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Comercialização de despojos do Terceiro Reich: é possível vender Hitler?

Agenda 04/12/2020 às 20:32

A regulamentação é envolta em lacunas e subjetividade, propiciando uma análise da redação cuja aplicabilidade restritiva se limite a determinados episódios, viabilizando diferentes interpretações.

            A comercialização de material do Terceiro Reich é um assunto polêmico e que tem ganhado destaque ao redor do mundo, antiguidades e patrimônio móvel do período são objetos cobiçados por colecionadores, diante de um mercado onde a procura por tais recordações históricas tem claro crescimento. Essa grande oferta internacional deve-se ao fato de muitos materiais estarem com ex-soldados que, pela morte ou idade avançada, permite a comercialização pelas famílias, emergindo um grande material escondido, sobretudo aos colecionadores.

            Matéria de regulamentações distintas, a transação já desencadeou em desconfortos de violações de direito internacional, no notório caso La Ligue Contre Le Racisme et l'antisémitisme (LICRA) c. Yahoo! em 2000, ao qual usuários franceses participaram da arrematação de artigos nazistas em leilões online dos Estados Unidos[1]. Não obstante, o mundo digital, com uma aproximação instantânea e sem fronteiras do usuário com a rede, pode desencadear em inúmeras situações como essa, além disso, a virtualização da sociedade permite uma comercialização internacional dos bens colecionáveis, transferido às plataformas online.

            A grande preocupação é que fanáticos possam se alimentar dos materiais, contudo, os fatos do passado e artefatos não devem ser esquecidos, uma vez que o arsenal possui um grande valor aos estudiosos e colecionadores do período e contribui para demonstrar os efeitos de um período onde a crueldade e ódio pairavam. Não por acaso, muitos dos compradores de artefatos caros e passíveis de manchetes são judeus, cujo intuito é rememorar fatos e demonstrar tais horrores, ainda que haja uma discussão sobre a imoralidade e a doação dos objetos aos museus[2].

            Paradoxo de um mundo contemporâneo, o consumo desses objetos vislumbra um cenário complexo em meio as regulamentações, uma vez que em uma sociedade capitalista e industrial, são dificultosamente inseridos no comércio internacional.

            Problemática no Brasil, sobretudo no notório caso do historiador Wandercy Antonio Pugliese, a coleção apreendida de objetos relacionados ao nazismo, demonstrou claramente a admiração pelo ideal nazista, longe de estudos acadêmicos sobre o tema[3], fazendo-se do assunto um campo sensível.

 A análise sobre a regulamentação do Art. 20, §1°

           Embora haja uma regulamentação sobre o tema contido no Art. 20, §1°, da Lei 7.716 de 1989, tratada aqui essencialmente quanto a comercialização de tais objetos, são facilmente verificáveis plataformas que facilitam a compra e venda desses artigos na Internet, necessitando uma análise da obscura e conturbada redação:     

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

 § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo[4]

            Interessante notar que a própria palavra ‘’propaganda’’ empregada no texto legal possui conotações negativas[5], uma vez que a influência da opinião pública nos meios de comunicação, hoje comumente generalizada, provoca uma reminiscência à aplicação do Terceiro Reich, pioneira em utilizar-se da influência e difusão dos media para provocação de ódio e discriminação, sendo substituída paulatinamente para desejos e necessidades comerciais.

            Percebe-se que a simples ‘’posse’’ não se faz presente no texto legal, no entanto a comercialização é uma prática proibida. Contudo, tanto a redação e aplicação da norma nitidamente tem um caráter reducionista, uma vez que o problema denota ser a cruz suástica ou gamada, pela sua fácil identificação com o regime nazista, todavia, inúmeras peças colecionáveis podem ser associadas ao regime não evidenciando tais características. Em grosso modo, a redação limitou-se ao entendimento da manifesta simbologia empregada pelo partido para o reconhecimento e proibição da comercialização, a clara compreensão e indicação, no entanto, expõe lacunas para outras formas de negociação que não transvestida em símbolos aduz a ligação ao regime.

            De outro modo, erroneamente pode-se vislumbrar uma ampliação da norma para uma aplicabilidade extensiva, ao estar vinculada nitidamente a símbolos específicos e finalidade específica. Nesse sentido, a venda de artigos nazistas da Segunda Guerra Mundial, itens colecionáveis e desejados, são proibidos?

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Ainda que com a cruz suástica ou gamada, há uma subjetividade referente a ‘’fins de divulgação do nazismo’’, uma vez que a divulgação, do ponto de vista comercial, está ligada a venda do produto em si e não necessariamente a uma ideologia contida, ainda que tal simbologia possa reproduzir no comprador um efeito contrário, porém, torna-se subjetiva e denota uma preocupação posterior, que já em posse pode ser utilizada para medidas e exposições discriminatórias. De outro modo, há uma similaridade aos casos de utilização em público dos símbolos, que por não fabricar, comercializar, distribuir ou veicular, não há tal crime, devendo a lei ser modificada para contemplar e clarificar tais subjetividades e situações de posse.

            Percebe-se que a preocupação do legislador, embora com tais lacunas, está pautada no elo de transmissão desses artefatos, de modo que a circulação possa proporcionar um vínculo direto de quem detém a posse e quem poderá utilizar-se para outros fins. Dito isso, a máxima da norma é vislumbrada na finalidade resultante da comercialização, na qual possui uma linha tênue de difícil verificação, uma vez que há uma subjetividade individualizada sobre o objeto que haveria de ser levada em conta.

            Nesse sentido, a punibilidade é resultado de um porquê que deverá ser comprovado pelo sentido intrínseco da relação mercantil, não sendo punível meramente a comercialização com fins comerciais, uma vez que a divulgação não tem caráter ideológico. Do contrário, sujeitamos a redação para uma amplitude que abarque situações que os próprios colecionadores e museus sequer tenham possibilidade de acesso aos materiais.

 


[1] Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F3/433/1199/546158/.

[2] Disponível em: https://www.washingtonpost.com/gdprconsent/?next_url=https%3a%2f%2fwww.washingto post.com%2flocal%2fhistory-or-hatred-selling-hitlers-belongings-and-nazi-artifacts-stirs-a backlash%2f2018%2f12%2f26%2fb0c21932-f27d-11e8-aeea-b85fd44449f5_story.html.

[3]Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=2525

[4] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm

[5] Welch, David. The Third Reich: Politics and Propaganda. Second Edition, London and New York: Routledge, 1993, p. 05. Disponível em:< https://psi312.cankaya.edu.tr/uploads/files/Welch,%20Third%20Reich--Politics%20and%20Propaganda,%202nd%20ed.PDF>.

Sobre o autor
Salus Henrique Silveira Ferro

Mestrando em Direito e Ciência Jurídica na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas e Pós-graduando em Direito Intelectual, ambas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Especialista em Derechos de Daños pela Universidad de Salamanca (USAL). Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e em Direito pela Universidade Franciscana (UFN). Advogado.

Informações sobre o texto

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