"Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas"
José Saramago, Coisas, In: Objecto Quase, p. 105.
1 – INTRODUÇÃO
Quisera a epígrafe escolhida para a abertura deste texto pudesse um dia concretizar-se, já que pelo menos por agora se constata que os homens têm sido freqüentemente relegados a meras "coisas", instrumentos para fins alheios.
Convidado a ministrar um curso de extensão universitária sobre a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei 11.101/05), abordando seus aspectos penais e processuais penais, [01] tive a oportunidade de meditar e discutir com os discentes acerca de algo mais do que a simples exegese dos tipos penais falimentares e as inovações processuais penais operadas pelo referido diploma legal. Não que esses aspectos sejam desprezíveis ou tenham sido desprezados. No entanto, um paralelo a princípio inusitado se apresentava e não poderia ser ignorado. Mais do que simplesmente estudar a parte criminal da Lei 11.101/05 era imprescindível responder à questão que completa o título deste trabalho: "O que o Direito Empresarial tem a ver com o Direito Penal?" O que esses campos do Direito têm em comum em sua formulação teórica, no espírito íntimo de suas disposições, muito para além do fato de que há uma faceta criminal na Lei 11.101/05?
Um ponto de aproximação relevante, merecedor de reflexão, consiste no desenvolvimento da Teoria Ressocializadora do homem delinqüente e da Teoria do "Direito da Empresa em Crise". Essas formulações, se devidamente cotejadas, superando a aparente falta de relação entre elas, podem ensejar uma visão crítica do Sistema Jurídico, desvelando os reais objetivos e influências que o dirigem, muitas vezes ocultados pela hipocrisia alimentada pela falta de coragem e vontade de encarar a realidade que se oculta sob falsas justificativas, as quais somente servem para tranqüilizar consciências pesadas necessitadas de ilusão.
O objetivo deste trabalho é demonstrar como subjaz às Teorias Ressocializadoras Penais e às Teorias do Direito da Empresa em Crise um mesmo substrato que na verdade influencia e dirige praticamente toda a realidade do mundo jurídico, embora haja uma repulsa em admiti-lo. Esse substrato são os interesses financeiros e econômicos, cuja predominância molda o Direito de acordo com seus desideratos.
A repugnância em admitir e denunciar essa realidade, procurando ocultá-la por meio de subterfúgios e justificativas, somente contribui para perpetuar sua atuação prática, fomentando posturas ilusórias e alienadas.
2 – HOMEM E EMPRESA: INSTRUMENTOS DO PODER ECONÔMICO
Como não poderia deixar de ser, o Direito Penal tem como ponto central o conceito e o objetivo da pena. Em sua origem o termo deriva do grego "poine", significando "vingança, ódio", em suma, "a retribuição destinada a compensar um crime, a expiação de sangue". [02]
Percebe-se facilmente que a pena tem em seus primórdios um caráter absoluto de natureza retributiva, sem qualquer preocupação com algum fim de ressocialização do criminoso. É somente no chamado "Período Humanitário" que surge uma idéia finalística ressocializadora para a pena. Não mais se concebe a pena como simples castigo, mas postula-se por satisfazer objetivos que a racionalizem, quais sejam: a prevenção e a socialização. [03]
É claro que essa humanização do Direito Penal foi uma importante contribuição para a evolução científica e racional, proporcionada em especial pelos ideais iluministas do século XVIII. Sob o ponto de vista teórico não há dúvidas de que o reconhecimento dos Direitos Humanos e de princípios humanitários a regerem o campo criminal constitui um inegável indicador de "progresso moral" da humanidade como defendido por Bobbio. [04] O aspecto pouco abordado e que enseja uma análise mais profunda e crítica dessa evolução humanitária da pena não se acha nos fundamentos teóricos, mas sim na atenção para a conjuntura que permitiu até hoje o acatamento de toda essa argumentação bem intencionada. A disseminação das Teorias Socializadoras não foi possibilitada somente por sua racionalidade, pelos bons sentimentos humanitários, pela solidariedade etc. Um conjunto de interesses bem menos nobres sempre esteve oculto sob as aparências e sustentando na prática toda a teorização.
Como bem destaca Foucault, sob o prisma da socialização a punição não visa "apagar um crime", mas sim "transformar um culpado" por meio de uma "técnica corretiva" que o torne "dócil" aos fins sociais a que se destina. [05] Apenas aparentemente a base de sustentação prática das Teorias Socializadoras é efetivamente humanitária. Ostentam teoricamente uma preocupação com o homem, mas são desenvolvidas, sustentadas e aplicadas por interesses distintos. Esse homem a ser socializado ou ressocializado não é o homem como homem, independentemente de algum qualificativo agregado; é, na verdade, o "Homo Oeconomicus" que se pretende inserir ou reinserir na atividade econômica enquanto mão de obra adaptada e dócil ao trabalho que importa à sociedade dominada pelos interesses financeiros. [06]
O contexto que dá base às Teorias Socializadoras do criminoso é aquele em que a mão de obra humana tem valor na dinâmica do processo econômico. Já na atualidade opera-se uma progressiva desvalorização do homem no processo produtivo e laboral. O excedente e não a escassez de mão de obra humana é que surge como um problema contemporâneo. [07] Nota-se uma clara e importante influência do modelo econômico na teorização do Direito Penal, especialmente no que tange aos fins da pena e às funções desse ramo do Direito. [08]
É por isso que hodiernamente vai-se abandonando o discurso socializador. A questão não é somente a da constatação do fracasso do Sistema Penal quanto a essa finalidade [09]. Mais que isso, revela-se um verdadeiro desprezo pelo empreendimento de recuperação/inclusão do homem desviado. Se o Sistema Penal fracassou, o que impediria intentar a formulação de algum outro sistema melhor? Afirmar a impossibilidade de um Sistema Penal melhor não deve corresponder necessariamente ao abandono da busca por algo melhor do que um Sistema Penal. [10] O que senão um desinteresse pelo homem, que já não tem o mesmo valor para o mercado, para a economia, estaria por trás dessa atual postura?
Bem destaca esse fenômeno como uma conseqüência da globalização na América Latina, Zaffaroni:
"El fenomeno tiene a crear en los países latinoamericanos una massa excluída que no responde a la dialética explotador/explotado, sino a una no relación entre exlcuído/incluído. El explotado contaba, era tenido en cuenta y estaba dentro del sistema, como explotado pero dentro, el excluído no cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica de este esquema, si no lo interrumpe, es el genocidio". [11]
Neste ponto já se pode proceder ao esboço de um eixo comum que dá sustentação ao "Direito da Empresa em Crise", hoje em voga, e às Teorias Ressocializadoras Penais, gradativamente abandonadas. Esse eixo comum são os interesses econômico – financeiros que invariavelmente moldam o Direito em quase todas as suas expressões.
De posse dessa noção não causa espanto o fato de que o homem desviado ou perdido já não seja objeto de preocupação, enquanto opera-se em relação às empresas uma verdadeira "metamorfose instrumental do Direito concursal" que passa a reservar ao decreto de falência com o encerramento das atividades empresariais uma posição de "ultima ratio", privilegiando alternativas que possibilitem a recuperação da empresa e a manutenção de suas atividades. [12] Seria realmente assustador que simultaneamente ao abandono do homem extraviado rumo à exclusão e ao genocídio no campo penal, surgisse uma alteração no Direito Empresarial, pugnando pela substituição de um modelo meramente punitivo do empresário e voltado tão somente à satisfação de créditos, para uma mentalidade que prima pela recuperação da empresa em crise.
Note-se que o Direito Penal e o Direito Empresarial parecem trilhar caminhos opostos quanto à evolução ou encadeamento de seus objetivos declarados. O primeiro vem da ressocialização para a exclusão, enquanto o segundo parte da exclusão pura e simples para a recuperação. Será que o Direito Penal se desumaniza na atualidade, enquanto o Direito Empresarial se humaniza, visando à preservação, por exemplo, do pleno emprego e o combate às mazelas sociais por meio de uma economia sustentável?
Infelizmente parece que a contradição de posturas, os caminhos opostos só existem na superfície, nas aparências. Na verdade, o Direito (penal, empresarial etc.) se conforma aos interesses dos modelos econômicos e assume feições mais ou menos humanitárias em função desses interesses e não por causa do homem a quem o Direito deveria servir. Na realidade é o homem que acaba servindo de instrumento sempre, por meio do Direito, aos interesses econômico – financeiros. Neste quadro resta claro que as atuais orientações dos campos penal e empresarial são extremamente coerentes e até mesmo complementares em um contexto no qual o indivíduo perde destaque ao passo que conglomerados empresariais ganham cada vez maior força. Dessa forma o Direito Penal tende ao descarte do homem porque este não tem mais a mesma relevância perante o mercado que outrora fomentou as Teorias Ressocializadoras. As empresas não são descartadas simplesmente porque o mercado globalizado depende de certos atrativos que o tornem competitivo perante a comunidade internacional. Dentre eles encontram-se a segurança e a estabilidade, as quais seriam prejudicadas por sistemas jurídicos que permitissem a quebra de suas empresas sem a busca de alternativas mais eficazes para a continuidade da atividade produtiva e a satisfação plena de credores e investidores.
3 – CONCLUSÃO
É visível a correção da lição tantas vezes reiterada de que o Direito se divide em ramos, mas na verdade constitui um único sistema cujas normas e princípios orientadores são interligados. Também se torna bem clara a noção de que os Sistemas Jurídicos são dirigidos muito intensamente pelo modelo econômico e regidos por seus interesses, atuando os diversos ramos do Direito, por mais díspares que sejam seus temas específicos, como meros instrumentos guiados por um eixo comum que, por seu turno, instrumentaliza e "coisifica" o próprio homem. Em meio a essa dura e fria realidade são erigidas fantasias, verdadeiros castelos de areia, legitimadores da criação e aplicação das normas jurídicas, sob a pele das quais se ocultam as satisfações de objetivos bem menos nobres e humanitários.
Torna-se, portanto, urgente tomar conhecimento dessa realidade perversa, acordar do sonho sem medo de encarar os desafios e só assim poder promover mudanças efetivas. Somente dessa forma poderá, talvez um dia, ser o homem no âmbito jurídico um fim em si mesmo e não mero instrumento, possibilitando o surgimento de um Direito orientado por uma postura verdadeiramente ética e não hipócrita, dissimulada e cínica. Afinal, desde antanho já apresentava Kant como postulado básico para uma conduta ética a assertiva: "age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio". [13]
Será que algum dia o Direito realmente se encontrará com a Ética para além das fantasias e das aparências? Deixará o homem de ser colocado no lugar das coisas, ou ainda mais relevante que isso, deixarão as coisas de serem colocadas no lugar do homem?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9ª. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, p. 4, nov., 1999.
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 14ª. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1996.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002.
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.
MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Trad. Tadeu Antonio Dix da Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SARAMAGO, José. Objecto Quase. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária.4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalizatión Y Sistema Penal en América Latina: De la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, p. 13 – 23, out./dez., 1997.
NOTAS
01
Curso de extensão universitária ministrado em conjunto com o Professor – Mestre de Processo Civil e Direito Empresarial, Mário Teixeira da Silva, na Unisal – Lorena/SP, nos dias 20 e 27/05/2006.02
MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Trad. Tadeu Antonio Dix da Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003, p. 19.03
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 51 – 117.04
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 9ª. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 52.05
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.14ª. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 112.06
Ibid., p. 108.07
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999, p. 4.08
Ibid., p. 4.09
Ver a respeito as reflexões de Augusto Thompson sobre o fracasso do Sistema Penitenciário Sueco quanto à ressocialização, embora cumpridas as diretrizes teóricas para o tratamento dos infratores. THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 132 – 137.10
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Marle Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 246.11
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalization Y Sistema Penal en América Latina: De la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez., 1997, p. 22.12
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 19 – 20.13
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 59.