6. A Possibilidade dos Bens Digitais Comporem o Acervo Hereditário
Quanto à possibilidade dos bens digitais comporem o acervo hereditário, versa o artigo 1.791 do Código Civil, “a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros”, sendo assim, a herança inclui além do patrimônio material o patrimônio imaterial do falecido, como é o caso dos acervos digitais.
Para a doutrinadora Giselda Maria Fernandes Hironaka (TARTUCE, 2018),
"Entre os bens ou itens que compõem o acervo digital, há os de valoração econômica (como músicas, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa), e estes podem integrar a herança do falecido, ou mesmo podem ser objeto de disposições de última vontade, em testamento, e há os que não têm qualquer valor econômico, e geralmente não integram categoria de interesse sucessório" (Boletim Informativo do IBDFAM, n. 33, jun./jul. 2017, p. 9).
De suma importância destacar que já tramitaram no Congresso Nacional projetos de lei que visavam suprir a ausência de legislação sobre a herança digital no âmbito do Direito Sucessório.
O primeiro Projeto de Lei foi o de número 4.847, criado em 2012 (FILHO, 2012), tal projeto pretendia acrescentar os artigos 1.797-A a 1.797-C no Código Civil Brasileiro, os quais versariam respectivamente:
“Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido. Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro: I - definir o destino das contas do falecido; a) - transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) - apagar todos os dados do usuário ou; c) - remover a conta do antigo usuário.”
No Projeto de Lei acima descrito, podemos perceber que o artigo 1797-A, trata-se de um rol exemplificativo, o que não exclui a possibilidade de que outros bens, como fotos, contatos e textos possam ser incluídos no acervo.
Ademais, o Projeto de Lei em comento tramitou conjuntamente com o Projeto de Lei 7.742/17 (NASCIMENTO, 2017), que tinha como proposta acrescentar o artigo 10-A na Lei 12.965/14 – Lei do Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014), in verbis:
Art. “10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.
§ 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.
§ 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.
§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.”
Como visto, ambos os Projetos de Lei atribuíram aos herdeiros do falecido o poder de decisão a respeito da herança digital do mesmo, contudo, ambos foram arquivados nos moldes do artigo 105, caput, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Logo, atualmente, não há legislação ou projeto de lei que dispõe acerca da possibilidade de os bens digitais comporem acervo hereditário do de cujus.
Lado outro as redes sociais abrem precedentes para que, ainda em vida, as pessoas possam escolher a destinação de suas contas após o falecimento. O Facebook oferece duas alternativas: A primeira alternativa é a transformação da conta em uma espécie de “memorial”, permitindo que os usuários façam homenagens ao falecido. A segunda alternativa é a exclusão da conta, mediante representante que comprove o falecimento do usuário. O Google permite que o usuário escolha até dez pessoas para receberem suas informações acumuladas em vida, em uma espécie de testamento digital informal. O Twitter permite que os familiares baixem os tweets do falecido e após é lhes dado a opção de excluir o perfil do falecido, em um procedimento realizado pela própria empresa. Já o Instagram permite opções iguais ao do Facebook, podendo transformar a conta em um “memorial” ou que um membro da família do falecido solicite a exclusão da conta mediante comprovação do falecimento do usuário.
Como percebido, tanto os Projetos de Lei quanto as opções fornecidas pelas redes sociais, variam entre a autonomia privada e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros.
Logo, muito se discute a respeito da possibilidade dos bens digitais comporem o acervo hereditário, contudo, qualquer mudança na legislação deve dialogar com a Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (BRASIL, 2018), que tem como objetivo a proteção dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Consoante Art. 2º da lei em comento:
“(...) a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I - o respeito à privacidade; II - a autodeterminação informativa; III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.”
Talvez este seja o melhor caminho para possíveis alterações do capítulo do Direito das Sucessões do Código Civil a respeito do tema.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A herança dos bens digitais será um tema de grandes repercussões por todo o mundo nos próximos tempos. Com a modernização da interação entre os seres humanos, e as novas realidades geradas pela tecnologia, o Direito Civil precisa tratar do tema, como uma medida de prevenção e pacificação de possíveis conflitos.
Atualmente, a temática da Herança Digital no Brasil é tratada por meio de interpretação extensiva das normas que embarcam o Direito Sucessório no diploma civil brasileiro. A falta de regulamento próprio é o maior obstáculo quanto ao reconhecimento dos bens digitais comporem o acervo digital dos herdeiros. Isto porque, além de gerar uma insegurança jurídica dada as decisões divergentes dos juízes, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este previsto na Constituição Federal. Nesta senda, é perfeitamente possível e necessária a regulamentação da herança digital, sejam os bens suscetíveis ou não de valoração econômica, e sua inclusão nas disposições do Código Civil.
Assim, temos que tratar as novas questões que o mundo digital nos apresenta de forma ampla, e não somente a partir das concepções tradicionais conhecidas, para não gerar uma insegurança jurídica e a falta de proteção da pessoa humana.
Neste sentido, observa-se a necessidade de o legislador buscar soluções para sanar esta lacuna, uma vez que nos dias atuais, há grande número de bens acumulados digitalmente pelos usuários. Um passo importante, seria a tramitação de projetos de leis como os acimas apresentados e via de consequência, sua aprovação pelo Senado Federal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
1 IMMENE, Amanda. Ranking das redes sociais: as mais usadas no Brasil e no mundo, insights e materiais gratuitos. Disponível em: <https://resultadosdigitais.com.br/blog/redes-sociais-mais-usadas-no-brasil/>
2 BELING, Fernanda. As 10 maiores redes sociais em 2020. Disponível em: <https://www.oficinadanet.com.br/post/16064-quais-sao-as-dez-maiores-redes-sociais>