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O tratamento jurídico das notícias falsas e a violação aos direitos da personalidade

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Agenda 07/12/2020 às 15:53

Este estudo tem por objetivo analisar o tratamento jurídico conferido pelo direito brasileiro às notícias falsas quando estas violam os direitos da personalidade.

Resumo: Este estudo tem por objetivo analisar o tratamento jurídico conferido pelo direito brasileiro às notícias falsas quando estas violam os direitos da personalidade. Trata-se do embate entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, já que as fake news tendem a afrontar a privacidade, a honra, a intimidade, dentre outros direitos. A pesquisa classifica-se como hipotético-dedutiva, desvivida e bibliográfica. Embora as notícias falsas não sejam um fenômeno recente, com a difusão da tecnologia as informações passaram a ser compartilhadas de forma muito mais fácil e célere, causando sérios danos quando inverídicas. Constatou-se que embora inexista direito fundamental absoluto, a divulgação de notícias falsas deve gerar a responsabilização do responsável, haja vista os malefícios para a pessoa atingida, que, não raras vezes, tem a sua vida devastada. Portanto, cabe ao intérprete do direito, no caso concreto, ponderar os interesses em questão, tutelando os direitos da personalidade e fazendo cessar a divulgação das notícias falsas.

Palavras-chave: Direitos da Personalidade; Fake news; Liberdade de Expressão.


INTRODUÇÃO

Nos últimos anos um fenômeno vem chamando a atenção dos estudiosos do Direito e fomentando debates em diversas searas, a exemplo da doutrinária, legislativa e jurisprudencial. Trata-se das fake news, prática que embora não seja recente na história da humanidade vem ganhando relevo na medida em que a tecnologia corroborou para a mais rápida disseminação de informações.

De fato, a internet é terreno fértil para a divulgação de informações das mais diversas naturezas. E nem sempre aquele que divulga uma informação, em primeira mão ou a compartilha, se preocupa em checar a sua veracidade, situação que compromete, não raras vezes, direitos fundamentais.

A difusão de notícias falsas, na prática, pode ter efeito devastador. E não são raros os exemplos de notícias inverídicas, difundidas em redes sociais, em blogs, compartilhadas em aplicativos de mensagens, que violam os direitos da personalidade.

Surge, nesse cenário, um embate, pois de um lado há o direito de informação, que decorre da liberdade de expressão, consagrada dentre os direitos fundamentais, no texto da Constituição Federal de 1988; e, de outro, há a intimidade, a vida privada, a honra, o nome, dentre outros direitos da personalidade, também consagrados pelo constituinte como direitos fundamentais e que recebem especial proteção do Estado. Assim, tem-se como problema de pesquisa a ser investigado a conciliação de interesses, mormente quando no caso concreto há um conflito entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. E a questão ganha relevo em se tratando de notícias falsas, pois as fake news, como comumente se denomina, sequer se enquadra na noção de direito de informação, de liberdade de expressão, devendo ser aferido o tratamento jurídico de tal fenômeno.

É nesse cenário que se situa o presente estudo, que tem por objetivo analisar o tratamento jurídico conferido pelo direito brasileiro às notícias falsas em casos de violação aos direitos da personalidade. Como objetivos específicos busca-se compreender o conceito, surgimento e evolução das fake news; destacar a relevância dos direitos da personalidade e como as falsas notícias o violam; e, ainda, averiguar como as fake news devem ser enfrentadas, à luz da liberdade de expressão, ressaltando a Teoria proposta por Alexy.

Destarte, para alcançar os objetivos supra, adota-se, como método de abordagem, o hipotético-dedutivo e, como método de procedimento, o descritivo, pautando-se a pesquisa no levantamento bibliográfico e documental, pois se busca na doutrina, legislação, artigos, dentre outras fontes, elementos para a compreensão do tema.


1. FAKE NEWS: CONCEITO, SURGIMENTO E EVOLUÇÃO

A internet, nos últimos tempos, tornou-se “terreno fértil” para a difusão de falsas notícias, principalmente pelas redes sociais, o que se denomina “fake news”. Segundo Sodré (2018, p. 377-378), a expressão, tradução literal, significa notícias falsas e é compreendida como um “[...] neologismo para designar informação falsa”.

De fato, o termo fake news remete a um fenômeno que se verifica fortemente no mundo contemporâneo, embora não seja um fenômeno recente na história da humanidade. E sobre o conceito da expressão que, livremente, se traduz como “notícias falsas”, Stanger (2019, p. 43-44) leciona:

Fake news, termo inglês que significa notícias falsas, se tornou vocabulário comum no mundo todo a partir de notícias veiculadas como enleivadas de verdade quando não o eram. Porém, há outros termos que também são utilizados de forma sinônima e que podem ter relação como: fofocas, boatos, hoax, mexericos, entre outros.

Ao tratar do conceito de fake news, assim leciona Pinto (2018, p. 07):

A expressão “fake news” refere-se, então, de forma sumária, a mentiras apresentadas como notícias, i.e., falsidades formatadas e feitas circular de forma a que o leitor as possa interpretar como artigos noticiosos legítimos (Mustafaraj & Metaxas, 2017, Rochlin, 2017). Uma outra classificação é avançada por Love (2007, cit. in Crittenden, Hopkins & Simmons, 2011), que define fake news como notícias apresentadas como factuais, objetivas e credíveis quando, de facto, são ficcionais.

As fake news são, nas palavras de Balem (2017), munidas de discurso de ódio e estão relacionadas, por conseguinte, com a difusão de formas concretas de expressão e de comunicação, dirigidas a grupos definidos por sua raça, religião, orientação sexual, deficiência, etnia, nacionalidade, idade, gênero, filiação política ou outras características pessoais, funcionais ou sociais.

Pinto (2018), por sua vez destaca que as fake news vem ganhando relevo, nos últimos tempos, como a “pós-verdade”, embora seja um conceito recentemente discutido, é atemporal e refere-se a um fenômeno que assola a humanidade há tempos.

Acerca da relação entre as notícias falsas e a evolução tecnológica, assim leciona Pereira e Nascimento (2019, p. 25):

O combate às notícias falsas é hoje uma necessidade mundial. Se, no passado, buscava-se a democratização da informação, hoje a grande dificuldade é a de filtrar conteúdos, a velha separação entre o joio e o trigo que os ensinamentos religiosos inseriram na cultura judaico-cristã há mais de dois mil anos. [...] Por um lado, quase tudo o que se busca está disponível à distância de um clique. Por outro, o conteúdo informacional pode ser extremamente falacioso, capaz de ludibriar não apenas os incautos, mas também aqueles que se julgam astutos e antenados com o mundo atual.

Contudo, Pinto (2018) observa que fake news não se limita apenas às notícias falsas, em sua integralidade, pois também engloba aquelas que decorrem de omissões propositais ou retenção de informações como estratégia para discussões acerca do alcance e conteúdo da notícia divulgada.

T rata-se, por conseguinte, de manipulação de informações, em sentido amplo. Porém, é um fenômeno que nem sempre e de fácil identificação, como leciona Christofolett (2018, p. 59):

A manipulação da informação é um conceito complexo, apesar de ser uma ideia largamente aceita e disseminada. Se na área da farmacologia, manipular substâncias para produzir medicamentos é um gesto intrínseco e necessário, afirmar que alguém manipulou dados e informações no campo da comunicação quase sempre tem caráter pejorativo. Isso porque manipulação seria ao mesmo tempo operar em algo, interferir na sua integridade e afetar o seu fluxo natural. Manipular uma notícia é distorcer, não ser fiel ao fato de origem, enganar, omitir, inverter, mentir.

Os problemas de uma formulação como essa residem na possibilidade de intervenção em algo dado – a informação –, sua essência e impermeabilidade. Isto é, na consideração de que a comunicação e o jornalismo possam ser formas de espelhar o mundo e a realidade, e disso sejam capazes.

O grande problema no que tange a difusão de notícias falsas, de acordo com Bussular (2018), é o poder que estas tem de manipular os indivíduos e influenciar nos resultados, principalmente porque os meios de comunicação em massa corroboram para a rápida difusão de notícias, ideia da qual compartilha Calegari (2017), o qual complemente que as fake news são notícias lançadas na internet sem que haja preocupação por parte do autor da notícia ou de quem a compartilha a informação que é compartilhada com a sua veracidade.

Por conseguinte, continua Sodré (2018), toda e qualquer notícia de ato, evento ou acontecimento que seja inverídica, mas que possa causar, ainda que potencialmente, expectativas, formar convencimentos e opiniões, influenciar na formação de tomada de decisões, pode ser concebida como uma fake news.

Carvalho e Mateus (2018) asseveram que as fake news ganharam evidência na sociedade informacional, embora seja um conceito que, como já dito, é atemporal no que tange a difusão de informações falsas.

Ainda segundo Sodré (2018), podem ser consideradas como fake news apresenta a falsa conexão (quando manchetes virtuais de legenda não correspondem à matéria divulgada); falso contexto (quando o conteúdo, embora verdadeiro, é divulgado junto com informações falsas, fora de um contexto); manipulação de conteúdo (quando informação e imagem são verdadeiras, mas manipuladas com o propósito de enganar); paródia ou sátira (quando a notícia ou fato é divulgado no contexto humorístico, sem intenção de enganar, mas tem aptidão para tanto); conteúdo enganoso (quando informações de uma pessoa ou problema são utilizadas para enganar); conteúdo de impostor (quando fontes verdadeiras são difundidas junto à conteúdo falso); conteúdo fabricado (quando a totalidade do conteúdo é falsa e busca prejudicar, enganar).

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Uma questão importante é que há determinadas notícias, seja pelo seu conteúdo, seja por aquele que a difunde, tem maior probabilidade de se propagar. É o que ocorre, por exemplo, com críticas a determinados espectros ideológicos, que fomentam a intolerância e gera o engajamento de alguns no compartilhamento/difusão das informações inverídicas (BUSSULAR, 2018).

Lembra Sodré (2018, p. 378), ainda, que a informação falsa não é novidade no meio social, sendo “tão velha quanto a própria humanidade”, como também enfatiza Darnton (2017, p. 01), ao tratar do surgimento do fenômeno em análise:

[ ...] Procópio, o historiador bizantino do século VI, escreveu um livro cheio de histórias de veracidade duvidosa, História Secreta (Anedota no título original), que manteve em segredo até sua morte para arruinar a reputação do imperador Justiniano, depois de ter mostrado adoração a ele em suas obras oficiais (DARNTON, 2017, p. 01).

Contudo, na atualidade, ganhou relevo devido a alguns eventos envolvendo o processo eleitoral, principalmente pela gama de condutas que possibilitam só apenas a criação de notícias falsas, mas também sua reprodução e divulgação a um público específico ou a todos.

Sodré (2018, p. 379-380) destaca a problemática dos robôs ou bots, “programas gerados para replicar automaticamente milhares de mensagens, likes, twiters a respeito de um mesmo tema, fazendo com que aquele assunto alcance o topo das redes sociais”.

Trata-se, portanto, de um impulsionamento eletrônico que faz com que uma notícia irrelevante rapidamente se torne conhecida de todos nas redes sociais e, a partir desse ponto, passa a ser replicada também por seres humanos. Logo, dá a impressão “que de fato ‘as pessoas’ acham o tema relevante” (SODRÉ, 2018, p. 380), e o que inicialmente foi replicado por robôs ganha grande proporção no pleito eleitoral, sendo um problema recorrente nas eleições no Brasil, nos últimos tempos.

Tem-se, ainda, o deepfake, sobre o qual leciona Sodré (2018, p. 380). Para o autor falar em fake news não significa necessariamente se referir à informações grosseiras, que pouco ou nenhum impacto causam na vida das pessoas. Em se tratando de pleito eleitoral tem relevância os fatos que podem influenciá-lo, motivo pelo qual ganha relevância o requinte e a qualidade na elaboração, reprodução e divulgação das fake news. É nesse cenário que surge o fenômeno denominado pelo autor de deepfake, que em tradução literal significa “falsificação profunda”.

Consiste, em apertada síntese, na utilização de tecnologia de ponta para manipular imagens e sons, que “reproduzem falsamente a imagem e o som, em alta qualidade, não sendo possível identificar se a pessoa e o som na notícia divulgada são verdadeiros ou não” (SODRÉ, 2018, p. 380).

Desta feita, o potencial devastador das fake news é inegável, até mesmo porque se tem ciência de guerras e conflitos ao redor do mundo que ganharam repercussão exatamente em virtude de notícias falsas. Segundo Bussular (2018) as fake news deixam a sociedade inserida em um dilema sobre o que é verdadeiro ou falso, contribuindo para a perpetuação do quadro de desinformação.

Nessa senda lecionam Carvalho e Mateus (2018, p. 12):

[ ...] existem três quesitos a se considerar sobre a desinformação. Primeiro, pode-se afirmar que a desinformação é uma informação. Segundo que é uma informação enganosa, e por último, a desinformação não é uma informação enganosa por acidente, ou seja, foi criada com o intuito de enganar. [...]

O conceito de pós-verdade é baseado na banalização da verdade, ou seja, dados objetivos são ignorados, e o apelo na formação da opinião junto ao público fala mais alto que a veracidade dos fatos, criando uma confusão sobre a realidade. Não chega a ser uma mentira, nem tampouco uma verdade. Daí se torna uma arma tão igual ou mais poderosa que as Fake news, pois apela para um discurso emotivo populista.

Ocorre que no ordenamento jurídico brasileiro é crime aquilo que a lei diz que é crime, ou seja, a lei tem que tipificar a conduta, pois o ato simples de divulgar uma notícia falsa não é crime e não pode ser punido, contudo, importante observar o seu conteúdo da notícia falsa que está sendo divulgada, se ela tiver conteúdo calunioso, difamatório ou de injuria, neste caso poderá cometer um desses crimes elencados na lei (CALEGARI, 2017). Portanto o compartilhamento de informações falsas por terceiros e saber a veracidade do conteúdo propriamente dito que é compartilhado não configura esta conduta como crime, há somente a conduta delitiva se ofender a honra do indivíduo.

Há diversos projetos de lei no senado federal e na câmara dos deputados que estão em tramitação, com a finalidade de tipificar tais condutas que não vem tipificadas no ordenamento jurídico, pois a falta de uma legislação específica gera insegurança jurídica.

Sodré (2018, p. 381-382) cita em sua obra fatos relatados pela jornalista ucraniana, Olga Yurkova, que demonstram o poder devastador. O primeiro é o do menino crucificado na Ucrânia. Em 12 de julho de 2014, em meio à guerra de Donbass, a mídia russa divulgou o caso de Galyna Pyshnyak, apresentada como refugiada russa. Esta teria narrado em frente às câmeras de televisão russa que soldados ucranianos teriam crucificado um menino de três anos de idade em frente à sua mãe. Contudo, posteriormente descobriu-se que Galyna não era russa, mas sim ucraniana e esposa de uma militante pró-russo e que o fato por ela narrado era inventado, assim como o lugar onde o suposto crucificamento aconteceu. Até que se descobriu a verdade, contudo, muitos ucranianos e russos “pegaram em armas”.

A segunda notícia relatada pela jornalista ucraniana, Olga Yurkova diz respeito à menina do Kuwait. Nayira, de 15 anos de idade, perante o Congresso dos Estados Unidos, contou que soldados iraquianos retiravam bebês prematuros de incubadoras em um hospital no qual supostamente Nayira atuava como voluntária. Tal fato teria ocorrido em 1990. As palavras da menina foram repetidas várias vezes pelos integrantes do Senado norte-americano. Contudo, tomou-se conhecimento posteriormente que o depoimento havia sido preparado por uma agência de relações públicas nos Estados Unidos ligadas à monarquia do Kuwait (SODRÉ, 2018, p. 382).

A terceira notícia apresentada pela jornalista ucraniana, Olga Yurkova, e relatada por Sodré (2018, p. 382) diz respeito à fotos falsas na crise dos Rohingya, povo mulçumano que representa 5% da população de Mianmar e foram objeto de limpeza étnica. Circularam fotos de décadas, como a guerra de Ruada, como se fossem relacionadas aos mulçumanos, contribuindo para o aumento da violência em Mianmar.

As três situações acima relatadas decerto demonstram o potencial devastador das divulgações de notícias falsas, de forma deliberada, que nos exemplos supra comprometeram a paz, prejudicaram países e povos, fomentando a violência, atos de guerra, etc.

No Brasil tem-se o trágico caso ocorrido no Guarujá, quando notícias falsas difundidas em redes sociais culminaram no linchamento de Fabiane Maria de Jesus, confundida pelos agressores como suposta sequestradora de crianças que praticava rituais de magia negra. À época, mesmo com a retratação e postagens diversas desmentindo o fato, a Fabiane foi, repita-se, vítima de linchamento (SZAPACENKOPF, 2017).

O fato acima narrado não é isolado. Na cidade de Araruama, no Estado do Rio de Janeiro, um casal também foi espancado após circular em grupos do WhatsApp que se tratava de pessoas que sequestravam crianças, inclusive com a divulgação de fotos de Luiz Áureo de Paula e Pamela Martins (SILVA; SILVA, 2014).

Destarte, são apenas exemplos, mas que demonstram os malefícios e consequências das fake news, fomentando debates quanto às limitações à liberdade de expressa no ambiente virtual, pois não há, com o sabido, nenhum direito fundamental absoluto. Logo, não pode o indivíduo disseminar informações falsas ao argumento de que se vale da liberdade de expressão consagrada no texto constitucional e também nas normas de Direito Internacional. Nesse contexto, a liberdade1, enquanto direito fundamental de primeira ordem, ou primeira dimensão, serve de instrumento da vivência plena do primeiro. Contudo, a liberdade não pode afrontar os direitos da personalidade. Porém, antes de se adentrar na análise de tal conflito, é necessário tecer alguns comentários acerca dos direitos da personalidade, objeto da próxima seção.


2. DIREITOS DA PERSONALIDADE E COMO AS NOTÍCIAS FALSAS AFETAM ESSE DIREITO

O direito da personalidade, introduzido no Código Civil de 2002, consiste na defesa da integridade física, moral ou intelectual de uma pessoa. Originário da doutrina germânica e francesa, o direito da personalidade é um estudo recente, ganhando relevo apenas a partir da Segunda Guerra Mundial (FRANÇA, 1994).

Como bem leciona França (1994, p. 1034), os “direitos da personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujos objetos são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim da sua projeção essencial no mundo exterior.”

Contudo, cumpre esclarecer que, inicialmente, o Direito Romano não contemplou o direito da personalidade como é visto atualmente, pois o Estado cuidou apenas da ação contra a injúria, que tinha como finalidade conter qualquer atentado contra a pessoa. Para isso, existia uma ação chamada dike kakegoric, que punia quem violasse algum interesse físico ou moral de outrem, ou seja, não existia especificadamente no âmbito jurídico uma categoria para tutelar a personalidade (FRANÇA, 1994).

Porém, a partir da Carta Magna inglesa de 1215, foi estabelecida a proteção do direito da personalidade em seus aspectos fundamentais, o que foi reforçado com a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789.

Ocorre que, apenas após a Segunda Guerra Mundial, com as atrocidades cometidas pelo nazismo, compreendeu-se a necessidade de uma proteção ao ser humano, assim, foi promulgada a Declaração Universal de Direitos do Homem, no ano de 1948. Com isso, os Códigos Civis foram sendo reformados, passando a abranger a proteção dos direitos da personalidade (FRANÇA, 1994).

Acerca da noção de “personalidade” e sua evolução, cumpre apresentar os ensinamentos de Pereira (2017, p. 182), para quem:

A ideia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres Esta aptidão é hoje reconhecida a todo ser humano, o que exprime uma conquista da civilização jurídica. Nem sempre, porém, isto aconteceu. No direito romano, o escravo era tratado como coisa, era desprovido da faculdade de ser titular de direitos, e na relação jurídica ocupava a situação de seu objeto, e não de seu sujeito. No direito brasileiro, a ideia da concessão de personalidade a todo ser humano vigorou mesmo ao tempo da escravidão negra, muito embora o regime jurídico do escravo não o equiparasse ao homem livre (cf. nº 44, infra). Hoje o direito reconhece os atributos da personalidade com um sentido de universalidade, e o Código Civil o exprime, afirmando que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º).

No Brasil, os direitos da personalidade ganharam especial atenção com o advento da Constituição Federal de 1988 e regulamentados no Código Civil de 2002, reconhecendo, expressamente, os direitos da personalidade em seus artigos 11 a 21.

De fato, a noção de direitos da personalidade está intrinsecamente relacionada personalidade enquanto atributo da pessoa humana, sendo que, no ordenamento jurídico brasileiro, está relacionada ao nascimento com vida (PEREIRA, 2017).

Não se pode ignorar, contudo, que os direitos da personalidade não nascem com a lei que os regulamenta. O direito da personalidade nasce com o próprio homem, titular dos seus direitos de maneira perpétua e permanente, não sendo possível que haja qualquer indivíduo que não possua o direito à vida, por tal razão que é um direito inerente à pessoa humana. Nesse contexto, “[...] conceituam-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO: 2014, p. 186).

Já Farias e Rosenvald (2010, p. 130), ao conceituar pessoa, ressaltam tratar-se do “[...] sujeito das relações jurídicas que traz consigo um mínimo de proteção fundamental, necessária para realizar tais atividades, compatível e adequada às suas características (que são os direitos da personalidade)”.

Ainda, de acordo com os mesmos autores, “[...] considerando que a personalidade é um conjunto de características pessoais, os direitos da personalidade constituem verdadeiros direitos subjetivos, atinentes à própria condição de pessoa” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 136).

Sintetizam, ao final da explanação, que os “[...] direitos da personalidade estão, inexoravelmente, unidos ao desenvolvimento da pessoa humana, caracterizando-se como garantia para a preservação de sua dignidade” (FARIAS; ROSENVALD: 2010, p. 137).

Ademais, o direito da personalidade possui uma esfera extrapatrimonial a pessoa, onde “o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO: 2014, p. 186).

Desta feita, e assegurado no art. 5º da Constituição Federal, os direitos das personalidades integra o direito ao nome, a sua imagem, a honra, a liberdade, entre outros. Tais direitos são inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, como afirma o art. 11. do Código Civil, que assim dispõe: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (BRASIL, 2002).

De acordo com Gagliano e Pamplona Junior (2014), há duas correntes doutrinárias que buscam explicar os direitos da personalidade, quais sejam, a positivista e jusnaturalista. Sobre a primeira corrente os autores pontuam ser o ponto central a ideia de que os “[...] direitos da personalidade devem ser somente aqueles reconhecidos pelo Estado, que lhes daria força jurídica. Não aceitam, portanto, a existência de direitos inatos à condição humana” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 188).

Já a corrente jusnaturalista distingue-se da primeira, visto que “destaca que os direitos da personalidade correspondem às faculdades exercitadas naturalmente pelo homem, verdadeiros atributos inerentes à condição humana” (GAGLIANO; PAMPLONA: 2014, p. 188). Entretanto, deve sempre ser preservada a condição humana como um valor a ser tutelado, independentemente da corrente adotada.

Anote-se, ainda, que a doutrina busca classificar os direitos da personalidade, sendo que o presente estudo se pauta na classificação apresentada por Bittar (2008) que, por sua vez, adota os ensinamentos de Limongi França. E o autor pontua:

Os bens jurídicos que ingressam como objetos no centro dos direitos da personalidade são, pois, de várias ordens divididos em: a) físicos, como: a vida, o corpo (próprio e alheio); as partes do corpo; o físico; a efígie (ou imagem); a voz; o cadáver; a locomoção; b) psíquicos, como: a intimidade; os segredos (pessoais e profissionais) e c)morais, como: o nome (e outros elementos de identificação); a reputação (ou boa fama); a dignidade pessoa; o direito moral do autor (ou de inventor); o sepulcro; as lembranças de família e outros (BITTAR, 2008, p. 64).

A primeira categoria visa cuidar dos atributos extrínsecos que individualizam a pessoa; Na segunda, o bem jurídico protegido é incolumidade psíquica e intelectual do ser, tendo em vista a sua necessidade para o bem estar e dignidade. Quanto à terceira categoria, assegura os direitos morais do sujeito, ou seja, uma proteção em face à sociedade.

No presente trabalho acadêmico serão abordados os direitos da personalidade atinentes à temática principal, ou seja, àqueles que são indispensáveis para assegurar à sua condição.

Direito à integridade física consiste em preservar o corpo, materialmente considerado, além da lucidez mental do ser. Desde a concepção, a pessoa deve ser protegida de quaisquer tipos de violência, ou atos prejudiciais à sua saúde. A referida proteção é dever da família e do Estado, de acordo com o determinado constitucionalmente. Verifica-se assim, o papel de relevo que a família constitui para o ser humano. Bittar descreve o bem jurídico tutelado:

O bem jurídico visado é a incolumidade física e intelectual. Preservam-se, com o direito reconhecido, os dotes naturais e os adquiridos pela pessoa, em nível físico e em nível mental, profligando-se qualquer dano ao seu corpo ou à sua mente. Condenam-se atentados ao físico, à saúde e à mente, rejeitando-se, social e individualmente, lesões causadas a normalidade funcional do corpo humano, sob os primas anatômico, fisiológico e mental

A integridade física busca assegurar, em apertada síntese, o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana (BITTAR, 2008, p. 77) é “a proteção jurídica objetiva evitar à pessoa o sofrimento físico, o prejuízo à saúde ou a perturbação às faculdades mentais”.

O direito ao corpo também faz parte da integridade física. O corpo é o meio pelo qual a pessoa realiza sua missão no mundo, é o instrumento que possibilita exercer sua função natural (BITTAR, 2008). A personalidade se inicia com o nascimento com vida, ou seja, quando o corpo do novo ser se desvincula com o de sua genitora, passa a figurar como ente autônomo, devendo o seu corpo ser protegido. É por conta dele que todos os demais atributos subsistem.

Na análise deste direito é possível notar uma exceção à característica da indisponibilidade. Contudo, o sujeito pode autorizar a extirpação de partes anatômicas do seu corpo em prol da saúde, de acordo com o art. 13. do Código Civil, segundo explicação de Diniz (2014, p. 140):

Só por exigência médica será possível a supressão de partes do corpo humano para preservação da vida ou da saúde do paciente. Reforça tal ideia o Enunciado n. 6, aprovado na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), que assim dispõe: "A expressão exigência médica, contida no art. 13, refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente". E o Conselho da Justiça Federal no Enunciado n. 276. (aprovado na IV Jornada; de Direito Civil) esclarece: "O art. 13. do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil" (grifo nosso).

Diante desse enunciado não restam dúvidas acerca da interpretação do dispositivo em questão, visto que esse instrumento serve de orientação para autorização de procedimentos médicos, cujo objetivo é garantir a qualidade de vida.

Ademais, seria um contrassenso não autorizar essa intervenção cirúrgica, enquanto se permite àquelas de cunho puramente estético, e totalmente desnecessária às pessoas que mantêm perfeitas condições físicas. Ao autorizar o procedimento, o ordenamento jurídico brasileiro está apenas efetivando direitos previstos constitucionalmente, como direito à saúde e dignidade da pessoa humana, bem como implementando as políticas públicas necessárias para garantir o direito sobre o próprio corpo.

Por outro lado, tem-se o direito à imagem. A imagem é o que projeta o ser humano na sociedade, a composição de características físicas, segundo entendimento de Bittar (2008, p. 94):

Consiste no direito que a pessoa tem sobre a sua forma plástica e respectivos componentes distintos (rosto, olhos, perfil, busto) que a individualizam no seio da coletividade. Incide, pois, sobre a conformação física da pessoa, compreendendo esse direito um conjunto de caracteres que a identifica no meio social. Por outras palavras, é o vínculo que une a pessoa à sua expressão externa, tomada no conjunto, ou em partes significativas.

Por esta razão, é tida como um atributo da personalidade, ou seja, um bem jurídico tutelado, passível de punição em caso de desrespeito. Há previsão constitucional, incluído no rol dos direitos fundamentais:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[ ...]

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[ ...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (BRASIL, 1988).

Portanto, verifica-se que o direito ao corpo e a integridade física garantem o direito à imagem. No presente trabalho acadêmico esse direito assume um papel significativo.

O direito à liberdade integra a categoria dos direitos de ordem psíquica da classificação apontada (BITTAR, 2008) e é próprio do Estado Democrático de Direito. A liberdade é um conceito jurídico extremamente complexo. Está relacionada ao poder de autodeterminação de cada sujeito. Porém, por óbvio que não existe liberdade absoluta.

Contudo, tal direito deve ser exercido dentro de limites aceitáveis socialmente e que não fira direitos de terceiros. A manifestação desse direito tem implicação em todas as esferas de sua vida:

O bem jurídico protegido é a liberdade, que se pode definir como a faculdade de fazer, ou deixar de fazer, aquilo que a ordem jurídica se coadune. Vale dizer: é a prerrogativa que tem a pessoa de desenvolver, sem obstáculos, suas atividades no mundo das relações (BITTAR, 2008, p. 105).

É o direcionamento de suas ações de acordo com suas convicções pessoais para o alcance de seus objetivos, não podendo terceiro criar obstáculos que limitem o exercício do direito. No âmbito civil, há ampla utilização desse direito, embora possa ser limitado em algumas situações. Mas a exceção para o exercício dele é mais facilmente visualizada no direito penal.

Cabe ao Estado e aos particulares respeitarem os caracteres psíquicos do ente, abstendo-se de interferir nessa estrutura, visto que é aspecto interno da personalidade, fazendo parte do conjunto individualizador do ser (DINIZ, 2014).

O direito de identidade compõe a categoria de ordem moral dos direitos da personalidade. A palavra “identidade” tem sentido amplo, entretanto, aqui se pode compreender como um conjunto de elementos que visam individualizar a pessoa. Esse direito integra o sujeito a um grupo familiar, demonstrando a sua origem. Ademais, evita confundir o titular com outrem, possibilitando ser lembrado mesmo que ausente. É o elo entre o indivíduo e a sociedade (BITTAR, 2008).

Quando a família sabe que existe um ser em formação, começam a criar expectativas sobre como ele será e principalmente, para referir-se à ele dá-se um nome. Isso cria um vínculo entre a criança e os pais. O novo ser humano é individualizado antes mesmo de vir ao mundo externo. Desse modo, como destaca Tomaszewsk (2013, p. 188), “Individualizar o ser humano é algo tão antigo quanto a sua origem, pois desde os primeiros contatos com o mundo exterior e com os seus semelhantes isto deveria ocorrer de alguma maneira’.

O direito à identidade não congrega somente o direito ao nome, existem outras nuances que permeiam esse enunciado:

A identidade sexual é considerada como um dos aspectos fundamentais da identidade pessoal, que possui uma estreita ligação com uma pluralidade de direitos, que permitem o livre desenvolvimento da personalidade que possui em seu conteúdo, a proteção à integridade psicofísica, a tutela da saúde e o poder de disposição de partes do próprio corpo, pela pessoa (SZANIAWSKI, 1988, p. 34).

Por outro lado, a identidade consagra o direito ao nome, positivado no Código Civil Brasileiro, no art. 16. O prenome é palavra ou expressão que designa alguém, por exemplo, João ou Maria. É aquele nome que os genitores ou responsáveis escolhem para a pessoa. Pode ser simples, como os que foram mencionados, ou compostos. O prenome composto pode ser “Ana Maria”, “João Vitor”. Vê-se que o prenome não é uma opção do titular, pois quando da sua designação o mesmo ainda é incapaz cognitivamente (GOMES, 2010).

O prenome é de livre escolha dos pais, sendo vedado apenas àqueles nomes que possam causar constrangimento ou humilhação à pessoa. Por esta razão, tal decisão é de extrema importância, tendo em vista que a Lei 6.015 tenta coibir esse tipo de situação (TOMASZEWSKI, 2013).

Importante destacar que o oficial do registro pode se recusar a registrar a criança com prenome que cause constrangimento. E se mesmo assim, os genitores insistirem, deverão recorrer ao judiciário para dirimir a controvérsia, além de comunicar formalmente ao oficial sobre a providência - art. 55, § da Lei 6.015/1973 (TOMASZEWSKI, 2013). Assim, faz parte da composição do nome o patronímico ou sobrenome, “o nome da família”, este sucede o prenome. O sobrenome indica a qual família o sujeito pertence, sendo obrigatório o da ascendência paterna e facultativo o da mãe, mostrando o quão machista é o nosso ordenamento jurídico ainda. Sempre será possível saber quem é a mãe biológica da criança, enquanto o pai muitas vezes se esquiva de suas responsabilidades.

Ademais, existe o agnome. Segundo Tomaszeweski (2013, p. 190) são “sinais distintivos de pessoas constantes de uma mesma família, como Júnior, Neto, Filho, Sobrinho. Pode dar-se também de forma ordinal, qual seja, Primeiro, Segundo, Terceiro ou mesmo I, II, III”.

Por outro lado, verifica-se que o Código Civil faz referência à figura do pseudônimo. Assim, o pseudônimo pode ser protegido da mesma forma que o prenome, e o seu uso não acarreta a perda do prenome do seu assento de nascimento (GOMES, 2010).

Outrossim, pode-se verificar também a existência do apelido, ou seja, expressão que é utilizada vulgarmente para designar uma pessoa, ou alcunha, caso seja pejorativo. É possível apontar ainda, os títulos de nobreza, acadêmicos, ou qualificações de dignidade oficial, que podem ser considerados acessórios honoríficos ao nome (GOMES, 2010, p. 121).

Quanto a titularidade dos direitos da personalidade, esta é do indivíduo, que já nasce com ela, alcançando até mesmo os nascituros, “[...] que, embora não tenham personalidade jurídica, têm seus direitos ressalvados, pela lei, desde a concepção, o que inclui, obviamente, os direitos da personalidade” (GAGLIANO; PAMPLONA, 2014, p. 191).

Outrossim, os direitos da personalidade possuem características próprias, sendo: absolutos; gerais; extrapatrimoniais; indisponíveis; imprescritíveis; impenhoráveis; vitalícios; e inalienáveis. Possuem caráter absoluto por ser um direito que “[...] se materializa na sua oponibilidade erga omnes, irradiando efeitos em todos os campos e impondo à coletividade o dever de respeitá-los.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 194-195).

Resta claro, portanto, a relevância dos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro, com reconhecimento constitucional e regulamentados, como já dito, no Código Civil de 2002.

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