar do ordenamento, do movimento constitucionalizante, vez que esse interpõe obstáculo no ganho próprio das empresas, nulificando, em tese, contratos lucrativos.

O movimento da constitucionalização do direito civil, portanto, é inegavelmente um avanço legislativo-jurídico para todo o ordenamento e o aparato judicial que regram as relações contratuais, por exemplo. Mas se faz evidente, pelo que fora elucidado neste tópico, que é preciso que se traga, o que está sendo bem aclamado na teoria, para a prática. A herança cultural no Brasil associado com o inerente animus lucrandi que as corporações hoje têm inserida em todo contrato e qualquer relação de consumo – essa, por sua vez, herança do capitalismo –, faz com que a abstração desses conceitos e a realidade fática destoem de maneira evidente.

3. DISCUSSÃO

3.1. A perspectiva histórica acerca dos contratos.

Os contratos possuem fortes bases na história, fazendo do seu advento não somente um instrumento que surgiu em uma explosão, mas veio sendo construído a partir de relações entre os indivíduos e em diferentes costumes os quais facilitaram o meio para seu nascimento em uma tentativa de firmar uma relação com maior confiabilidade. A proteção dada aos contratos que se observa na atualidade a partir de uma lei maior, ou seja, a Constituição, para se chegar ao conceito de contrato que temos em um Estado de Direito e Democrático, houve modificações no compasso na linha histórica de modo a adequar esses instrumentos a sociedade que preconizava em sua época (ALMEIDA, 2012).

Primeiramente, o Direito Romano faz-se indispensável para a compreensão inicial dos contratos, a partir de uma sociedade que se pautava em uma forma não escrita mas que preconizava uma formalidade religiosa. A religião desde o Império Romano fazia-se presente nas relações entre os indivíduos, de forma que eram limitados a ela, não sendo contratos que asseguravam uma relação econômica propriamente dita. Aqui, o contrato possuía um alto rigor formalista devido ao não uso da escrita e a alta carga religiosa da coletividade em razão da proteção divina só incidir se o contrato contemplasse a forma. O regime contratual apresentava sua esfera de vontade nessa época mais restringida devido a religião, contudo, posteriormente ao direito romano clássico, o direito romano pós- clássico, proporcionou uma maior abrangência fazendo a liberdade individual mais valorizada para a firmação de uma relação contratual (SILVA; SILVA, 2012).

O Estado Burguês, caracterizado mais ainda pela ausência de interferência estatal nas relações privadas, tendo o Estado somente legitimidade para incidir sobre elas caso houvesse algum vício contratual, apresenta um âmbito menos rigoroso em relação as possibilidades do que poderia ser objeto do contrato. O imperativo que o Estado estava posicionado era um negativo, de modo que deixava aberto aos indivíduos o firmamento de negócios entre os indivíduos livre de intervenções do Estado, salvo se presente vícios (TIMM, 2013).

Por outro lado, com o advento do Estado de Direito, essa liberdade contratual foi restringida devido ao excesso de liberdade a qual os sujeitos gozavam. A possibilidade de realização de negócios mais viciosos era maior, dada a pouca fiscalização do Estado nas relações privadas no Estado Liberal. Aqui, o Estado está posicionado sobre um imperativo positivo, de modo que se o contrato não for cumprido, aquele possui legitimidade para intervir, além de fazer com o que ele seja cumprido devido ao inadimplemento do devedor, por exemplo (SILVA; SILVA, 2012).

A Constituição de 1988 trouxe forças as quais objetivam incidir e fazer as legislações infraconstitucionais obedecerem as perspectivas por aquela trazidas. A ideia de Direitos Fundamentais serem garantidos através desses contratos, de forma que no Estado Liberal pouco eram observados, devido a sua fiscalização ser precária, faz-se imprescindível principalmente em contratos de adesão cujas cláusulas possuem grande probabilidade de mostrar facetas abusivas, fazendo dos Direitos Fundamentais, que a Constituição tanto enaltece, meros pedaços de papel (TIMM, 2013).

3.2. Contratos abusivos na hodiernidade em virtude da transgressão à constitucionalização dos contratos

Durante o Estado burguês de Direito a base dos contratos era a autonomia da vontade, compreendendo-se que cabia às partes estabelecer todo o conteúdo. A vontade do indivíduo como cerne para os efeitos contratuais era absoluta; o que acarretava diversas abusividades. Assim, surgiu o Estado social no qual o Estado passa a atuar como interventor e mediador nas relações contratuais, impondo a observância das leis na formação dos contratos a fim de garantir o equilíbrio entre as partes. Tendo no constitucionalismo a fonte de proteção dos direitos fundamentais no âmbito privado; iniciando o processo de constitucionalização dos contratos (GOEDERT; PINHEIRO, 2012). Tal constitucionalização é o fenômeno em que as normas infraconstitucionais se adéquam aos preceitos constitucionais, reestruturando-se os sistemas jurídicos tendo por base a Carta Maior. De modo que o Código Civil brasileiro não mais se expressa como um sistema completo em si, mas como um sistema que busca sua identidade e ordenação na Constituição, coexistindo com os demais microssistemas de forma harmônica (SCHONING, 2012).

Posto isto, o Estado Constitucional hodierno possui como princípio estruturante a Dignidade da pessoa humana, sendo este a fonte ética, a qualidade inerente a todo o ser humano que o faz merecedor de respeito por parte do Estado e da comunidade e que o assegura o não tratamento desumano e degradante, bem como as condições mínimas para sobreviver (SCHONING, 2012). Desse modo, na hodiernidade, os contratos devem observar, antes de tudo, os preceitos constitucionais a fim de coibir eventuais abusividades. Constitucionalizá-lo é compreender o contrato em sua forma humanizada, tratando as partes conforme o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo, a não as submeter a situações desumanas e degradantes ao pactuar um acordo de vontades. Na medida em que a dignidade da pessoa humana é limite e tarefa, isto é, dimensão defensiva e prestacional, respectivamente (TONIAL, 2007).

Durante a revolução industrial, por exemplo, os donos das fábricas submetiam seus funcionários a situações de limite porque à época a autonomia da vontade era absoluta e os contratos podiam ser firmados sem maiores restrições. Hoje, com a constitucionalização, a priori, não é possível submeter alguém a relações de trabalho em condições escravistas, justamente por haver um dever de observar os princípios constitucionais como o outrora citado. E o fato de, eventualmente, serem descobertas pessoas trabalhando na zona rural, a exemplo, em condições análogas à de escravo é um alerta do desrespeito à constitucionalização dos contratos, onde estes não observam os preceitos da Carta Maior.

Ainda, a constitucionalização do direito contratual concedeu novo caráter à autonomia da vontade que foi mitigada pela função social do contrato, equilíbrio econômico e pelo princípio da boa-fé objetiva. Isso acabou por promover a repersonalização dos contratos, de modo que o ser humano passou a ter posição preferencial em relação à qualquer valor patrimonial (TONIAL 2007). Na alinha, a socialização revela a função social das relações contratuais, onde o contrato deve representar um importante polo na luta pela construção da justiça e da igualdade na sociedade. De modo que os pactos não possuem mais apenas um viés individualista tendo, agora, um papel proativo no que cerne a manutenção e transformação dos aspectos sociais. Tendo em vista que o indivíduo não está isolado na sociedade os contratos têm relevância sobre a mesma, não sendo possível, por exemplo, um contrato que prejudique a coletividade (VIERO, 2007).

Com relação ao equilíbrio contratual, este se fundamenta no princípio da igualdade. Assim, na contemporaneidade, através da constitucionalização, a compreensão da troca nos contratos enseja equilíbrio entre as partes, devendo haver, portanto, uma equivalência de direitos e obrigações entre ambos. Dessa forma, consubstanciando a ideia de que, embora os contratantes, formalmente, sejam iguais, faticamente se encontram em situações diferentes se fazendo necessário proteger a parte mais vulnerável sob o risco de inexistência da comutatividade do pacto. E, ainda, pautados no princípio da boa-fé os contratantes devem ter uma atitude vinculada, de certo modo, à alteridade, isto é, pensando no outro; respeitando tanto seus interesses, quanto suas expectativas, bem como direitos. Ambas as partes devem atuar com lealdade e correção a fim de corroborar a confiança estabelecida naquele contrato (TONIAL, 2007).

Posto isto, é notório que a partir do momento em que o processo de constitucionalização dos contratos é desrespeitado aferem-se as abusividades. Na medida em que o desrespeito a tal fenômeno significa o desrespeito a princípios como o da dignidade da pessoa humana e da boa-fé, previsto na Constituição Federal de 88, assim como à absolutização da autonomia da vontade, que desde o Estado burguês é fonte de injustiças sociais como outrora exposto. Negar o processo de constitucionalização desse instituto é pactuar com relações em que as partes se encontram em situação de desigualdade, onde o mais fraco se submete ao mais forte. Significa permitir a permanência de contratos abusivos como os que ocorriam na revolução industrial. Ou ainda, pactuar com o trabalho análogo ao escravo onde se tem uma relação contratual completamente alheia aos preceitos constitucionais, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, a exemplo.

3.3. O direito civil pós-constitucionalização e seus pormenores na teoria contratual

Aprofundando o que fora discutido nos tópicos acima, faz-se válido elucidar um conceito a respeito do que vem a ser o “jeitinho brasileiro” que tanto se mistura ao empreendedorismo deste país – marchando em sentindo contrário à burocracia da própria constitucionalização do direito civil que o regra. A respeito disso:

[...] o jeitinho é uma maneira especial, eficiente, rápida e criativa de agir: para controlar e facilitar situações, conseguir e resolver coisas, contornar dificuldades, conseguir favores, buscar amigo, fugir à burocracia, solucionar problemas, acomodar-se, sair de uma situação e burlar a fiscalização, utilizando-se de simpatia pessoal, influência de terceiros, um bom papo, um agrado financeiro, arranjo técnico, etc. (PEDROSO, MASSUKADO-NAKATANI, MUSSI, 2008)

É deste modo que todo o conjunto da constitucionalização e seus efeitos descritos por Tartuce (2005) tendem a apresentar traços díspares quando está se tratando da realidade fática do dia-a-dia. Não é à toa que o Brasil possui um notório índice de corrupção e criminalidade e concomitantemente é possuidor de um ordenamento jurídico vasto, complexo e prolixo. O xis da questão que aqui se levanta é que a teoria no que tange o que deveria ser feito – no Brasil – em muito destoa da prática, do que acontece diariamente no desfecho das relações entre sujeitos, ou entre corporações e instituições.

Tartuce (2005) nos diz que os efeitos gerados pela constitucionalização agora deixam de envolver apenas as partes que contratam para abarcar toda a sociedade que é potencialmente sujeito passivo dessa relação. No entanto, o que Sérgio Buarque (1995) deixa expresso é que esse traço individualista e cheio de artimanhas é herança de todos; ainda que nem todas façam uso do mesmo, todos são afetados, seja passivamente ou de forma ativa. É o que Pedroso, Massukado-Nakatani, Mussi (2008) esclarecem ser um feito tanto micro, no que tange um indivíduo, quanto macro, quando é possível observar uma instituição, ou uma corporação – isto é, um conjunto de pessoas – com esse mesmo traço de aversão à burocracia.

Já houveram diversos estudos científicos, no Brasil, realizados com o intuito de associar essa característica primeiramente observada por Holanda (1995) com o perfil do empreendedor brasileiro – tal como é a aqui utilizada de Pedroso, Massukado-Nakatani, Mussi (2008). Nessa última, em tal associação, os autores terminam por concluir que:

Considerando o que menciona o relatório do Global Entrepreneurship Monitor (2006, p. 190): “o brasileiro acaba apresentando uma característica considerada importante para o empreendedor: a capacidade de adaptar-se a diferentes tipos de situações e em ambientes distintos”; fica claro que essa é uma característica muito presente no perfil empreendedor brasileiro e que, mais uma vez, mantém relação com o jeitinho, pois remete ao jogo de cintura, à malandragem e à ginga brasileira. (PEDROSO, MASSUKADO-NAKATANI, MUSSI, 2008)

Nesse intuito também se faz pertinente dizer que ter essa característica entranhada no interior das relações entre sujeitos não necessariamente é uma sentença fatal ao futuro constitucionalizador das relações civis. Como Tartuce (2005) elucida, Nelson Rosenvald diz que uma vez que o bem comum na relação obrigacional satisfaz os interesses patrimoniais de ambos mediante as suas próprias cooperações, as relações contratuais evoluem e se resolvem de maneira mais energética.

Portanto, o que aqui se intencionou esclarecer é que há uma grande disparidade entre os efeitos da constitucionalização do direito civil em matéria contratual no tocante a seara teórica e prática do mesmo. Buscando clarificar sob à égide de um clássico autor, um dos grandes obstáculos responsáveis por esse fenômeno, como é o jeitinho brasileiro estudado por Sérgio Buarque de Holanda (1995). Ainda, como dito outrora, não se pretendeu discutir aqui a necessidade e importância da constitucionalização, pois de fato essa ainda permanece indiscutível.

4. CONCLUSÃO

É possível identificar as inúmeras alterações e âmbitos que o contrato incidiu ao decorrer dos Estados e sociedades que possuíam costumes distintos dos que podem ser observados no Estado de Direito que se vive atualmente. Os inúmeros meios em que o contrato incidiu em cada época e a forma que eles traziam configurando a religião inicialmente como intermédio para que aquele se concretizasse, é somente uma forma para demonstrar os avanços que esses instrumentos passaram até chegar ao que constitui hoje.

A evolução da autonomia da vontade desde o Estado Romano até o Estado de Direito, possibilita a compreensão do comportamento estatal frente a liberdade que cada individuo possuía e lhe era lícito. Essa autonomia passou por vales e cristas até o que o Estado preconiza na modernidade. A alta liberdade contratual a qual os sujeitos gozavam no Estado Liberal os proporcionava, a partir de uma fiscalização mais flexível, o que ensejou e concedeu aos indivíduos a realização de contratos que incidiram na esfera abusiva e, devido a essa abstenção de fiscalização, a resolução de contratos ainda mais abusivos tornou-se frequente.

A linha histórica do Brasil não constitui uma das mais belas. A escravidão por muito tempo foi o principal meio econômico o qual o sistema apreciava, e o Brasil foi o penúltimo país a abolir de fato a utilização desse sistema econômico desprezível em relação aos demais. Dessa forma, resquícios de ideias escravistas e contratos trabalhistas foram travados mediante ainda a alteração brasileira a um novo modelo econômico o qual preconizava a abominação ao trabalho escravo na sociedade.

Assim, com o advento da Constituição de 1988, busca-se principalmente a inexistência de trabalhos que se perfazem sobre condições precárias, de modo que os Direitos Fundamentais inseridos sob o véu de uma cláusula pétrea seria suficiente para que a sociedade se conscientizasse e auxiliasse nessa busca por contratos mais flexíveis, além de objetiva uma analise social sob uma perspectiva caracterizada pela alteridade; a enxergar o lado do próximo refletir se o contrato o qual o individuo deseja firmar realmente se encontra em uma esfera de humanidade.


REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, Juliana Evangelista de. A evolução histórica do conceito de contrato: em busca de um modelo democrático de contrato. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 99, abr 2012.

Sobre os autores
Raphael Felipe Machado Campos

Graduando do 7º período do curso de Direito da UNDB.

Laryssa Pereira dos Santos

Graduanda do 4º período do curso de Direito da UNDB.

Janna Coelho Mendonça

Graduanda do 4º período do curso de Direito da UNDB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Paper apresentado à disciplina de Contratos Cíveis e Comerciais, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professora Especialista, Orientadora: Heliane Fernandes.

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