O BRASIL PRECISA OLHAR PARA O AMAPÁ
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
Na mais grave crise energética por que passou o Brasil nos últimos anos, o Amapá tem sua população entregue à prova sorte com um apagão que já dura vários dias.
A população de Macapá lotou todos os hotéis com gerador próprio para dormir com alguma ventilação, luminosidade e serviços como internet.
Mas, imagina-se como ficou a população que, sem recursos, não poderia pagar hospedagem nesses hotéis.
Das 16 cidades do estado, apenas três —Oiapoque, Laranjal do Jari e Vitória do Jari— mantêm a energia porque são abastecidas por sistemas independentes. A capital Macapá ficou com o fornecimento de luz completamente suspenso.
No dia 03 de novembro de 2020, às 20 horas e 47 minutos, a subestação de Energia de Macapá incendiou, sendo temerário afirmar nesse instante se em decorrência de descarga elétrica ou deficiência de manutenção, pois existe investigação em andamento.
O Amapá está conectado ao Sistema Interligado Nacional (a rede de linhas de transmissão), desde 2015, por meio de uma única linha. O investimento é privado: antes, era da espanhola Isolux, que entrou em recuperação judicial, atualmente Gemini Energy, controlada por fundos de investimentos. São quase 1,2 mil quilômetros de linhas entre Manaus (AM) e Macapá (AP). Foi na subestação dessa empresa que ocorreu a explosão.
Dos três transformadores, um estava em manutenção, um explodiu e o outro foi danificado pelo fogo. Se a operação para purificar o óleo desse equipamento der certo, 70% do Estado poderá ter o fornecimento de energia retomado neste fim de semana – e o governo não descarta a possibilidade de racionamento de energia até que a situação possa ser normalizada. Se der errado, ainda pode levar mais uma semana a chegada de um novo equipamento desse porte até o Estado, já que ele precisa ser desmontado, transportado por avião ou balsas e montado novamente. Uma operação de guerra terá que ser lançada.
Embora o incidente tenha ocorrido numa empresa privada, o Amapá tem outros problemas quando se trata de energia, algo que expõe uma série de fragilidades que criam um ciclo vicioso muito além da falta de investimentos.
A distribuidora CEA, do governo do Estado, responsável pelos postes, nem sequer tem contrato de concessão: opera em um regime precário, à espera de uma privatização, e vive em dificuldades financeiras há pelo menos 15 anos.
Imagina-se o caos criado para a população, sem energia, sem água, sem poder sacar dinheiro em agências bancárias, sem poder se comunicar por vários dias. Ocorreu a perda de mercadorias que necessitam de refrigeração
Houve uma corrida aos supermercados para estocar alimentos não perecíveis. Os postos de combustíveis ficaram lotados, pois os geradores, movidos à diesel, são a única solução imediata.
Em Macapá, a eleição foi adiada com uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral, num quadro em que o candidato à prefeitura local, irmão do atual presidente do Senado, estava perdendo pontos nas pesquisas devido a esse grave infortúnio que abateu a população.
II – A RESPONSABILIDADE CIVIL
Discute-se sobre a responsabilidade civil.
As empresas que firmam contratos para a execução de serviços como fornecimento de água ou energia, ou construção e conservação de rodovias, são responsabilizadas pelos possíveis danos na mesma proporção do poder público executando os mesmos serviços.
Para o STJ, é aplicada a teoria de risco administrativo do negócio.
O ministro Villas Bôas Cueva resumiu o entendimento do tribunal no julgamento do REsp 1.330.027: “Quanto à ré, concessionária de serviço público, é de se aplicar, em um primeiro momento, as regras da responsabilidade objetiva da pessoa prestadora de serviços públicos, independentemente da demonstração da ocorrência de culpa. Isso porque a recorrida está inserta na Teoria do Risco, pela qual se reconhece a obrigação daquele que causar danos a outrem, em razão dos perigos inerentes a sua atividade ou profissão, de reparar o prejuízo”.
Ao julgar o REsp 1.095.575, a ministra Nancy Andrighi lembrou que, mesmo antes da introdução do Código Civil de 2002, já era reconhecida a responsabilidade objetiva da concessionária de serviços públicos, tendo em vista o risco inerente à atividade exercida.
Sabe-se que se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde, sem dúvida, por esta deficiência, por essa negligência, que ensejou o dano. Somente descabe responsabilizar o Poder Público se, inobstante, atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força humana ou material alheia.
Tal responsabilidade é baseada na culpa.
A culpa relaciona-se com negligência, imprudência ou imperícia. O Poder Público, devendo atuar, e de acordo com certos padrões, não atua, ou se atua o faz de forma deficiente, que se torna insuficiente para deter o evento lesivo.
Penso que há uma presunção de culpa da parte da Administração, diante do que se tem colhido. Sendo assim, nos litígios que podem ser ajuizados contra a União Federal, o Estado do Amapá e a concessionária, em face dos prejuízos trazidos aos particulares, a vítima do dano fica desobrigada de comprová-lo. Tal a correta lição de Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 17ª edição, pág. 887), quando diz que tal presunção, entretanto, não elide o caráter subjetivo desta responsabilidade, pois, se o Poder Público demonstrar que se comportou com diligência, perícia e prudência, estará isento da obrigação de indenizar, que, para a doutrina italiana, implica ressarcimento, pois se acusa por ato ilícito.
A questão ainda poderá ser discutida sob o ângulo da omissão do Poder Público para manter ou conservar o sistema, e essa ausência de conduta venha a trazer prejuízos à sociedade, em face da falta de energia, que, assim, tenha causado um prejuízo. Entendo, à luz de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, que a responsabilidade da Administração por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funciona ou funciona mal ou com atraso, ou grave deficiência, atingindo os usuários dos serviços públicos.
Porém, se for identificado que o ato da Administração é comissivo, não tenho dúvida em dizer que aplica-se a teoria do risco, a teoria objetiva, de forma a eximir a prova da culpa.
Há responsabilidade objetiva quando basta, para caracterizá-la, a simples relação causal entre um acontecimento e o efeito que produz.
No caso em discussão, discute-se se há responsabilidade subjetiva, por comprovação de culpa, se houver o caminho de fundamentação de indenização por falta de serviço, sendo necessário que se exponha que houve prática de comportamento proibido ou desatendimento considerado indesejado dos padrões, que são legalmente exigíveis uma vez que o direito se encontraria transgredido.
A teoria da falha do serviço, penso eu, é o caminho a trilhar diante de argumentos trazidos para pleitear a indenização como consequência dos danos que foram trazidos pelo apagão, que atingiu o Estado do Amapá, um triste acontecimento que não poderá ser relegado apenas aos livros de história e às estatísticas.
Com o apagão a população ficou descaradamente sem proteção e os crimes contra o patrimônio passaram a proliferar.
Na matéria já decidiu o Supremo Tribunal Federal que o dever de indenizar, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil objetiva do Poder Público, supõe, dentre outros elementos (RTJ 163/1107-1109, v.g.), a comprovada existência do nexo de causalidade material entre o comportamento do agente e o “eventus damni”, sem o que se torna inviável, no plano jurídico, o reconhecimento da obrigação de recompor o prejuízo sofrido pelo ofendido. - A comprovação da relação de causalidade - qualquer que seja a teoria que lhe dê suporte doutrinário (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária o u teoria da causalidade adequada) - revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido. . O dever de indenizar, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil objetiva do Poder Público, supõe, dentre outros elementos (RTJ 163/1107-1109, v.g.), a comprovada existência do nexo de causalidade material entre o comportamento do agente e o “eventus damni”, sem o que se torna inviável, no plano jurídico, o reconhecimento da obrigação de recompor o prejuízo sofrido pelo ofendido. - A comprovação da relação de causalidade - qualquer que seja a teoria que lhe dê suporte doutrinário (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária o u teoria da causalidade adequada) - revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido. Doutrina. Precedentes... “ (RE 481.110-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 9.3.2007).
Mas, poder-se-á se falar em responsabilidade subsidiária do ente público.
Em determinados casos, mesmo a concessão integral dos serviços não é suficiente para afastar a responsabilidade solidária do Estado para responder pelos possíveis danos. Ao analisar um caso de danos ambientais decorrentes da poluição de rios no estado de São Paulo, a Segunda Turma do STJ decidiu que o município que firma convênio para serviços de água e esgoto com uma empresa é fiador deste convênio, não podendo excluir sua responsabilidade por eventuais danos causados.
“O município é responsável, solidariamente, com o concessionário de serviço público municipal, com quem firmou convênio para realização do serviço de coleta de esgoto urbano, pela poluição causada no Ribeirão Carrito, ou Ribeirão Taboãozinho”, afirmou na ocasião a ministra Nancy Andrighi, relatora para o acórdão.
Sendo assim não se pode dizer que a União Federal e o Estado do Amapá estejam isentos de responsabilidade civil para o caso.
III – A QUESTÃO À LUZ DO CDC
O Código de Defesa do Consumidor determina que os prejudicados podem se ressarcir de qualquer um dos responsáveis pelo prejuízo. As reclamações devem recair, primacialmente, sobre a concessionária do serviço, responsável direta pelo apagão. Essa responsabilidade é objetiva, independente de culpa.
IV – O SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
O seguro aplicável é o seguro de responsabilidade civil, que indeniza os danos causados a terceiros. Estes danos podem ser de três naturezas: materiais/patrimoniais, corporais e morais. Não há danos corporais, apesar de ser possível uma reclamação por morte de paciente que veio a óbito em função da falta de energia.
V – A RESPONSABILIDADE PENAL
Ademais há a responsabilidade penal.
Tem-se o artigo 265 do Código Penal:
Art. 265 - Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
Parágrafo único - Aumentar-se-á a pena de 1/3 (um terço) até a metade, se o dano ocorrer em virtude de subtração de material essencial ao funcionamento dos serviços. (Incluído pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967)
Trata-se de crime para o qual cabe a suspensão condicional do processo, segundo o artigo 89 da Lei nº 9.099/95, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal ).
§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:
I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II - proibição de frequentar determinados lugares;
III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;
IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
Atentar significa perpetrar atentado ou colocar em risco, através de atos executórios, alguma coisa ou alguém. O objeto é a segurança ou o funcionamento de serviço de utilidade pública, tal qual é o que ocorre com os hospitais.
O elemento do tipo é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Admite-se o dolo eventual, na forma de assumir os riscos do resultado produzido.
Segurança é condição daquilo que se pode confiar, funcionamento é a movimentação de algo com regularidade.
Trata-se de crime formal(que não exige para a sua consumação um resultado naturalístico), ocorrendo dano haverá um exaurimento.
A tentativa é de difícil concretização.
Por sua vez, tem-se o artigo 286 do Código Penal.
Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa.
No caso em tela, será mister apurar se houve conduta dolosa por parte dos responsáveis pelo serviço de energia elétrica de forma que agissem em dolo mesmo que na forma eventual.