I – O FATO
A revelação pelo ‘Estadão’ de que testes PCR (para detectar a covid-19) do Ministério da Saúde podem acabar no lixo fez procuradores e gestores da área da saúde nos Estados ouvidos pela Coluna enxergarem nuvens carregas no horizonte de Eduardo Pazuello. O ministro pode ser alvo de uma possível ação de improbidade administrativa, avaliam. Parlamentares acionaram a Procuradoria-geral da República (PGR) e também o Tribunal de Contas da União (TCU). Querem se saber houve desperdício de recursos, negligência e inépcia do ministro.
No dia 22 de novembro do corrente ano, o Estadão revelou que 7,1 milhões de exames estão em armazém do ministério, ou seja, não foram enviados ao SUS em plena pandemia. Do total estocado, 96% (cerca de 6,86 milhões de unidades) perdem a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021.
O estoque que pode ser inutilizado é maior do que os 5 milhões de testes PCR (considerado "padrão ouro" para detectar o vírus) já realizados pelo SUS na pandemia. O Ministério da Saúde afirmou que já pediu estudos de estabilidade ao fabricante do teste para, na sequência, solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a prorrogação da validade do produto.
Caberá ao Ministério Público Federal, em primeira instância, abrir inquérito civil para apurar o fato em todas as circunstâncias de materialidade e autoria.
Ainda segundo o Estadão, em nota divulgada no dia 22/11, o ministério da saúde disse que entrega os exames conforme demanda de Estados e municípios. A pasta afirmou ainda que não mediu esforços para compra de kits de testagem e investimentos em laboratórios. O ministério, porém, também omitiu no comunicado o tamanho de seu estoque.
II – O ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
O fato deve ser examinado à luz dos artigos 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa(Lei nº 8.429/92).
Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
.......
Constitui, outrossim, ato de improbidade administrativa afrontar princípios constitucionais.
Tal seria o caso da eficiência administrativa.
Realmente como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado, a que tenha dado causa? Ora, só há grave desvio ético de conduta quando alguém atua, revelando móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável. Esse é o ímprobo.
Juarez Freitas(Princípio Jurídico da Moralidade e a Lei de Improbidade Administrativa), na mesma linha de Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald(Mandado de segurança e ações constitucionais), entende que a improbidade pode ser punida a título de dolo ou de culpa grave, restando impossível apenas a configuração dessa infração ético-funcional nas condutas pautadas por culpa leve e levíssima.
Fala-se que Juarez Freitas, que ao defender a posição intermediária(improbidade administrativa caracterizada por dolo ou culpa grave), acabaria por cair em insanável contradição, visto que ele expressamente arrola a “inequívoca intenção desonesta” como sendo o precípuo requisito à configuração da improbidade. Entenda-se que é cediço que o dolo é composto por representação e vontade(ou intenção), de modo que, sendo a grave intenção desonesta um requisito inarredável da improbidade, deve-se afastar, pelos fundamentos expostos pelo doutrinador, a possibilidade de improbidade culposa. Assim onde se verifica a inequívoca intenção desonesta há, de forma nítida, dolo, e não simples culpa na conduta funcional.
Na linha de Edilson Pereira Nobre Júnior(Improbidade Administrativa: alguns aspectos controvertidos), dir-se-á que a presença do dolo é um dos principais elementos configuradores do ato improbus. Repita-se que o conceito de improbidade está, de forma inexorável, atrelado à ideia de imoralidade administrativa qualificada, que pressupõe a presença do ânimo desonestidade.
Se tudo isso não bastasse há possível confronto na conduta noticiada com relação ao artigo 11 da Lei de Improbidade que exige respeito aos princípios constitucionais da Administração protegidos no artigo 37 da Constituição, dentre os quais o da eficiência, à luz ainda da Lei nº 8.112/90, no artigo 116.
Fala-se na culpa grave e no dolo contra a Administração.
III – O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA
A conduta deve ser examinada à luz do princípio da eficiência da administração.
O princípio da eficiência implementou o modelo de administração pública gerencial voltada para um controle de resultados na atuação estatal. Nesse sentido, economicidade, redução de desperdícios, qualidade, rapidez, produtividade e rendimento funcional são valores encarecidos por referido princípio.
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro(Direito Administrativo, 2002) “o princípio apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar , estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance de resultados na prestação do serviço público”.
Completando este entendimento, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2002, p. 83) afirma que uma administração eficiente pressupõe qualidade, presteza e resultados positivos, constituindo, em termos de administração pública, um dever de mostrar rendimento funcional, perfeição e rapidez dos interesses coletivos.
E ainda, disse Maria Sylvia Zanella Di Pietro que o princípio da eficiência “apresenta dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação de agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.”
A eficiência é um direito do cidadão, da sociedade, e um dever da administração, por ser agente público, uma vez que terá de visar um serviço de qualidade e que satisfaz as necessidades coletivas.
IV – A COMPATIBILIDADE DA LEI DE IMPROBIDADE AOS AGENTES PÚBLICOS
Fazendo uma abordagem da compatibilidade da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos, Francisco Chaves dos Anjos Neto , ao analisar os reflexos do julgamento do Supremo Tribunal Federal, na Reclamação nº 2.138/DF, assim se reporta:
¨Ora, o constituinte de 1988 quis porque quis inaugurar um regime todo especial de proteção à tutela da probidade administrativa, que passa pelas mais variadas formas de responsabilidade, conforme consta da atual Constituição Federal, a saber: a) criminal(art. 37, § 4º, ¨parte final¨, quando lança a ressalva de ¨sem prejuízo da ação penal cabível¨ c/c o art.52, parágrafo único, ¨parte final¨, ao mencionar ressalva, até em maior extensão, eis que ¨sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis¨); b) político‐institucional ou político‐criminal(art. 52, c/c o art. 85, parágrafo único, que trata da lei especial disciplinadora do impeachment, entre os vetores ali eleitos de proteção, a ¨ probidade da administração¨, segundo o inciso V deste último dispositivo); c) extrapenal, de caráter administrativo ou civil(art. 37, § 5º, que trata de ilícitos atribuídos a servidores públicos; e art. 52, parágrafo único, como decorrência da mesma ressalva acima citada); d) eleitoral(art. 14, §9º, naquilo que estabelece, entre os casos de inelegibilidade, tudo que venha a ofender certos valores, entre os quais, a ¨probidade administrativa, moralidade e legitimidade das eleições¨).
A discussão grassa a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento daquela Reclamação 2.138/DF, que julgou um caso específico de Ministro de Estado, entendendo incabível a aplicação da Lei 8.429/92, lei de improbidade administrativa, em relação a determinados agentes políticos.
Avulta a importância da divergência inicial, do que se lê do voto do Ministro Carlos Velloso, ao sustentar que, em linha do princípio, a Lei nº 8.429/92 aplicar‐se‐ia igualmente aos agentes políticos, a menos que sua conduta fosse tipificada como crime de responsabilidade, de que trata a lei especial, conforme determina a Constituição Federal (art. 85, parágrafo único).
Disse, aliás, o Ministro Velloso, no seu voto na Rcl 2.138:
¨Isentar os agentes políticos da ação de improbidade administrativa seria um desastre para a administração pública. Infelizmente, o Brasil é um país onde há corrupção, apropriação de dinheiros públicos por administradores ímprobos. E isso vem de longe. No excelente livro de Patrick Wilcken – ¨O império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808 – 1821¨, Objetiva, tradução de Vera Ribeiro, pág. 121 – está consignado:
......
Ora, os chamados crimes de responsabilidade têm uma casuística própria, do que se lê do artigo 85 da Constituição Federal, onde estão listados os seguintes casos: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
A lei de improbidade, ao contrário, reserva sanção aos agentes políticos que praticam atos ilícitos, de natureza administrativa, em situações que capitula de forma taxativa, nos artigos 9º, 10º e 11º(Lei 8.429/92).
Diverso dos atos administrativos, os agentes políticos ainda praticam atos de governo, que são aqueles inerentes à atividade tipicamente discricionária, em obediência ao que determina a Constituição.
Anoto, por sua importância, julgamento do Supremo Tribunal Federal, no Pet – QO 3923, em que foi Relator o Ministro Joaquim Barbosa, onde se fez a seguinte dicotomia: a) A Lei 8.429/92 regulamenta o art.37, parágrafo quarto da Constituição, que traduz uma concretização do princípio da moralidade administrativa inscrito no caput do mesmo dispositivo constitucional. As condutas descritas na lei de improbidade administrativa, quando imputadas a autoridades detentoras de prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de responsabilidade; b) Crime de responsabilidade ou impeachment, desde os seus primórdios, que coincidem com o início de consolidação das atuais instituições políticas britânicas na passagem dos séculos XVII e XVIII, passando pela sua implantação e consolidação na América, na Constituição dos EUA de 1787, é instituto que traduz à perfeição os mecanismos de fiscalização postos à disposição do Legislativo para controlar os membros dos dois outros Poderes. Não se concebe a hipótese de impeachment exercido em detrimento de membro do Poder Legislativo. Trata‐se de contraditio in terminis. Aliás, a Constituição de 1988 é clara nesse sentido, ao prever um juízo censório próprio e específico para os membros do Parlamento, que é o previsto em seu artigo 55. Noutras palavras, não há falar em crime de responsabilidade parlamentar.
¨Eu entendo que há, no Brasil, uma dupla normatividade em matéria de improbidade, com objetivos distintos: em primeiro lugar, existe aquela específica da Lei 8.429/1992, de tipificação cerrada, mas de incidência sobre um vasto rol de possíveis acusados, incluindo até mesmo pessoas que não tenham qualquer vínculo funcional com a Administração Pública(lei 8.429/92, art. 3º); e uma outra normatividade relacionada à exigência de probidade que a Constituição faz em relação aos agentes políticos, especialmente ao chefe do Poder Executivo e aos Ministros de Estado, ao estabelecer no art. 85, inciso V, que constituem crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a probidade da administração. No plano infraconstitucional, essa segunda normatividade se completa com o art.9º da Lei 1.079/1950.¨
São disciplinas normativas diversas, que visam à preservar o mesmo valor ou princípio constitucional, qual seja, a moralidade da Administração Pública, porém, têm objetivos constitucionais diversos.
A improbidade administrativa, prevista na Lei 8.429/92, é entidade diversa daquela existente quanto ao crime de responsabilidade. Elas não se excluem, mas têm resultados absolutamente distintos.
O STF julgou, no dia 10 de maio de 2018, o agravo de regimento na Pet 3240, firmando os seguintes posicionamentos:
Os agentes políticos, com exceção do presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, e se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade;
Compete à Justiça de primeiro grau o julgamento das ações de improbidade, logo não há foro por prerrogativa de função em relação a este tipo de ação.
Os agentes políticos respondem por improbidade administrativa, ainda que sujeitos ao cometimento de crime de responsabilidade, com exceção do Presidente da República.
V - CONCLUSÕES
Caberá ao Ministério Público Federal, por seu órgão com atribuição para tanto, na primeira instância, apurar o fato narrado visando saber se houve ato de improbidade administrativa, abrindo o competente inquérito civil.
Essa atuação é diversa daquela onde se apurará, se houver vontade política, se há crime de responsabilidade, cuja índole é mista, política e penal. Mas isso é matéria a ser discutida em âmbito próprio.
De toda sorte, se houver crime, em se tratando de ministro de Estado e presidente da República, a apuração deste somente poderá ser feita junto ao Supremo Tribunal Federal, à luz do artigo 102, I, b, da Constituição.