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A boa e velha humanização na relação Fisco contribuinte

Agenda 03/12/2020 às 16:24

É preciso que se estabeleça uma melhor relação Fisco contribuinte, de forma presencial, para o enfrentamento das dúvidas e incertezas decorrentes de um sistema tributário extremamente complexo.

Mencionar a complexidade do sistema tributário brasileiro já se tornou ato repetitivo a ponto de não mais atrair a atenção de ninguém. Todos nós já o sabemos.  Poder-se-ia enumerar diversos indicadores que apontam neste sentido, sem se esquecer da péssima colocação do Brasil no ranking do retorno dos tributos arrecadados na entrega de serviços públicos de qualidade. Na verdade, a complexidade do sistema ganha relevo com uma sensação de instabilidade, caracterizada com a proliferação diária de novas normas, decisões judiciais nem sempre coerentes com o sistema, mudanças de interpretações fiscais, deixando o contribuinte na condição de refém dessa turbulência jurídica.

Neste cenário de incertezas é de fundamental importância uma saudável relação comunicativa entre o Fisco e contribuinte, este na condição de parte mais frágil nessa relação.

A relação Fisco contribuinte lembra um ambiente de conflito em decorrência da necessária postura repreensiva do Fisco no combate à sonegação fiscal, considerando que os contribuintes nem sempre cumprem com as suas obrigações tributárias. Não é de recepção unânime  a doutrina de Oliver Wendell Holmes, jurista americano, que vinculou a evolução da civilização ao pagamento de tributos,  ganhando visibilidade com a sua famosa frase:  “Gosto de pagar tributos porque com eles compro civilização".   

Por outro lado, há de se lembrar da força persuasiva do poder de tributar, que pode, em situação extrema, resultar no poder destrutivo de quem estiver no polo ativo desta relação tributária.[i]  

A relação Fisco contribuinte não opera somente  num ambiente repressivo. A relação conflituosa pode ocorre nas ações fiscalizatórias,[ii]  nas quais os agentes fiscais investigam o cumprimento das obrigações tributárias do sujeito passivo, tendo como resultado a lavratura de lançamento de crédito tributário de ofício, com possibilidade para a composição de uma lide tributária. Fora deste contexto das ações de fiscalização, o contribuinte tem legítimo interesse em manter aberto um canal de comunicação, de caráter informativo, com a Fazenda Pública, criando as condições necessárias para uma melhor compreensão da legislação tributária de extrema complexidade,  até porque uma  grande maioria dos contribuintes, de todos os tributos do nosso sistema, seja pessoa física, ou jurídica, projeta  uma intenção de aderência às normas tributárias, e no caso de empresas, recorrendo, inclusive, a programas de compliance, para manter a organização alinhada, não só com as obrigações tributárias, mas com todo o sistema regulatório vigente, visando maior segurança jurídica e a sua inserção na economia de mercado sem desleixar o compromisso com a responsabilidade social.

É neste contexto, em que se tem de um lado um sistema tributário tormentoso, até caótico, para ser mais preciso, e de outro, a vontade dos contribuintes de aderirem ao cumprimento das obrigações tributárias impostas, pretende-se dar foco à necessidade de uma boa e produtiva relação entre o Fisco e contribuinte, não somente uma relação através das mídias eletrônicas, central de atendimento ou meio equivalente, mas uma relação humanizada, em que pessoas conversam, interagem e argumentam, para a solução dos problemas postos. 

O avanço do emprego da tecnologia na administração tributária foi extraordinário. Observa-se isso fazendo um comparativo entre os procedimentos rudimentares e manuais   utilizados em algumas décadas anteriores com a avançada tecnologia hoje à disposição do Fisco, fornecendo uma ferramenta de trabalho nas ações fiscais de eficácia inquestionável. Lembremo-nos do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) e da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), que passaram a substituir os registros manuais em livros e documentos físicos e de todos os aplicativos decorrentes.  A tecnologia não só beneficiou o Fisco, mas também trouxe maior comodidade ao contribuinte com redução de custos e economia de tempo para cumprir com as suas obrigações tributárias e pagar o seus tributos, fenômeno, aliás, de observação mundial.[iii]    

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 No entanto, se o avanço tecnológico caminha de forma geométrica, o mesmo aperfeiçoamento nem sempre se verifica no plano das relações entre o Fisco e contribuinte, nas demandas consultivas, na obtenção de informações e na solução de problemas pontuais. Suprimiu-se o bom e velho “plantão fiscal”. Subestimou-se o contato pessoal e os debates presenciais; ganharam espaço os portais informativos.  

O problema se agravou com o isolamento social e as atividades remotas em decorrência da pandemia da COVID-19. Nesse período justifica-se este tratamento de exceção, afinal, o mundo inteiro está experimentando uma tragédia sanitária sem precedentes, com reflexos negativos na manutenção de  qualquer comunicação pessoal.  

Fazendo-se a exclusão do período da pandemia, são detectados  cada vez mais  manifestações de descontentamento com relação ao atendimento do contribuinte, na medida em que as administrações tributárias não estão  priorizando a abertura de um canal de comunicação pessoal para a discussão de temas específicos com a disponibilização de servidores públicos com habilidade técnica e poderes de decisão. Desumanizou-se a comunicação. Considerando que o nosso sistema tributário é extremamente complexo, com uma proliferação normativa diária insustentável, as indagações e as inseguranças com relação à correta interpretação das normas são inúmeras.   

Cabe mencionar que o Brasil dispõe de um sistema tributário baseado no lançamento por homologação [iv], em que as obrigações acessórias inerentes à apuração e recolhimento do tributo são transferidas para o contribuinte, obrigando este a manter uma pesada estrutura de assessoria  simplesmente para viabilizar o pagamento dos tributos, deixando o Fisco numa posição cômoda pelo poder de revisão da  atividade do contribuinte em consonância com a legislação.   

Diante de todas essas obrigações atribuídas ao contribuinte, as  denominadas “centrais de atendimento fiscal”, bem como os portais informativos,  não são satisfatórias.  A alimentação do sistema com informações, cartilhas e protocolos também não suprem as necessidades dos contribuintes.

Estabeleceu-se uma cultura na Administração Pública de uma certa blindagem do agente público; o sistema se conforma com restrições de acesso ao agente. Esta ideia tem forte raiz na onipotência da tecnologia, em que todas as demandas do administrado podem ser solucionadas com uma busca no site do órgão competente, sendo desnecessário o contato com o servidor público responsável. Em alguns casos, o atendimento é feito numa relação descortês, como se fosse um favor para o administrado importunador.   No Judiciário, numa relação processual, por  vezes, a justificativa é que as partes podem exaurir seu poder de argumentação nos autos do processo. Nada mais precisa ser dito.

No ambiente administrativo no qual se firma a relação entre Fisco e contribuinte, há demandas tributárias de densidade jurídica que exigem o atendimento técnico especializado, de forma pessoal; as soluções de tais discussões não se resolvem numa central de atendimento. Não é possível que o Fisco somente exija colaboração e transparência dos contribuintes e de seus assessores e contadores, com relação ao cumprimento de obrigações acessórias,  sem lhes estender a mão colaborativa quando solicitado por estes colaboradores. Há de se estabelecer uma via dupla na relação colaborativa.

Felizmente, a abordagem negativa feita neste texto não tem aplicação de forma genérica em nossos serviços públicos, especialmente na seara tributária; talvez ainda predominem os bons exemplos, em que o administrado ou o contribuinte tem no órgão público um aliado, um colaborador, um caminho para a solução de seu problema e não um ambiente hostil e de inoperância. É preciso que estes exemplos sejam replicados em toda a Administração Pública, especialmente na relação Fisco e contribuinte.  

Talvez o momento marcado pelo enorme sacrifício imposto pela pandemia, com todo o isolamento social e a restrição no relacionamento pessoal, seja propício para demonstrar a necessidade de se restabelecer um ambiente mais colaborativo, de maior acessibilidade às informações, de maior apoio para aquele que, de boa-fé, pretende cumprir com suas obrigações tributárias. Que se institua o velho e bom  plantão fiscal como fórum de discussão das questões tributárias específicas, numa versão adaptada à tecnologia do momento. Os contribuintes agradecerão.

 


[i]  “o poder de tributar envolve o poder de destruir.” A frase é do Chief of Justice John Marshall, da Corte dos EUA, no caso  McCulloch v. Maryland, de 1819.

[ii] Tramita na Câmara de Deputados o Projeto de Lei Complementar n. 255/20, que pretende definir  as informações mínimas que o Fisco deve apresentar ao contribuinte antes de iniciar qualquer ação de fiscalização.

[iii] Disponível: https://exame.com/negocios/releases/a-tecnologia-facilitou-o-pagamento-de-impostos-empresariais-no-mundo-todo-segundo-o-relatorio-conjunto-da-pwc-e-do-banco-mundial/. Acesso em 26/11/2020.

[iv] Nos termos do art. 150, do CTN, lançamento por homologação “ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.”

Sobre o autor
Deonísio Koch

Advogado tributarista, ex-conselheiro titular do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina – TAT, ex-auditor fiscal e professor de Direito Tributário, Tributos Estaduais e Processo Administrativo Tributário. e-mail: deonisiokoch@yahoo.com.br ou deonisiokoch@gmail.com

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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