“Mulheres (e homens) que prezam a democracia podem discordar sobre as mais variadas matérias, mas precisam se unir sempre que esteja em causa a batalha pela igualdade de gênero e contra a opressão e as desvantagens que ainda marcam a condição feminina.”1
Em matéria recentemente divulgada na mídia digital2, foi constatado, já durante o prélio eleitoral de 2020 que a maioria dos partidos está descumprindo a regra eleitoral sobre o financiamento de campanhas às mulheres e negros, segundo levantamento feito com base nos dados disponíveis no portal do Tribunal Superior Eleitoral.
Tal corte superior decidiu, em 2018 e por unanimidade, que os partidos deveriam repassar 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o FEFC, para as candidaturas de mulheres. No caso de partidos com mais de 30% de candidatas, o repasse deveria ser proporcional, respeitada o “piso” de 30%3.
A então presidente do TSE, Ministra Rosa Weber, fundamentou a necessidade da “discriminação positiva” como corolário do princípio da igualdade, vejamos:
Em virtude do princípio da igualdade, não pode o partido político criar distinções na distribuição desses recursos, exclusivamente baseado no gênero. Assim, não há como deixar de reconhecer, como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados à campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos.
Apesar de o número de candidaturas femininas ter sido o recorde nas eleições de 2020, segundo o TSE, esse número ainda não é tão expressivo: apenas 34% das candidaturas registradas. Esse é, como discorreremos abaixo e como vimos ao longo do curso o reflexo de uma sociedade culturalmente machista e discriminante de gênero em participação política, que reflete em realidade que desde as eleições de 2018 está longe de ser a sacramentação do princípio da igualdade ou do respeito à decisão do TSE acima.
Pelo contrário, o que se tem visto através de denúncias, desde o final das eleições de 2018, é o registro de candidaturas fantasmas de mulheres para cumprir a cota estabelecida pela lei e obter o recurso do fundo eleitoral que será aplicado para a campanha que realmente interessa. Somado a esse fato, tem-se ainda a discriminação algorítimica que atinge as minorias que ingressam na disputa eleitoral.
A política sempre foi um reflexo da nossa sociedade e de como o ambiente eleitoral, financeiro e laboral era afastado da realidade feminina. Movimentos feministas fizeram uma grande desconstrução desses modelos, é de dizer, desde os movimentos pré-sufragistas, tais quais ocorridos no Brasil em 1927, quando reconhecido o alistamento eleitoral feminino no estado do Rio Grande do Norte4.
No entanto, o que se observa é que apesar de intensas discriminações legais positivas e ações afirmativas em prol da garantia da participação feminina em meios anteriormente masculinos, o que se vê é uma burla à representatividade.
Segundo o movimento suprapartidário “vamos juntas na política”, que visa apoiar, desenvolver e investir nas mulheres para que elas ocupem a política, as mulheres são mais da metade da população, mas representam apenas 15% do Congresso Nacional (que reúne, somados deputados e senadores, 594 parlamentares).5
Trazendo essa perspectiva para visão micro, esse cenário também se reflete na representatividade feminina no legislativo estadual e municipal, além dos chefes de executivo nas unidades federativas e municipalidades do país.
Acontece que, como mencionado e corroborado pelas pesquisadoras Malu Gatto e Kristin Wyllie, 35% de todas as candidaturas de mulheres para a Câmara dos Deputados na eleição de 2018 não chegaram a alcançar 320 votos6. Isso significa que há um forte indício que de o financiamento dessas candidaturas não foi direcionado para suas campanhas. De forma mais clara, o nome dessas candidatas foi utilizado como mero suprimento de lacuna, mas não para o cumprimento efetivo da lei, já que as candidatas de fachada foram usadas pelo partido sem a real intenção de concorrer ao cargo em que tiveram suas candidaturas registradas, servindo apenas para atender outros interesses.
Esse fato, ainda estatisticamente calculado pelas duas pesquisadoras, foi denunciado pelo Ministério Público que apurou que algumas mulheres que tiveram suas candidaturas registradas sequer sabiam que seus nomes haviam sido utilizados para tal, o que demonstra a fraude dos partidos para cumprir a lei “no papel” e assim receber mais recursos do fundo partidário, aumentando o investimento em campanhas que realmente importam. Ou seja, uma burla à lei de cotas7.
Essas candidaturas de fachada, também alcunhadas por candidaturas laranjas foram tema de audiência pública na Câmara dos Deputados, ocorrida em novembro de 2019 por iniciativa da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. Na ocasião, foi ouvido o então Ministro do Turismo, posto que acusado e denunciado pelo MP por montagem de esquema de desvio de verba do fundo partidário por meio de candidaturas de mulheres que não participaram de fato da campanha8.
Veja que o fato ocorreu nas eleições de 2018, mas se repetem. E se engana quem acredita que esses valores saíram de candidaturas fachadas do sexo feminino para candidatos masculinos, apenas. Aqui, podemos dizer que há a interferência da discriminação algoriítimica.
Para falar em discriminação algorítimica é preciso definir o que é algoritmo. Segundo a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs, “algoritmo é apenas um conjunto de instruções sobre como realizar uma tarefa. Eles variam de simples programas de computador, definidos e implementados por seres humanos, a sistemas de inteligência artificial muito mais complexos”9. Esse conjunto de instruções é dado por um ser humano, que lança na máquina para que ela aprenda os comandos e evolua para resultados mais assertivos e complexos.
Por ser alimentada por uma pessoa, o algoritmo pode partir de uma previsão dominada por discriminações, a exemplo, a participação feminina na política. Ou seja, se você envia a uma máquina dados pautados em distorções frutos de uma cultura machista, discriminante de gênero e excludente da participação das mulheres na política, certamente os resultados previstos por uma máquina serão discriminatórios, refletindo a base de dados tendenciosa.
Vejamos:
Um desses processos que ainda está relacionados à base de dados, mas não necessariamente aos preconceitos históricos, é a problemática da subrepresentação ou da sobrepresentação de grupos específicos no algoritmo. Ou seja, quando partes da sociedade estão diferentemente contidas no volume de dados que será processado em relação à realidade, excluindo ou não certos grupos.
Para entender melhor os vieses possíveis pela diferença de representação, vamos analisar o caso do aplicativo Street Bump, utilizado em Boston para detectar quando motoristas andam sobre buracos, através de acelerômetros embutidos em smartphones. Como destaca a professora do MIT, Kate Crawford, essa criativa solução de uma cidade inteligente pode ser desastrosa: “Diferenças sistemáticas na propriedade de smartphones provavelmente resultarão na subnotificação de problemas de estradas nas comunidades mais pobres, onde grupos estão desproporcionalmente desconectados. Se a cidade confiasse nestes dados para determinar para onde deveria direcionar recursos, aumentaria a desigualdade. A cidade discriminaria aqueles que não têm a capacidade de relatar problemas de forma eficaz como residentes mais ricos com smartphones mais avançados.”
Assim sendo, se cuidados não forem tomados, vários danos relacionados à representação desproporcional de grupos podem acontecer. Nesse caso, relacionado à subrepresentação de uma parte da sociedade. Como mencionado, se a cidade de Boston confiasse nesses dados, aumentaria os problemas das comunidades mais pobres que não estariam presente no banco de dados para o aprendizado dos algoritmos, por possuírem aparelhos celulares menos tecnológicos e com menos recursos10. (grifado no original).
Veja que, utilizando também a máquina com dados discriminatórios, alguns candidatos podem ser preteridos em razão de outros. É, como vimos acima, o fundo eleitoral é destinado àqueles candidatos que tem mais chances de vencer uma campanha, são as candidaturas prioritárias, mesmo que homens (em sua grande maioria) ou mulheres.
Com base em que dados se concluem que esses candidatos são, de fato, preferência entre o público de eleitores? Porque novos candidatos não podem crescer durante o prélio eleitoral e mudar todas essas estatísticas? Essa manipulação do fundo eleitoral prejudica não só as mulheres que tem a lei desrespeitada e são usadas com fachada para angariar o saldo do fundo eleitoral nas campanhas que interessam aos partidos, mas também, discriminam.
E não discriminam apenas essas mulheres que estão apenas preenchendo uma lacuna, elas endossando o sistema de uso do fundo eleitoral. A burla à lei mantém o financiamento em nomes sólidos e não na diversidade de candidaturas. Candidatos prioritários, sejam do sexo feminino ou masculino, são coniventes com o fato de usar nomes de mulheres aleatórias para registro de candidatura. O interesse não é a garantia da representatividade, mas da vitória daquele candidato a qualquer custo.
E o custo é a manutenção de um sistema arcaico e discriminatório. Vimos que o que aconteceu em 2018 vai se repetir nos municípios brasileiros e, talvez, a justiça eleitoral não tenha se salvaguardado dessa fraude eleitoral como tem se preocupado com as notícias falsas.
Ora, essa não deixa de ser uma notícia falsa, a da garantia à igualdade. Ela é apenas uma fachada que mantém todo o reflexo da estrutura de preconceito de gênero e baixa representatividade feminina. O caminho é longo, muito deve ser feito pela efetiva garantia às minorias de participação política e de ocupação nos meios essencialmente elitistas e liderados por homens.
Referências Bibliográficas
FOX, Richard L.; LAWLESS, Jennifer L.. Entrando na arena?: gênero e a decisão de concorrer a um cargo eletivo. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília, n. 8, p. 129-163, ago. 2012.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. 29a Edição. Editora Harper, 2011.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Mídia e representação política feminina: hipóteses de pesquisa.Opin. Publica,Campinas ,v. 15,n. 1,p. 55-81,jun.2009.
PRÁ, Jussara Reis. Mulheres, direitos políticos, gênero e feminismo. Dossiê O Gênero da Política: Feminismos, Estado e Eleições. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8645135>.
SANTOS, Maria Helena; AMANCIO, Lígia. A (in)justiça relativa da acção positiva – A influência do gênero na controvérsia sobre as quotas baseadas no sexo. Análise Psicológica. 2010, 1 (XXVIII), págs. 43-57.
SANTOS, Maria Helena; AMANCIO, Lígia. Resistências à Igualdade de Género na Política. Ex aequo, Vila Franca de Xira , n. 25, 2012.
1Palavra de mulher : oito décadas do direito de voto / organização e textos Débora Bithiah de Azevedo e Márcio Nuno Rabat . – 2. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012.
2Disponível em:<https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/09/maioria-dos-partidos-descumpre-regra-eleitoral-sobre-financiamento-de-campanha-e-repassa-menos-recursos-para-negros-e-mulheres.ghtml>. Acesso em 09 nov 2020.
3Disponível em:<https://www.parlamentopiaui.com.br/noticias/camara-dos-deputados/tse-decide-que-partidos-devem-repassar-30-do-fundo-eleitoral-para-campanhas-de-mulheres-5714.html>. Acesso em 09 nov 2020.
4Marques, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. Edições Câmara, 2ª ed.
5Disponível em:<https://vamosjuntasnapolitica.com/>. Acesso em 09 nov 2020.
6Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47446723>. Acesso em 09 nov 2020.
7Várias denúncias às chamadas candidaturas de fachada ou candidaturas laranjas foram feitas, tanto pelo Ministério Público, disponível em:<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/10/04/interna_politica,794893/mp-denuncia-ministro-do-turismo-por-esquema-de-candidaturas-laranjas-d.shtml>; <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/29/entenda-as-investigacoes-sobre-candidatos-laranja.ghtml>; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/partidos-admitem-uso-de-candidatas-laranjas-e-tentam-se-blindar-para-as-eleicoes.shtml>. Acesso em 09 nov 2020.
8Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=BS7q9EjY9UY>. Acesso em 09 nov 2020.
9Disponível em:<https://ab2l.org.br/discriminacao-algoritmica-origens-conceitos-e-perspectivas-regulatorias-parte-1/>. Acesso em 09 nov 2020.
10Disponível em:<https://ab2l.org.br/discriminacao-algoritmica-origens-conceitos-e-perspectivas-regulatorias-parte-1/>. Acesso em 09 nov 2020.