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COMENTÁRIOS SOBRE O CRIME QUALIFICADO DE MAUS-TRATOS CONTRA CÃES E GATOS (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998)

Os presentes comentários se referem, substancialmente, ao parágrafo 1º-A do art. 32 da Lei 9.605/1998, introduzido pela Lei 14.064/2020, tratando do crime qualificado de maus-tratos contra cães e gatos

COMENTÁRIOS SOBRE O CRIME QUALIFICADO DE MAUS-TRATOS CONTRA CÃES E GATOS (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998)

 

Vicente de Paula Ataide Junior

Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da UFPR. Doutor em Direito pela UFPR. Pós-Doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR. Líder do ZOOPOLIS – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal do Centro Universitário Internacional (UNINTER), em parceira com a Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE-PR). Juiz Federal em Curitiba.

 

Lucas Eduardo de Lara Ataide

Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), coordenado pelo Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST). Advogado.

 

 

1. A Lei 14.064/2020 e sua vigência

 

Os presentes comentários se referem, substancialmente, ao parágrafo 1º-A do art. 32 da Lei 9.605/1998, introduzido pela Lei 14.064/2020, o qual apresenta a seguinte redação, com destaque nosso:

 

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

 

A Lei 14.064/2020, batizada como “Lei Sansão”, resultou da aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.095/2019, de autoria do Deputado Federal Fred Costa (PATRIOTAS/MG), sancionada pelo Presidente da República, no dia 29 de setembro de 2020, e com vigência no dia da sua publicação, em 30 de setembro de 2020.

O propósito do presente ensaio é sugerir alguns parâmetros iniciais para a aplicação das novas disposições legais, como um pequeno manual de prática forense, razão pela qual foram suprimidas as referências bibliográficas e foram reduzidas as indicações jurisprudenciais ao mínimo indispensável.

O artigo não escapa, no entanto, de oferecer algumas notas críticas sobre a novidade, embora sucintas e pontuais, para ampliar o descortino e a compreensão da temática envolvida.

 

2. Notas sobre a denominação, o bem penalmente protegido e o sujeito passivo do crime previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998

 

É comum atribuir ao tipo penal, previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, o nome de “crime de maus-tratos contra animais”, como consta do título destes comentários.

Essa denominação é falha e reducionista porque “praticar maus-tratos” contra animais caracteriza apenas um dos núcleos verbais do tipo penal, que também reprova o “praticar ato de abuso”, o “ferir”, o “mutilar” e o “realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. Oportuno lembrar que “abandonar animais” também caracteriza “maus-tratos”, como, aliás, reconhecido pelo art. 5º, IV, da Resolução 1.236/2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Dessa maneira, uma denominação mais adequada seria, diante da pluralidade de núcleos verbais que carateriza o tipo penal, a que expressasse o bem jurídico protegido pela norma: a dignidade animal.

Ao contrário do que se costuma dizer, não é o meio ambiente, a natureza, o equilíbrio ecológico ou a biodiversidade os bens diretamente protegidos por essa norma penal. Muito menos algo como o “sentimento de solidariedade para com os animais”. A criminalização das condutas apontadas no tipo decorre da regra da proibição da crueldade contra animais, estabelecida no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, da qual se revelam o valor intrínseco de todo animal e a dignidade animal individual, independentemente das suas funções ecológicas (Cf. STF, Pleno, ADI 4983, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017).

Destarte, vislumbra-se que o sujeito passivo imediato da conduta delitiva é o animal considerado em si mesmo. Quem sofre o abuso ou os maus-tratos, quem é vítima do ferimento ou da mutilação ou quem é usado indevidamente em experiências dolorosas ou cruéis é o próprio animal. A dignidade do animal que sofre é o que se protege pela tipificação desse crime. Apenas como sujeito passivo mediato poder-se-ia cogitar o meio ambiente, bem como seus consectários.

Por essas razões, o crime previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998 será melhor denominado de “crime contra a dignidade animal”, opção terminológica que passará a ser adotada neste ensaio.

 

3. O tipo simples do crime contra a dignidade animal

 

O caput e o parágrafo primeiro do art. 32 da Lei 9.605/1998 representam o tipo simples do crime contra a dignidade animal, para o qual as penas previstas são de “detenção, de três meses a um ano, e multa.” Qualquer animal pode ser vítima desse crime, na sua modalidade simples, com exceção de cães e gatos, para os quais se criou o tipo qualificado.

É importante destacar que se trata de um tipo misto alternativo, de conduta variada: o legislador descreveu duas ou mais condutas como hipóteses de realização de um mesmo crime, de maneira que a prática sucessiva dos núcleos verbais configura um único crime.

O crime simples é apenado, além de multa, com pena de detenção. Isso significa que, nos termos do art. 33 do Código Penal, tal pena deve ser cumprida em regime semi-aberto ou aberto, salvo eventual necessidade de transferência, por regressão, a regime fechado.

Por aplicação do art. 61 da Lei 9.099/1995, o tipo simples é considerado infração penal de menor potencial ofensivo (a pena máxima não é superior a 2 anos), submetido, por isso, aos Juizados Especiais Criminais, nos quais:

(1) o inquérito policial pode ser substituído pelo termo circunstanciado, descabida, em regra, a prisão em flagrante delito ou a exigência de fiança (art. 69, Lei 9.099/1995);

(2) cabe a transação penal, mediante proposta do Ministério Público – desde que tenha havido a prévia composição do dano animal (“ambiental”, nos termos da Lei), salvo em caso de comprovada impossibilidade (art. 27, Lei 9.605/1998) –, aceita pelo autor da infração e seu defensor, pela qual o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos, nem constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível (art. 76, Lei 9.099/1995);

(3) cabe a suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei 9.099/1995, pelo qual “Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena”, mas com as modificações operadas pelo art. 28 da Lei 9.605/1998.

 

4. O tipo qualificado do crime contra a dignidade animal

 

O parágrafo 1º-A, introduzido pela Lei 14.064/2020, criou uma qualificadora do crime contra a dignidade animal: quando a vítima do crime for cão (animal da espécie Canis lupus familiaris) ou gato (animal da espécie Felis catus), as penas são mais rigorosas: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição de guarda.

No crime qualificado, a pena privativa de liberdade é de reclusão, significando que pode, desde o início, a depender das condições do caso, ser cumprida em regime fechado, ou seja, “em estabelecimento de segurança máxima ou média” (art. 33, § 1º, I, CP).

Além disso, como a pena máxima é superior a dois anos, deixa de ser considerada infração penal de menor potencial ofensivo, escapando dos Juizados Especiais Criminais e da Lei 9.099/1995. Ademais, também não se trata de infração de médio potencial ofensivo, pois deixa de ser compatível com a suspensão condicional do processo, em razão de sua pena mínima ser superior a um ano.

Trata-se, portanto, de infração de máximo potencial ofensivo.

Em consequência:

(1) descabe a simples elaboração de termo circunstanciado em lugar do inquérito policial; passa a ser exigível o exame de corpo de delito no animal vitimado (art. 158, CPP), preferencialmente elaborado por Médico Veterinário, com especialização em Medicina Veterinária Legal (art. 159, CPP);

(2) cabe a prisão em flagrante do autor da infração, além da sua conversão em prisão preventiva (art. 313, I, CPP), após audiência de custódia;

(3) a liberdade provisória pode ser concedida mediante fiança arbitrada pelo juiz, mas não pela autoridade policial (art. 322, CPP);

(4) descabe transação penal (art. 76, Lei 9.099/1995), devendo o processo penal seguir, no Juízo criminal comum, o procedimento penal comum ordinário (art. 394, § 1º, I, CPP);

(5) também não cabe, como já dito, a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/1995), dado que a pena mínima cominada é superior a um ano.

 

5. Elemento subjetivo do injusto

 

O crime contra a dignidade animal é doloso, ou seja, exige-se a vontade do agente de abusar, de maltratar, de ferir, de mutilar ou de realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Posto dessa forma, conclui-se que é um tipo simétrico ou congruente, não exigindo um elemento subjetivo transcendental ao tipo objetivo (não se exige um fim especial de agir).

Mesmo não havendo forma culposa do crime, a prática de maus-tratos contra animais, por negligência, imprudência ou imperícia, costuma ser punida como infração administrativa, na forma do art. 70 da Lei 9.605/1998, do art. 29 do Decreto 6.514/2008, além dos dispositivos pertinentes das legislações estaduais e municipais de proteção animal.

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6. Consumação e tentativa

 

O crime em análise trata-se, indubitavelmente, de crime de dano. Dessa forma, consuma-se o crime quando o agente, ao praticar qualquer dos verbos do tipo, vulnera a esfera física ou psíquica do animal.

É possível a tentativa, desde que, iniciada a execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente (o agente, por exemplo, empunhando um pedaço de pau, é impedido, por terceiro, de espancar o cão). Nesse caso, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços (art. 14, II, CP).

 

7. Causa de especial de aumento de pena

 

Tanto em relação ao tipo simples (art. 32, caput e § 1º), como ao tipo qualificado (art. 32, § 1º-A), ocorrendo a morte do animal submetido a abuso, a maus-tratos, a ferimento, a mutilação ou experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, a pena será aumentada, de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), na terceira fase da dosimetria penal.

Oportuno observar que matar animal silvestre, com vontade dirigida à produção do resultado morte, caracteriza o crime do art. 29 da Lei 9.605/1998, a qual, se for cruel, recebe a circunstância agravante do art. 15, II, m, da Lei 9.605/1998. Na hipótese da morte do animal silvestre ser culposa, o crime será o previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, com a majorante do seu parágrafo segundo, naquilo que se chama de crime preterdoloso (prática de um crime doloso, mas, por culpa, advém resultado mais grave).

Matar animal doméstico ou domesticado caracteriza, seja doloso, seja preterdoloso, o crime do art. 32 da Lei 9.605/1998, com a causa especial de aumento de pena (majorante) do seu parágrafo segundo.

Matar cão ou gato caracteriza, em qualquer hipótese admitida (doloso ou preterdoloso), o crime qualificado do art. 32, § 1º-A da Lei 9.605/1998, com a majorante do parágrafo segundo.

 

8. Experiência dolorosa ou cruel em cão ou gato vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos: tipo simples ou qualificado?

 

O novo § 1º-A do art. 32 é claro em estabelecer, com destaque nosso, que “quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda”.

As condutas descritas no caput do art. 32 da Lei 9.605/1998 se restringem a “praticar ato de abuso”, “praticar maus-tratos”, “ferir” ou “mutilar”, não incluindo “realizar experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”, conduta descrita no § 1º do art. 32.

Dessa forma, ainda que criticável a opção legislativa, a conduta de realizar experiência dolorosa ou cruel em cão ou gato vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, continua caracterizando o crime contra a dignidade animal, mas em seu tipo simples.

Não obstante, quando cão ou gato vivos são submetidos a experiência dolorosa ou cruel, ainda que para fins didáticos ou científicos, não existindo recursos alternativos para evitá-la, haverá o crime qualificado (art. 32, § 1º-A) se agente não adota, voluntariamente, as cautelas previstas na Lei 11.794/2008 (“Lei Arouca”), especialmente a de desenvolver, sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas, os experimentos que possam causar dor ou angústia (art. 14, § 5º).

Nesse caso, trata-se de prática abusiva em vivissecção, atraindo o caput do art. 32, na modalidade “praticar ato de abuso”, pois a experiência dolorosa ou cruel em animais vivos, ainda que para fins didáticos ou científicos, é permitida pela Lei 11.794/2008 (dado não existir recurso alternativo para evitá-la), no entanto, a sua realização é abusiva (e criminosa), pois não adota as providências de minimização do sofrimento animal previstas em lei.

Assim sendo, a prática abusiva em vivissecção em cães e gatos caracteriza o crime qualificado previsto no art. 32, § 1º-A da Lei 9.605/1998.

 

9. A pena de proibição da guarda do animal

 

Além da pena privativa de liberdade (reclusão, de dois a cinco anos) e da pena pecuniária (multa), o tipo qualificado do crime contra a dignidade animal também impõe, cumulativamente, a pena de proibição da guarda, cuja natureza, indiscutivelmente, é de pena restritiva de direitos (art. 5º, XLVI, e, CF; art. 32, II, CP).

É muito importante observar que a Lei 14.064/2020 reconhece um vínculo jurídico diferenciado entre animais e humanos, não mais pautado pelo Direito das Coisas: fala-se em proibição de guarda, não se fala em perda da posse ou da propriedade.

Com essa perspectiva, guarda é o vínculo jurídico existente entre o humano e o animal que gera o direito do humano em manter o animal na sua companhia, bem como os seus deveres na manutenção do bem-estar animal, em todas as suas dimensões.

A pena de proibição da guarda significa que o condenado perde o direito de manter a companhia do animal vitimado. Evidentemente, pelo seu caráter sancionatório (de restrição de direitos, não de deveres), a pena não exime o condenado em relação aos seus deveres para com o animal que estava sob sua guarda, deveres esses que poderão continuar a ser dele exigidos (alimentação e cuidados médico-veterinários, por exemplo, em decorrência do seu dever de assistência material).

Essa restrição de direitos vale, inclusive, para criadores de cães e gatos (canis e gatis) que forem condenados pela prática do crime qualificado: os animais lesados não mais ficarão sob a guarda do criador.

Uma característica singular da pena de proibição da guarda é a sua cumulatividade, ou seja, ao contrário do que ocorre com as demais penas restritivas de direitos, ela não é substitutiva da pena privativa de liberdade, ou seja, impõe-se a aplicação conjunta da pena privativa de liberdade (a qual, eventualmente, pode ser substituída por outra pena restritiva de direitos – que não a proibição da guarda – nos termos do art. 7º da Lei 9.605/1998) com a pena restritiva de direito, consistente na proibição da guarda do animal-vítima (sem se esquecer da aplicação cumulativa da multa).

Essa cumulatividade entre privação de liberdade e restrição de direitos não é uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro: a Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), por exemplo, contempla semelhantes hipóteses (cf. arts. 292, 302, 303, 306, 307 e 308).

Nos termos do art. 55 do Código Penal e do art. 7º, parágrafo único, da Lei 9.605/1998, a proibição da guarda, como espécie de pena restritiva de direitos, terá a mesma duração da pena privativa de liberdade aplicada. Isso será assim, porquanto não há disposição expressa, na Lei 9.605/1998, especificando a duração dessa pena restritiva de direitos, de natureza cumulativa, como o faz o art. 293 do Código de Trânsito Brasileiro (dois meses a cinco anos).

Em função da cumulatividade, no caso de o condenado descumprir a restrição imposta e voltar a ter o animal em sua companhia, a pena de proibição da guarda, como pena restritiva de direitos, não poderá ser convertida em privativa de liberdade, conforme determina o art. 44, § 4º, do Código Penal, dado que essa conversão somente se opera quando a pena restritiva de direitos é produto da substituição da pena privativa de liberdade. Repita-se: a pena de proibição da guarda não é substitutiva, mas cumulativa.

Nesse caso, o descumprimento injustificado da pena de proibição de guarda levará o condenado a responder por mais um crime: o de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, previsto no art. 359 do Código Penal (exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial: Pena – detenção, de três meses a dois anos, ou multa), autorizando, em tese, a decretação da prisão preventiva, caso presentes seus requisitos autorizadores (art. 312, CPP), dado que já houve condenação anterior por crime doloso, em sentença transitada em julgado (art. 313, II, CPP).

 

10. Efeito secundário da condenação: incapacidade para o exercício da guarda ou tutela de animais

 

A sentença condenatória acarreta, além dos efeitos propriamente penais, efeitos secundários de natureza civil ou administrativa (extrapenais), que não possuem caráter punitivo, mas preventivo.

O art. 91 do Código Penal prevê efeitos extrapenais genéricos, automáticos e imediatos, ou seja, que não dependerão de declaração judicial.

Por outro lado, o art. 92 do mesmo diploma legal prevê efeitos extrapenais específicos, os quais, ao contrário dos efeitos genéricos, devem ser justificados na sentença.

Dessa forma, é importante constatar que a sentença penal condenatória, pelo crime qualificado previsto no art. 32, § 1º-A, da Lei 9.605/1998, pode produzir um efeito extrapenal secundário: como se trata de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão, cometido contra animal sujeito à guarda e à tutela, o juiz, na sentença, pode declarar a incapacidade do condenado para o exercício da guarda e tutela de animais, nos termos do art. 92, II, do Código Penal.

Essa eficácia torna-se possível a partir do momento em que a Lei 14.064/2020 estabeleceu, expressamente, a guarda como um novo vínculo jurídico entre humanos e animais (ao menos em relação a cães e gatos). Acontece que a guarda é um dos elementos componentes da tutela (art. 1740, III, combinado com o art. 1634, II, ambos do Código Civil), instituto o qual, notoriamente, se associa à relação entre humanos e animais domésticos, especialmente no âmbito das chamadas famílias multiespécies: não se fala mais em dono do cão ou do gato, fala-se em tutor do cão ou do gato. A possibilidade de se aplicar institutos do Direito das Famílias à relação entre humanos e animais já foi legitimada pelo Superior Tribunal de Justiça, em importante precedente (STJ, 4ª Turma, REsp 1713167/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018, publicado em 09/10/2018). Além disso, o enunciado 11 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) afirma que “Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.”

Ora, o art. 92, II, do Código Penal estabelece como efeito secundário da sentença penal condenatória, “a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado.”

A presente hipótese se amolda perfeitamente a esse dispositivo legal: incapacidade para o exercício da tutela nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra o tutelado (no caso, o animal).

Essa eficácia sentencial é muito importante porque é a partir dela que se protegerão os animais contra o condenado cujo comportamento se revela incompatível com a guarda e tutela de animais, pois essa incapacidade pode ser estendida para alcançar outros animais, além da vítima do crime. Afinal, não é razoável que o condenado perca a guarda do animal abusado, maltratado, ferido ou mutilado, permitindo-se que o mesmo crime venha a ser praticado contra os outros animais que estão, ou que venham a estar, sob a guarda do condenado. Essa possibilidade violaria a regra da proibição da crueldade, disposta no art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal e o correlato princípio da dignidade animal.

Como esse efeito da sentença condenatória não é automático, exigindo fundamentação específica (art. 92, parágrafo único, Código Penal), permite-se ao juiz considerar as peculiaridades de cada caso para definir, com mais justiça, a extensão dessa eficácia incapacitante. Em outras palavras, o juiz, na sentença condenatória, perquirindo o que o caso concreto revela (especialmente as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal), poderá definir a amplitude dessa incapacidade, visando a proteger outros animais de futuras vulnerações à sua dignidade individual.

Quanto ao animal vítima do crime qualificado, em relação ao qual se operou a perda da guarda, essa incapacidade para guarda e tutela será permanente, pois é vedada a reintegração na situação anterior, mesmo em caso de reabilitação criminal do condenado (art. 93, parágrafo único, CP). No tocante a outros animais, a incapacidade é provisória, podendo o condenado, caso reabilitado, reaver a sua capacidade para guardar e tutelar animais (art. 93 et seq., CP), por meio de nova decisão judicial.

Reafirme-se que se tratam de efeitos extrapenais, de natureza não punitiva, mas sim preventiva, não havendo que se falar, nessa hipótese, de bis in idem entre a pena do tipo qualificado e o efeito extrapenal do art. 92, II do Código Penal.

Ainda que a declaração judicial da incapacidade para o exercício da guarda e tutela de animais, como eficácia da sentença condenatória, possa se operar de ofício, é recomendável que o Ministério Público o requeira expressamente, dada a novidade que a nova Lei representa na prática do foro criminal.

 

11. Busca e apreensão do animal

 

Dentre outras razões, o Código de Processo Penal autoriza a busca visando a apreender pessoas vítimas de crimes (art. 240, § 1º, g).

Ainda que nos dias atuais sejam encontrados obstáculos jurídicos para se afirmar que os animais sejam pessoas, dada a ausência de atribuição legal de personalidade civil (tema controvertido, no entanto), é certo que são seres vivos dotados de valor intrínseco e dignidade própria (art. 225, § 1º, VII, in fine, Constituição Federal) e que são as vítimas do crime previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998.

Dessa forma, também pelo permissivo da alínea g do parágrafo primeiro do art. 240 do CPP pode ser requerida a busca e apreensão dos animais envolvidos no crime do art. 32 da Lei 9.605/1998, considerando, além do mais, que o art. 3º do CPP admite interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito, para a aplicação do Direito Processual Penal.

Essa medida se apresenta ainda mais adequada quando de tratar de cães e gatos, dado que a proibição da guarda é prevista como pena definitiva em resposta ao cometimento do crime qualificado (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998), além da possibilidade de declaração da incapacidade para o exercício da guarda e tutela de animais, como efeito secundário da sentença penal condenatória, conforme visto anteriormente.

A restrição decorrente dessa medida processual deve persistir durante todo o processo (art. 118, CPP) e, no caso de cães e gatos, será substituída pela pena de perda da guarda, aplicada pela sentença penal condenatória, após seu trânsito em julgado (art. 147, Lei 7.210/1984 – Lei de Execuções Penais). Caso o animal vítima do crime (simples ou qualificado) seja tutelado por outro humano que não o réu ou o indiciado, é cabível o pedido de restituição, fundado no art. 120 do CPP.

Em função do princípio da primazia da liberdade natural, extraído do art. 25, § 1º da Lei 9.605/1998, os animais apreendidos “serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados.” E, até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas nesse parágrafo, “o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico.” (art. 25, § 2º).

No caso dos animais domésticos, porém, especialmente os animais de companhia, como cães e gatos, descabe sua reintegração ao “habitat”, dado não serem animais silvestres, devendo ser encaminhados a programas de acolhimento institucional ou familiar de animais.

Descabe nomear o próprio infrator como depositário do animal (art. 840, § 1º, Código de Processo Civil, por analogia), pois isso significaria devolver a vítima ao seu algoz, prática que contraria o espírito protetivo inspirador da própria medida (alínea g do parágrafo primeiro do art. 240 do CPP).

 

12. Responsabilidade penal da pessoa jurídica

 

O art. 3º da Lei 9.605/1998 determina que as pessoas jurídicas também sejam responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Nesse caso, a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

Isso que dizer que, além do efetivo molestador do animal (cf. art. 32 da Lei 9.605/1998), a pessoa jurídica a que ele pertence também poderá sofrer responsabilização penal. Assim sendo, maus-tratos praticados no âmbito de petshops, canis ou gatis poderão atrair a responsabilização conjunta do responsável direto pelos maus-tratos e da respectiva pessoa jurídica.

As penas aplicáveis às pessoas jurídicas são previstas nos arts. 21 a 23 da Lei 9.605/1998, sendo que, de acordo com o art. 24 da mesma lei, “a pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.”

 

13. Prescrição da pretensão punitiva

 

Para o crime contra a dignidade animal, na sua modalidade simples (art. 32, caput e § 1º), a prescrição da pretensão punitiva se opera em 4 (quatro) anos, nos termos do art. 109, V, do Código Penal.

Para o crime qualificado contra cães e gatos, a prescrição é mais elástica, permitindo mais tempo para a persecução criminal: 12 (doze) anos, nos termos do art. 109, III, do Código Penal.

 

14. Concurso de crimes

 

Cada animal vítima de abuso, maus-tratos, ferimento, mutilação ou experimentação indevida ou abusiva é sujeito passivo de um crime doloso tipificado no art. 32 da Lei 9.605/1998, seja na sua forma simples, seja na sua forma qualificada.

Isso significa que a existência de mais de um animal vitimado pelo infrator produz mais de um crime, atraindo as regras sobre concurso de crimes.

Diante disso, constatada a prática de mais uma ação ou omissão, em contextos distintos, estando ausente os requisitos autorizadores da continuidade delitiva, o agente incorrerá no concurso material de crimes (art. 69, caput, CP), adotando-se, nesse caso, o critério da cumulação material de penas (somando-se as penas). A título exemplificativo, poder-se-ia pensar na hipótese em que o agente, em determinado dia, lesiona, mediante chutes, um cão, e, em dia distinto, estrangula um gato.

De outro modo, praticada uma única ação ou omissão e que atinja, concomitantemente, dois ou mais animais, será caso de concurso formal próprio de crimes (art. 70, 1ª parte, CP), hipótese em será aplicada uma única pena se iguais (concurso formal homogêneo), com acréscimo de um sexto até metade, ou a mais grave, se diferentes (concurso formal heterogêneo), exasperada nos mesmos índices (critério da exasperação de penas). Seria a hipótese de um agente que lança chumbinho venenoso para matar um gato, e acaba matando, além do alvo pretendido, outros animais que também se encontram visivelmente no local, para o que o agente assume o risco de produzir os demais resultados mortíferos (o dolo eventual). O agente, com sua conduta única, quer matar um gato, mas assume o risco de matar outros, o que de fato ocorre.

Esses crimes também poderão ser cometidos em concurso formal impróprio (art. 70, caput, 2ª parte, CP), na hipótese em que a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, autorizando a aplicação cumulativa das penas. Imagine-se a hipótese em que o agente aguarda uma cadela parir seus filhotes e, ocorrido o parto, abandona todas as crias, deixando-as à própria sorte. Existem desígnios autônomos pois o agente tem o propósito de produzir, com uma única conduta (abandonar os filhotes), mais de um crime (maus-tratos em relação a cada um dos filhotes).

Ademais, ainda poderá ser caracterizada a continuidade delitiva (crime continuado), quanto o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, praticar dois ou mais crimes da mesma espécie (no caso, os crimes do art. 32 da Lei 9.605/1998) e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro. Nesse caso, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços (art. 71, caput, CP).

Na circunstância de ocorrer o concurso entre um crime no seu tipo simples e outro no seu tipo qualificado (o infrator maltrata um coelho e um cão que estão sob sua guarda, por exemplo), também haverá a cumulação de penas, caso caracterizado o concurso material ou concurso formal impróprio, ou a exasperação de penas na hipótese de concurso formal próprio ou continuidade delitiva.

Nessa última hipótese, ambos os crimes (mesmo o crime contra o coelho, ainda considerado de menor potencial ofensivo) serão processados perante a Justiça criminal comum, dada a conexão, mas remanesce a possibilidade de transação penal em relação ao crime de menor potencial ofensivo (art. 60, caput e parágrafo único da Lei 9.099/1995, com a redação dada pela Lei 11.313/2006). Não obstante, O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano” (súmula 243 STJ). No mesmo sentido: “Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano” (súmula 723 STF).

 

15. Organização criminosa para a prática do crime qualificado contra cães e/ou gatos

 

Com forte inspiração na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), a atual Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) é um importante diploma normativo de combate às societas criminis, contendo, além da tipificação de crimes, meios especiais de investigação e de obtenção de provas, cuja previsão é de extrema relevância e eficiência para o combate de estruturas complexas voltadas ao crime.

A Lei 12.850/2013 conceitua organização criminosa como “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. (art. 1º, § 1º).

Com isso, observa-se que a nova qualificadora do crime contra a dignidade animal é passível de ser praticada por meio de organização criminosa. Isso porque a pena máxima cominada para o crime qualificado contra cães de gatos é de 5 (cinco) anos de reclusão (art. 32, § 1º-A, Lei 9.605/1998). Assim, a hipótese de associação de quatro ou mais pessoas, de forma estruturada e ordenada, mediante divisão de tarefas, com o fim de praticar crime (ou crimes) de maus-tratos contra cães e gatos, subsume-se integralmente aos requisitos legais do artigo 1º, § 1º da Lei 12.850/2013.

Um caso infelizmente comum, mas ajustável à hipótese de organização criminosa, é a popularmente denominada “rinha de cães”. É possível encontrar a associação de quatro ou mais indivíduos que decidem explorar, economicamente, esse “vale tudo de cães”. Geralmente, um dos agentes é o responsável pela captação dos animais; outro agente é o encarregado pelo marketing do evento criminoso; um terceiro fica incumbido pela disponibilização do local e um último indivíduo faz o financiamento inicial de toda a trama delitiva; não se descarta, até mesmo, a participação de um ou mais médicos veterinários, responsáveis por garantir um atendimento imediato aos cães após as disputas.

Para esse caso, estaria plenamente configurado o crime de “organização criminosa”, cujo preceito secundário é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa. É importante apontar que, além do crime de organização criminosa, o agente responderá, em concurso material de crimes (art. 69 do CP), pelo crime contra a dignidade de cães e gatos (art. 32, §1º-A, Lei 9.605/1998), o que torna a repressão penal bem mais severa. Destarte, considerando a organização criminosa, todos os meios de investigação e de obtenção de provas serão admissíveis, tais como colaboração premiada, ação controlada e infiltração de agentes (art. 3º et seq., Lei 12.850/2013).

 

16. Impossibilidade de acordo de não persecução penal

 

O acordo de não persecução penal, instituto de justiça negociada, é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, homologado judicialmente, celebrado pelo membro do Ministério Público e o autor, em tese, do fato delituoso, necessariamente assistido pelo seu defensor. A celebração do pacto sujeitará o infrator a determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Ministério Público de não perseguir judicialmente os fatos sumariamente esclarecidos na investigação, caso em que, se tais condições forem cumpridas, será declarada extinta a punibilidade do agente. Diferencia-se de outros institutos de justiça negociada por exigir a circunstanciada e formal confissão do investigado.

Introduzido no ordenamento jurídico pela Resolução 181/2017 e, posteriormente, pela Resolução 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o acordo de não persecução penal foi uma das grandes novidades do denominado “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019) e encontra-se agora inteiramente regulamentado no art. 28-A do Código de Processo Penal.

Da leitura do referido art. 28-A, caput, observa-se que existem requisitos obrigatórios para o acordo, além da já mencionada confissão: (1) não seja caso de arquivamento (ou seja, exige-se suporte fático-probatório mínimo); (2) o crime seja apenado com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; (3) o crime seja cometido sem violência ou grave ameaça (grifo nosso); (4) seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

O § 2º do art. 28-A, por sua vez, veda a celebração do acordo de não persecução penal na hipótese em que for cabível ou for constatado: (1) transação penal; (2) reincidência; (3) habitualidade criminosa; (4) ter o agente sido beneficiado, nos últimos cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação ou suspensão condicional do processo.

Diante dos requisitos acima elencados, conclui-se pela manifesta impossibilidade de celebração do acordo de não persecução penal, no que se refere ao crime do art. 32 da Lei 9.605/1998, incluindo o seu parágrafo §1º-A, visto que o crime contra a dignidade animal possui a própria violência como elementar do tipo de injusto, em todos os seus núcleos.

 

17. Considerações finais

 

A inclusão do parágrafo § 1º-A no art. 32 da Lei 9.605/1998, criando o tipo qualificado do crime, quando a vítima for cão ou gato, inequivocamente deve ser encarado como um avanço na proteção jurídica da dignidade animal.

A resposta penal mais aguda indica que o ordenamento jurídico passa a manifestar mais respeito e adequação ao comando constitucional de proibição da crueldade contra animais e ao princípio da dignidade animal decorrente do mesmo dispositivo da Constituição.

Em outras palavras, não se pode deixar de admitir que o legislador, percebendo que a proteção era demasiadamente ineficaz, atento ao postulado da proibição da proteção insuficiente (untermassverbot) o que a doutrina designa como garantismo positivo – e visando a dar concretude ao mandado de criminalização da crueldade, previsto no art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal, optou por dar punição mais severa para quem atentar contra a dignidade de cães e gatos.

Mas esse avanço deve ser considerado apenas um primeiro passo.

O legislador precisa ir adiante e também reforçar a tutela penal da dignidade das outras espécies animais. Existem projetos de lei em andamento para isso, os quais precisam de atenção e prioridade. Dentre eles, destaca-se o PL 4400/2020, de autoria dos Deputados Federais Ricardo Izar e Célio Studart, o qual visa a ampliar as penas para os crimes contra a fauna, de uma maneira geral, tipificando melhor o crime de tráfico de animais silvestres, inclusive com modalidade qualificada.

Caso esse passo político a mais não seja dado, com urgência, as críticas quanto à desproporcionalidade interna das penas remanescerão com sentido e contundência, pois não há justa causa para punir, tão mais severamente, os infratores da dignidade de cães e gatos, deixando desabrigadas todas as demais espécies animais, para as quais, a violência, a tortura e a opressão continuam sendo definidas como infrações penais de menor potencial ofensivo, atraindo as branduras do sistema dos juizados especiais criminais.

De resto, as críticas quanto à desproporcionalidade externa, ou seja, a desproporção entre as penas do novo crime qualificado contra a dignidade animal e as penas previstas para a tutela penal de humanos, parecem por demais radicais. Não apenas porque vários dos crimes previstos para vítimas humanas possuem tipos qualificados com penas acentuadamente maiores, mas porque a proteção da dignidade dos animais conta, praticamente, com apenas um tipo penal em todo o ordenamento jurídico.

Por fim, será interessante verificar como os Tribunais vão se comportar, a partir de agora, diante do novo crime qualificado do art. 32, § 1º-A da Lei 9.605/1998, o qual também atrairá, como visto, o julgamento dos crimes conexos contra a dignidade animal (art. 32, caput e § 1º), permitindo, agora sim, que tenhamos, no Brasil, uma jurisprudência sobre a tutela penal dos animais, capítulo tão importante do Direito Animal brasileiro.

Sobre os autores
Vicente de Paula Ataide Junior

Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná. Professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Federal do Paraná. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (ZOOPOLIS). Pesquisador do EKOA: Direito, Movimentos Sociais e Natureza da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenador do Programa de Extensão em Direito Animal da Universidade Federal do Paraná. Coordenador e Professor do Curso de Especialização em Direito Animal (EAD), da ESMAFE-PR/UNINTER. Juiz Federal titular da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Paraná. Ex-Juiz Federal membro da Turma Regional de Uniformização da 4ª Região. Professor de Direito Processual Civil em diversas entidades, entre elas a Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE/PR), a Escola da Magistratura do Paraná (EMAP), a Escola da Associação dos Magistrados do Trabalho do Paraná (EMATRAIX), a Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR), a Escola Superior da Advocacia da OAB/PR (ESA-PR), o Instituto Romeu Bacellar e a Faculdade de Pinhais (FAPI-PR). Formador de Magistrados pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (EMAGIS). Foi Promotor de Justiça do Ministério Público de Rondônia (1996-2002). Ex-Diretor de Assuntos Jurídicos da Associação Paranaense dos Juízes Federais (APAJUFE), na gestão 2016/2018. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Membro-Fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual (IPDP). Membro da Comissão de Direito Socioambiental da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

Lucas Eduardo de Lara Ataide

Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), coordenado pelo Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST). Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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