Decidi escrever este texto depois de perceber que, de maneira involuntária, minhas últimas leituras convergiram a uma época e cidade específicas: a Viena do início do Século XX. Comecei lendo um maravilhoso ensaio de Otto Maria Carpeaux, intitulado “Reminiscências Vienenses”, que consta de seus “Ensaios Reunidos”, no qual o crítico literário traça um perfil de sua terra natal, destacando-lhe os grandes intelectuais que a mantiveram dentre as urbes mais culturalmente luminosas da época.
Meu passeio pela clássica Viena continuou sob os auspícios do escritor Arthur Schnitzer, em dois livros: “Breve Romance de Sonho” e “Crônicas de uma vida de mulher”, os quais me abriram o apetite à leitura da vida de Freud (confesso que a leitura de livros técnicos de psicanálise não me descem tão bem ao aparelho gástrico/intestinal). Encontrei em minha estante a biografia escrita por Peter Gay, a mais famosa dentre as digressões sobre a vida do criador da psicanálise.
Nos trechos relativos aos estudos universitários do jovem Freud, o biógrafo lista uma série de pesquisadores que, à época, empenhavam seus maiores esforços em “purificar” a medicina dos “resquícios obscuros da mentalidade religiosa”.
Esta preocupação em estabelecer os limites da pesquisa cientifica, no caso de Freud, da incipiente ciência psicológica (como seara independente da antropologia e filosofia), foi uma grande marca do início do Século XX, que se estendeu aos mais variados ramos do conhecimento – inclusive ao Direito, como veremos adiante ao narrar a vida de Hans Kelsen.
No caso da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, a situação reforçava-se ainda mais diante do fato de que o período pós-Iluminismo foi marcado por uma profunda visão romântica da vida, que fez erigir um movimento filosófico de nítido viés espiritualista, ao ponto de seus principais nomes, como Schelling e Hegel, serem considerados “esotéricos e gnósticos”.
Os intelectuais do final do Século XIX e início do XX foram muito influenciados por este cenário cultural ao mesmo tempo rico e confuso, em que duas grandes aspirações do espírito humano lutavam como se fossem aspectos excludentes: de um lado, a busca por um rigor metodológico, obviamente necessário ao pesquisador científico; de outro, o mergulho nas profundezas da alma e do espírito, que nada mais é do que o pressuposto de qualquer ciência que vise a uma investigação sincera da realidade.
Pululavam as ideias oriundas do “neopositivismo lógico”, com seus representantes organizados no chamado Círculo de Viena. Ao mesmo tempo Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg revolucionavam a música erudita – vinculados à Segunda Escola vienense. Gustav Klimt desenvolvia o fino de sua obra. De mais a mais, iniciavam-se as especulações da Escola Austríaca de Economia.
Era impressionante, portanto, a riqueza cultural desta Viena, na qual:
Popper se tornou amigo de Hayek, que era primo de Wittgestein. Mises era colega de escola de Hans Kelsen. Freud atendeu Gustav Mahler. A esposa deste, Alma Mahler, depois de flertar na juventude com Gustav Klint, após a morte do compositor foi sucessivamente esposa do famoso arquiteto Walter Gropius e do escritor Franz Werfel, além do romance que desenvolveu com o pintor Oskar Kokoschka.[1]
Este amálgama cultural foi o alimento dos grandes intelectuais da época. Dele resultaram, dentre outros: (I) Sigmund Freud - ilustre e dedicado médico, excepcional pesquisador, grande cientista, porém, um tanto superficial em matéria de Filosofia e Religião; (II) Hans Kelsen – verdadeiro filósofo do Direito, ciente das diferenças entre o aspecto científico/objetivo da cultura, e seu complicado aspecto subjetivo, que extrapola o rigor metodológico e chega às raias da mais alta especulação filosófica.
Indagar-me-ão os leitores atentos: mas Kelsen não é vienense de nascença! Verdade, nosso herói veio ao mundo na cidade de Praga, capital do país hoje conhecido como República Tcheca, vizinho da Áustria e da Alemanha. No entanto, o jovem Hans mudou-se para Viena com apenas quatro anos de idade e, por isso, a despeito de sua nacionalidade tcheca, é considerado legítimo representante da intelectualidade vienense.
Kelsen nasceu em 11/10/1881, mesmo ano em que veio ao mundo um dos austríacos mais ilustres da história – o economista Ludwig Von Misses, autor de “Ação humana” e com certeza o maior nome da Escola Austríaca de Economia. Os dois chegaram a dividir os bancos escolares por certo período e fizeram duradoura amizade.
Ainda na primeira infância, Kelsen já se viu cercado pelos ares da alta cultura. O primeiro colégio onde estudou, denominado “Ginásio Acadêmico”, também forneceu as primeiras letras a vultuosos nomes, como o músico Franz Schubert e os escritores Hugo Von Hofmannsthal e Arthur Schnitzer (já referido acima).
Este ambiente de elevadíssimo nível intelectual foi propício à formação de um leitor voraz. Conforme as palavras do próprio Kelsen:
“Durante meu período ginasial, ocupei-me muito mais das belas-letras, e depois de filosofia, que das matérias das aulas. Quase tudo que conheço sobre literatura alemã clássica – e é um conhecimento considerável – eu li entre os 13 e os 18 anos de idade”.[2]
Depois de passar pelas grandes obras literárias, com destaque para os romances de Knut Hamsum (vencedor do Prêmio Nobel de 1920) e das peças de Henrik Ibsen – ambos os escritores de origem norueguesa – Kelsen, com aproximadamente 16 anos, logo passou à leitura de grandes nomes da filosofia, em especial Kant e Schopenhauer, os quais lhe foram sugeridos por ninguém menos que seu colega Ludwig Von Mises!
Tal como nosso grande Pontes de Miranda, Kelsen encerrou o ginásio na expectativa de estudar física ou matemática (cogitou também a Filosofia), mas, depois de prestar o serviço militar no período da Primeira Grande Guerra, decidiu-se por ingressar no Curso de Direito e Ciência Política da Universidade de Viena. É possível dizer que a experiência “das armas” fê-lo esfriar os ânimos quanto às suas intenções filosóficas, optou, então, pelas letras jurídicas – o que possibilitar-lhe-ia maior praticidade laboral.
As impressões primeiras que Kelsen teve da Faculdade de Direito não foram das melhores. Sua inteligência aguda e sagaz não lhe permitiu muita concentração nas aulas de estudos romanísticos, decidindo por ler e assimilar rapidamente o manual que “o professor levaria um semestre inteiro para explicar em uma oratória não muito vivaz”.
Em meio aos desgostos da vida universitária, Kelsen manteve seus estudos filosóficos e não por acaso interessou-se bastante em Filosofia do Direito. Numa das aulas de tal disciplina o jovem Hans tomou conhecimento do livro “De Monarchia”, de Dante Alighieri, do qual fez um estudo crítico que lhe concedeu favoráveis posicionamentos de colegas de academia. Foi a primeira investigação científica de um pesquisador voraz e profundo.
A partir de então o interesse científico de Kelsen só cresceu. Conta ele que, desde o início dos estudos jurídicos (durante as aulas de matérias propedêuticas), impressionou-o a “total falta de exatidão e fundamentação”, a “confusão entre ser e dever-ser” e a questão de “como os sujeitos deveriam se comportar segundo o direito positivo e a questão de como realmente se comportam”. Todos estes questionamentos permeiam toda a obra do nosso jurista, e é preciso dizer que Kelsen formulou hipóteses louváveis de como resolver os problemas propostos.
Permitam-me a rasteira comparação, mas me parece que a posição de Kelsen na Teoria do Direito e do Estado é análoga àquele “meio de campo” que só vê “balão para cima” e decide botar a bola no chão. A organizada mente do jurista não lhe permitiu passar por cima de questões metodológicas e decidiu, por ele mesmo, encontrar uma saída razoável para a balbúrdia que lhe incomodava assaz.
A influência decisiva neste momento da vida acadêmica de Kelsen foi a obra do filósofo Hermann Cohen, considerado um dos grandes nomes do “neokantismo”, movimento típico do século XIX alemão. A referência a Kant é oportuna, já que o pensador de Konisberg manter-se-ia como a grande base da teoria posteriormente desenvolvida por Hans Kelsen.
A partir de então Kelsen iniciou uma produção técnica invejável, o que o fez obter, com certa rapidez mas não livre de percalços, o título de livre-docente pela Universidade de Viena, com aproximadamente 30 anos de idade. Lá desenvolveu inúmeras pesquisas e escreveu a base de sua obra sobre Teoria do Estado e Filosofia “Pura” do Direito.
Exemplo da enorme honestidade intelectual de Kelsen encontra-se quando de sua contratação para lecionar Direito Internacional na Universidade de Colônia, na Alemanha. O jurista da Teoria Pura não se sentia tão preparado para o cargo, apesar de já ter escrito livro a respeito e ter dado aulas de Direito Internacional em Haia! Para melhor preparar-se, então, Hans engordou sua biblioteca particular com as maiores obras sobre a temática.
Kelsen, porém, não viveu por detrás dos livros; ao contrário, sua atuação na prática jurídica foi intensa e relevante. Ele trabalhou no Ministério da Guerra, foi constituinte, membro da Corte Suprema Austríaca, etc.
É de notar-se, pois, quão rico foi o imaginário e a bravura de Kelsen, quão aguda foi, desde a juventude, sua inteligência e capacidade de análise filosófica. Este é o recado que fica a todos os pupilos que ingressam nas universidades de Direito: ler Kelsen é lidar com um pensador de elevadíssimo nível! Um profundo conhecedor de diversas áreas do conhecimento. Por isto, jamais se deve cair nas armadilhas da interpretação rasteira de sua obra, que a colocam como mera representante de um “fracassado” positivismo.
[1] https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1299.
[2] Trecho retirado de sua “Autobiografia”, p. 36, publicada pela Forense Universitária, em 2018.