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As consequências da inobservância das formalidades do reconhecimento de pessoas no Processo Penal

Agenda 08/12/2020 às 22:43

Sendo o reconhecimento pessoal um meio de prova muito relevante no processo penal, devem ser analisadas as consequências da inobservância das formalidades legais e as falsas memórias, que podem fundamentar uma condenação injusta de inocentes.

1 INTRODUÇÃO

Quando o Estado tomou para si o dever de punir, o chamado jus puniend, aboliu-se a vingança privada e se necessitou de regras que determinassem o limite e a maneira como seriam impostas as punições. Diante disto, foram criados o Código Penal e o Código de Processo Penal, onde aquele cuida do direito material e este da aplicação do direito material em um processo.

Sabe-se que antes da aplicação de uma eventual pena, faz-se necessário o devido processo legal, com a averiguação de provas e respeito ao contraditório, para o fim de dar ao réu/investigado um julgamento ausente, o máximo possível, de falhas.

Para tanto, várias espécies de provas são utilizadas para que o Juiz se aproxime o tanto quanto possível da Verdade Real, visando um julgamento justo, com aplicação de uma eventual pena apropriada ao fato antijurídico praticado pelo agente ou para que o mesmo seja absolvido, de acordo com o livre convencimento do magistrado.

Buscou-se expor com este estudo as consequências que a inobservância do procedimento do meio de provas do reconhecimento de pessoas, e a consequente criação de falsas memórias, podem causar num processo, podendo condenar pessoas inocentes, que carregarão por toda a vida o fardo de uma prisão ilegítima, muitas vezes sem conseguir provar sua inocência.

2 DOS PRINCÍPIOS DA PRODUÇÃO PROBATÓRIA

Assim como em todos os ramos do Direito, alguns princípios devem ser observados para a produção probatória, a fim de que não ocorra nenhuma causa de nulidade ou cerceamento de Defesa.

Avena (2012, p. 287-289) traz como principais princípios da produção probatória: (i) princípio do contraditório; (ii) princípio da comunhão das provas; (iii) princípio da oralidade; (iv) princípio da publicidade; (v) princípio da autorresponsabilidade das partes; e (vi) princípio da não autoincriminação.

O princípio do contraditório é um dos mais relevantes do Processo Penal. Para todos os atos de uma persecução penal, se não oportunizado ao réu o direito ao contraditório anula-se o que já foi produzido por cerceamento de defesa. Ademais, não há como ocorrer um justo julgamento se não ouvida a versão dos fatos dada tanto pela vítima, quanto pelo réu.

O princípio da comunhão das provas infere que uma prova, depois de colacionada nos autos, não pertence às partes, mas ao processo como um todo, podendo ser por todos utilizada. Leciona Nucci (2012, p. 358) sobre o assunto:

Princípio da comunhão das provas: significa que a prova, ainda que produzida por iniciativa de uma das partes, pertence ao processo e pode ser utilizada por todos os atos participantes da relação processual, destinando-se a apurar a verdade dos fatos alegados e contribuindo para o correto deslinde da causa pelo juiz.

Quanto ao princípio da oralidade, o próprio nome já remete a ideia de fala. Avena (2012, p. 287-288) dispõe que “isto existe para que, nos momentos mais relevantes do processo, predomine a palavra falada, possibilitando ao magistrado participar dos atos de obtenção da prova.”

O princípio da autorresponsabilidade das partes também é autoexplicativo e, em suma, quer dizer que cada parte é responsável pela prova que produz e pela prova que deseja produzir.

Por fim, o princípio da não autoincriminação manifesta-se na não obrigatoriedade do réu produzir prova contrária a si, ou seja, “qualquer prova que lhe for demandada pelo juiz, implicando em prejuízo para sua defesa, pode ser negada.” (NUCCI, 2012, p. 363).

3 DAS PROVAS EM ESPÉCIE

Antes de aprofundar na espécie de prova objeto deste estudo, importante expor as provas admitidas na instrução criminal, para melhor compreensão.

3.1 Da prova pericial e exame do corpo de delito

 O artigo 158 do Código de Processo Penal dispõe que o exame de corpo de delito deverá ser realizado nos crimes que deixam vestígios, os chamados não transeuntes pela doutrina, não lhe suprindo a ausência, a confissão do acusado.

No tange a última parte do artigo supracitado, os Tribunais Superiores têm entendido que, se as demais provas dos autos são suficientes a suprir a ausência da prova pericial, torna-se prescindível o laudo.

Por se tratar de uma prova técnica, deverá ser realizada por um perito que tem o domínio do saber técnico que fará sua análise e elaborará o laudo, o qual servirá como elemento para a convicção do juiz, não ficando este adstrito ao constante naquele (art. 182 do CPP).

Neste sentido, dispõe Lopes Jr. (2017, p. 424):

Assim, nenhuma dúvida temos do valor do conhecimento científico, mas não há que endeusá-lo com o absolutismo, pois mesmo o saber científico é relativo e possui prazo de validade. Dizemos isso para, desde logo, advertir que não existe ‘a rainha das provas’ no processo penal, e muito menos o é a prova pericial.

A finalidade da perícia é a confecção do exame de corpo de delito, o qual é feito mediante uma rigorosa observação e vistoria dos vestígios materiais deixados, ou que demonstraram estar ali há algum tempo (NUCCI, 2012, p. 382). Portanto, por óbvio, aos crimes transeuntes, não será exigido tal meio de prova.

3.2 Do interrogatório do réu

O interrogatório do acusado, também chamado de Defesa Pessoal Positiva (LOPES JR., 2017, p. 442), traz a oportunidade de o réu apresentar ao magistrado suas alegações, versão dos fatos e, inclusive, indicar meios de provas que possam corroborar suas declarações, além de poder, ainda, confessar o crime ou fazer uso do seu direito constitucional ao silêncio (NUCCI, 2012, p. 420).

Nesta senda, Grinover (1996 apud LOPES JR., p. 343) diz que o interrogatório não possui a finalidade de produzir prova, mas sim “fornecer outros elementos de prova que possam conduzir à sua comprovação.”.

3.3 Da confissão

A confissão é um meio de prova no qual aquele que está respondendo a ação penal confirma a autoria dos fatos atribuídos a si. Para ser válida, essa confissão deve ser feita de modo pessoal, espontâneo, voluntário e, não menos importante, com discernimento do agente (NUCCI, 2012, p. 450).

Contudo, importante ressaltar que esse meio de prova, para ser válido, deve estar em consonância com as demais provas do processo, de modo que a confissão possa ser confrontada e confirmada por elas, não sendo, portanto, prova absoluta, uma vez que, isolada nos autos, não será levada a efeito no julgamento (AVENA, 2012, p. 324).

3.4 Da prova testemunhal

Essa espécie de prova consiste na inquirição de testemunhas e/ou informantes que presenciaram o delito ou sabem de alguma informação relevante para os deslindes dos fatos.

Em que pese exista várias discussões sobre quem pode ser testemunha, como deve ser colhido o testemunho, valor probatório da palavra da vítima, entre outros, este artigo não adentrará neste mérito, por não ser o objeto principal do estudo.

3.5 Do reconhecimento de pessoas e coisas

 Por ser o reconhecimento de pessoas o ponto principal do presente, por ora, limitar-se-á explicar em que consiste esse meio de prova.

Renato Brasileiro de Lima (2017, p. 717) traz que o reconhecimento de pessoas não se confunde com o retrato falado, eis que “este é formado a partir de informações prestadas ao perito por pessoa que tenha visto o autor do delito, sendo considerado não um meio de prova, mas sim um meio de investigação.”

Explicado isto, Nucci (2012, p. 526), diz que o reconhecimento “é o ato pelo qual uma pessoa admite e afirma como certa a identidade de outra ou a qualidade de uma coisa”.

Complementando, Lopes Jr. (2017, p. 487) defende que, de acordo com o Código de Processo Penal, “o conhecimento por excelência é o visual”.

De uma forma bem esclarecedora, Tornaghi (1990, p. 429) traz que o reconhecimento “é o ato pelo qual alguém verifica e confirma a identidade de pessoa ou coisa que lhe é mostrada, como pessoa ou coisa que já viu”.

Por se pautar em memórias, Tourinho Filho (1997, p. 330), diz que tal meio de prova é o mais falho e precário, porque é influenciado pela “ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de se reconhecer”, ou seja, por absolutamente tudo.

Por conseguinte, Silva (2018, p. 223), diz que:

É importante que o delegado advirta o reconhecedor acerca da importância e das consequências do ato (o fato de alguém ser reconhecido como pretenso autor de um fato delituoso certamente o torna o foco central das investigações), para que o reconhecimento tenha resultados positivos para o apuratório.

Nesta esteira, verifica-se que tal meio de prova, por se pautar nas lembranças que a vítima, ou outra pessoa, tem acerca do autor do crime, pode se mostrar um tanto quanto falho e deve ser colhido e utilizado com cautela.

Dessa forma, como se verá a seguir, a observância das formalidades, sobretudo quanto ao momento de colheita das declarações, é de suma importância para se reproduzir da maneira mais fidedigna o que está na memória do reconhecedor e evitar um julgamento equivocado.

3.6 Da reconstituição do delito – reprodução simulada

Da observância do subtítulo, observa-se que ele é autoexplicativo. A reconstituição está prevista no artigo 7º do Código de Processo Penal e, embora realizada mais durante a fase investigativa, pode ser feita em juízo, sob a presidência do magistrado. (LOPES JR., 2017, p. 498/499).

3.7 Da acareação

Segundo Nucci (2012, p. 532), a acareação:

[…] é o ato processual, presidido pelo juiz, que coloca frente a frente declarantes, confrontando e comparando manifestações contraditórias ou divergentes no processo, visando a busca da verdade real.

Para Avena (2012, p. 348), a finalidade da acareação é refazer as perguntas àqueles que prestaram depoimentos conflitantes, para constrangê-los a se retratarem.

A acareação pode ser realizada em qualquer fase da persecução penal e ao imputado é dada a faculdade de participar, ou não, do ato (LOPES JR., 2017, p. 501). Cabe ressaltar que tal meio de prova não é muito utilizado nas salas de audiências, ainda mais se os acareados são pessoas que não prestam o compromisso legal.

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3.8 Da prova documental

Atualmente, documento é, lato sensu, aquilo que pode retratar algum fato, seja por meio de áudio, vídeo ou escrita (AVENA, 2012, p. 351), e pode ser público ou privado (NUCCI, 2012, p. 537).

Tais documentos, em regra, podem ser juntados desde o inquérito policial até o fim da instrução processual, com exceção dos processos sob o rito especial do Tribunal do Júri (LOPES JR., 2017, p. 504).

Para embasarem a condenação, assim como as demais provas, devem estar em consonância com os demais elementos dos autos.

3.9 Dos outros meios de prova

Além das espécies de provas expostas acima, existem outras que envolvem diversas discussões doutrinárias se podem ser assim consideradas, razão pela qual não serão expostas no presente, entre elas: indícios e busca e apreensão.

4 DA FORMALIDADE DO RECONHECIMENTO PESSOAL PREVISTA NO CPP

O procedimento da produção probatória por meio do reconhecimento de pessoas está descrito nos artigos 226 a 288 do Código de Processo Penal:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Art. 227.  No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.

Art. 228.  Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

Primeiramente, a pessoa que irá fazer o reconhecimento, chamada de reconhecedor, descreverá a pessoa a ser reconhecida, a qual deverá ser posta ao lado de pessoas com características semelhantes e o reconhecedor, então, apontará para aquele que acredita ser o autor do delito. Com o reconhecimento, lavrar-se-á um auto pormenorizado, o qual será assinado por duas testemunhas que presenciaram o ato, pelo reconhecedor e, claro, pela Autoridade Policial e escrivão (SILVA, 2018, p. 222).

Analisando-se detidamente o artigo, vê-se que consta em seu inciso II a expressão “se possível”. Ao se estudar hermenêutica, entende-se que na lei não existem “palavras mortas”, ou seja, toda palavra está no texto legal por uma razão. Acerca da hermenêutica e interpretação das leis, o renomado Miguel Reale (2002, p. 279) diz que:

O primeiro dever do intérprete é analisar o dispositivo legal para captar o seu pleno valor expressional. A lei é uma declaração da vontade do legislador e, portanto, deve ser reproduzida com exatidão e fidelidade. Para isto, muitas vezes é necessário indagar do exato sentido de um vocábulo ou do valor das proposições do ponto de vista sintático.

Dito isto, percebe-se que a intenção do legislador ao acrescentar a referida expressão “se possível” foi a de criar uma exceção, que, por óbvio, não deve ser firmada como regra, como está acontecendo atualmente nos tribunais. Ou seja, apenas em casos excepcionais ela deve ser invocada, como no exemplo dado pelo doutrinador Cunha (2018, p. 640):

Suponha-se um loiro ariano, acusado na prática de um delito, detido durante a madrugada e que será submetido ao reconhecimento por uma testemunha. Não é difícil imaginar a dificuldade que a autoridade policial, à essa altura, encontrará para localizar pessoas parecidas com o suposto autor do crime, razão pela qual se aproveitará a prova, ainda que não atendido esse pressuposto

Ressalta-se que, segundo o artigo 228 do Código de Processo Penal, se tiver mais de um reconhecedor, eles não devem se comunicar, para o fim de evitar que aquele que já fez o reconhecimento influencie o que ainda não fez e prejudique a verdade buscada no procedimento (AVENA, 2012, p. 347).

Ocorre que este procedimento não é observado com a atenção merecida, o que provoca a criação de falsas memórias na pessoa reconhecedora, que, por consequência, afirma uma falsa certeza, que embasa a condenação de, muitas vezes, um inocente.

Lima (2016, p. 653/654), de uma maneira bastante didática, descreve que a ausência da observância das formalidades do reconhecimento de pessoas causa um descrédito deste meio de prova, tornando-o fraco:

No dia-a-dia de delegacias e fóruns, é comum que as autoridades não se atenham às disposições do art. 226 do CPP, o que, em tese, possibilita que a defesa questione a legalidade do procedimento probatório, afastando qualquer credibilidade que porventura pudesse oferecer o reconhecimento de pessoas ou coisas no momento de sua valoração judicial. Nesses casos, o ideal é concluir que não houve o reconhecimento de pessoas e coisas, mas sim mera prova testemunhal, de avaliação subjetiva, com menor valor probatório, que poderá (ou não) contribuir para a formação do convencimento do magistrado.

Nesta senda, diversas são as opiniões, tanto jurisprudenciais quanto doutrinárias, sobre a inobservância do artigo 226 do Código de Processo Penal.

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (BRASIL, 2017) já firmou entendimento de que a não observância da solenidade do reconhecimento não enseja a sua nulidade, posto que o reconhecimento, isolado, não enseja um decreto condenatório, mas sim, quando aliado a outras provas.

Neste sentido:

“1. O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que as disposições contidas no art. 226 do Código de Processo Penal configuram uma recomendação legal, e não uma exigência absoluta, não se cuidando, portanto, de nulidade quando praticado o ato processual (reconhecimento pessoal) de forma diversa da prevista em lei. Precedentes. 2. O Tribunal estadual consignou que o conjunto probatório dos autos, notadamente os depoimentos das vítimas e das testemunhas ouvidas em juízo, não deixa dúvida de que foi o ora agravante o autor do delito, e que a tese de negativa de autoria se encontra totalmente divorciada das provas colhidas nos autos; entender de forma diversa, tal como pretendido, demandaria o revolvimento das provas carreadas aos autos, procedimento sabidamente inviável na instância especial. Inafastável, assim, a aplicação da Súmula 7⁄STJ. “

“É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido  de  que  é  legítimo  o reconhecimento pessoal ainda quando realizado  de  modo  diverso  do  previsto  no art. 226 do Código de Processo Penal, servindo o paradigma legal como mera recomendação.”

Nesta esteira entende também o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (BRASIL, 2015):

“Consoante jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, o art. 226 do Código de Processo Penal “não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível” (RHC 119.439/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 05.9.2014). 5. Ausência de prejuízo obstaculiza o reconhecimento de nulidade do ato”.

A jurisprudência estadual, firmada pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (PARANÁ, 2018), seguindo a tese dos Tribunais Superiores, entende que o artigo 226 do Código de Processo Penal traz apenas recomendações sobre como deve ser realizado o reconhecimento de pessoas, de forma que sua inobservância não enseja a nulidade do ato. Para tanto, se vale do termo “se possível” – assim como o Superior Tribunal Federal, para justificar o ato:

“[…] Da análise do mencionado dispositivo legal extrai-se que,  “se possível”, a pessoa a qual pretenda que seja realizado o  reconhecimento será colocada ao lado de outros que com ele tiver  qualquer semelhança. A expressão “se possível” denota que tal situação trata-se de uma faculdade e não de um imperativo legal. Por derradeiro, tal meio de prova em hipótese alguma se denota ilícita. Ademais, o reconhecimento pessoal previsto no artigo 226, do Código de Processo Penal não é modalidade probatória de realização imprescindível, sendo perfeitamente aceitável a formação da convicção do magistrado a partir de outros elementos de prova produzidos nos autos.”

No que tange ao entendimento doutrinário, a grande maioria defende que a inobservância torna o reconhecimento uma prova com menor valor probante.

Nucci (2012, p. 528) acrescenta que tal formalidade é importante, sendo que, em caso de inobservância, o ato não será chamado de reconhecimento, mas será uma prova testemunhal, com menor valor.

Para Lopes Jr. (2017, p. 490), “tais cuidados, longe de serem inúteis formalidades, constituem condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país”. E complementa dizendo que (2014, p. 701) o reconhecimento pessoal é “uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais”.

Cunha (2018, p. 636) dispõe acerca de tal discussão que:

A despeito de tal sorte de críticas, é certo que, na prática, a jurisprudência confere enorme força probante ao reconhecimento, sobretudo quando realizado em juízo, de forma idônea e desinteressada, de modo a encontrar respaldo nas demais provas dos autos. E mesmo o reconhecimento realizado na polícia, desde que, aí sim, satisfeitas as formalidades impostas pela lei, tem inegável valor probatório.

Assim, observa-se que o tema é bastante controvertido e abre espaços para diversas discussões, no entanto, deveras que, no momento da condenação, o magistrado dá ao reconhecimento um enorme – se não absoluto – valor probatório, sem averiguar se as formalidades foram observadas.

5 FALSAS MEMÓRIAS

Antes de se abordar acerca das consequências da inobservância do procedimento acima explicado, mister se faz a explicação das falsas memórias e como elas são formadas, para, assim, entender como elas atuam no procedimento do reconhecimento de pessoas, provocando consequências inestimáveis.

O famoso pintor Salvador Dali, em seu livro Secret Life, ao comentar de sua obra “A persistência da memória”, de 1931, cita que: “A diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma das joias: são sempre as falsas que parecem ser as mais reais, as mais brilhantes”. (STEIN, 2010, p. 21).

Pois bem, quando se fala em memórias, acredita-se que ela reproduz as lembranças exatamente como aconteceram, contudo, conforme Izquierdo (2004, p. 51), as memórias são criadas pelo cérebro a partir das sinapses dos neurônios que estão submetidas aos “efeitos moduladores de vias nervosas, vinculadas com o nível de alerta, com as emoções, os sentimentos e os estados de ânimos”, ou seja, nem todas as recordações retratam, exatamente o que aconteceu, haja vista que são facilmente influenciadas por diversos fatores externos.

Elizabeth Loftus (s/d, apud DI GESU; GIACOMOLLI, 2008, p. 4338) realizou estudo de campo onde observou que “a informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas, quando somos interrogados de maneira evocativa, ou quando uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos”.

Ressalta-se que essas falsas memórias podem distorcer coisas pequenas, cotidianas, tais como confundir o local em que foi deixada a chave do carro, bem como também pode distorcer coisas mais sérias, a saber, a falsa certeza de um estupro que nunca aconteceu, mas, para a pessoa (suposta vítima), o fato ocorreu e se recorda de todos os seus detalhes.

Nesta senda, nas palavras de Cláudia Barbosa (2006, p. 26), “as falsas memórias representam a verdade para os indivíduos que as lembram”.

Portanto, observa-se que as falsas memórias podem ser originadas tanto por meio de sugestões extrínsecas, quanto por maneira espontânea.

As espontâneas são aquelas criadas pela própria pessoa, chamadas também de auto-sugestão, e acontece, em regra, quando a memória original é distorcida, como, por exemplo, quando novas informações são processadas e interfere nas que já estavam na memória anteriormente (BRAINERD; REYNA, 1995, apud NEUFELD; STEIN, 2001, p. 180).

Já as sugeridas são aquelas que “surgem a partir da implantação externa ou exógena ao sujeito, através de sugestão deliberada ou acidental de informação falsa” (NEUFELD; STEIN, 2001, p. 180). Gudjonson (1986, apud  NEUFELD; STEIN, 2001, p. 180) defende que as falsas memórias criadas por sugestões ocorre quando elas são aceitas e, por conseguinte, incorporadas na memória original.

Assim, as falsas memórias, criadas por meio de sugestões, é a principal consequência da não observância do procedimento de pessoas, eis que causam na pessoa reconhecedora, uma ideia, lembrança, de algo ou alguém, que não é verdadeiro, por meio de sugestões e induções de terceiros, em regra, daquele que está colhendo o termo do reconhecedor.

6 AS FALSAS MEMÓRIAS E O RECONHECIMENTO DE PESSOAS

As sugestões de terceiros, que provocam falsas memórias, se tratam de uma inobservância do procedimento previsto na lei porque, no inciso I, do artigo 226 do Código de Processo Penal, sua redação deixa bem clara que a pessoa reconhecedora descreverá o que se recorda e, somente depois, suspeitos com características semelhantes serão postos lado a lado.

Dessa forma, não há abertura para exceções e emissão de opiniões de terceiros ou mostra de fotografia ou outra coisa do suposto suspeito, justamente para que o reconhecedor não seja influenciado e preste uma equivocada descrição. Tal efeito sugestivo possibilitará o reconhecimento de uma pessoa estranha aos fatos, mas que, ante as circunstâncias que foram apresentadas ao reconhecedor, será tida como suspeito.

Exemplifica-se. Se, num primeiro contato, o policial apresentar uma pessoa à vítima na condição de suspeito, esta, de maneira induzida, irá fazer o reconhecimento, porquanto se sentirá psicologicamente constrangida a reconhecer, não havendo para ela, portanto, chances de cometer um equívoco, já que apenas uma pessoa lhe foi apresentada (SANTOS, 2018, n.p.).

Nesta ordem de ideias, pode-se dizer que:

As formalidades previstas evitam fomentar qualquer tipo de estimulação do reconhecedor a desenvolver uma falsa memória sugerida, eis que efetivamente, a apresentação de apenas um suspeito que se enquadre nas características previamente elencadas pela vítima ou testemunha favorece à deformação de uma ilusão mental baseada em mera semelhança e, não, em efetiva certeza do reconhecimento. (MANDARINO e FREITAS, s/d, p.13).

Assim, expõe Giacomolli e Gesu (2008, p. 4339), que instigações de terceiros, quais sejam, amigos, familiares e até mesmo policiais ou magistrados, no ato de seus questionamentos, contaminam o reconhecimento pessoal, mormente quanto às características do suspeito.

Partindo-se para o aspecto psicológico, essas instigações ou informações vindas de terceiros logo após um crime, que causa um grande trauma, provavelmente influenciará a pessoa reconhecedora em sua interpretação e percepção (STEIN, 2010, p. 26).

É certo que muitas vezes o efeito sugestivo criado pela autoridade policial, magistrado, ou qualquer outra pessoa, é involuntário, sem o condão de fazer recair a acusação sobre determinada pessoa, uma vez que induzimento está intrínseco na personalidade, haja vista que quando se acredita em alguma coisa sobre algo, é natural do ser humano querer que todos também acreditem, ainda mais quando essa situação ocorre no afã de resolver um crime e dar a resposta que a vítima tanto espera.

Também, por outro lado, a incessante busca pela verdade real cumulada com eventuais pressões populares, as quais buscam uma resposta rápida sobre determinado delito, e a carência de recursos humanos e financeiros, acabam cominando na inobservância das formalidades processuais, ainda mais no que tange ao reconhecimento de pessoas, que demanda certa estrutura. (MANDARINO e FREITAS, s/d, p. 12).

Eis, então, aí, a importância das formalidades, qual seja, evitar estimular uma falsa memória naquele que irá fazer o reconhecimento, ora reconhecedor, ou induzi-lo e, embora não seja cumprida como deveria, possui a finalidade de evitar as consequências irreparáveis de um reconhecimento equivocado.

7 CONSEQUÊNCIAS REAIS PROVOCADAS PELA INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO FORMAL DO RECONHECIMENTO

Os exemplos reais de pessoas que sofreram uma investigação, ou até mesmo uma condenação, em razão de reconhecimentos equivocados, são vistos diariamente em sites, jornais, informativos, programas de televisão, etc.

Guilherme Rosa da Vice publicou no site de informações Folha Uol, em 12 de novembro de 2015, na qual um homem chamado Israel estava preso há 07 anos acusado de estupro, porque foi reconhecido pela vítima como o autor, sendo que há 04 anos foram realizados exames de DNA que atestaram que não era o material genético dele que estava na mancha de sangue encontrada no local do crime, contudo, ante o reconhecimento da vítima, ele foi condenado e, após todo esse tempo enclausurado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul resolveu rever o caso. A revisão criminal de Israel ainda não foi decidida, contudo, provada sua inocência, Israel poderá e deverá pleitear indenização perante o Estado, em razão dos danos sofridos.

André Miranda e Dandara Tinoco publicaram no site de informações O Globo, em 21 de janeiro de 2016, a história de Héberson Lima, que foi condenado por estupro de vulnerável, em razão do reconhecimento feito pela vítima. Dentro da prisão, Héberson sofreu violência sexual e adquiriu HIV. Sua inocência só foi provada quando a defensora pública percebeu que as características descritas pela vítima não se assemelhavam à de Héberson, conseguindo, assim, sua liberdade. Após dez anos de sua soltura, Héberson ainda visava receber indenização do Estado, pleiteada no valor de R$150.000,00.

Antônio Pessoa Cardoso, em uma matéria publicada no site Migalhas, em 08 de agosto de 2012, trouxe a história de Fabiano Ferreira Russi, que foi preso após ser reconhecido pelas vítimas como o autor do assaltado por elas sofrido. Relatou que: “O preso estava sozinho no reconhecimento e não tinha antecedentes criminais, mas, para sua infelicidade, foi fotografado depois que o delegado determinou a identificação de todos os torcedores em batida policial. Fabiano trabalhava em um hotel quatro estrelas da região da Vila Madalena, São Paulo, e até trinta minutos depois do assalto continuava no trabalho.” Após passar quatro anos na prisão, teve sua liberdade retomada, contudo, desempregado e com sua vida amargurada, pleiteou indenização dos danos que, na verdade, são irreparáveis.

Importante destacar que situações semelhantes são frequentes, não só no Brasil, mas também pelo mundo e gera o dever de indenização, dever este consagrado como direito fundamental em nossa Constituição Federal, especificamente no artigo 5º, inciso LXXV:

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.

Neste sentido manifestou-se o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (2018):

“PROCESSO CIVIL. RÉU CONDENADO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. SETENÇA COFIRMADA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRISÃO. REVISÃO CRIMINAL. ABSOLVIÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETVA DO ESTADO. ILEGAL CERCEAMENTO DA LIBERDADE AFRONTA AO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PLASMADO NA CARTA CONSTITUCIONAL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DEVIDA A REPARAÇÃO. I – Condenação criminal com cumprimento em regime prisional fechado, posteriormente comprovada, em revisão criminal, absolvição do réu configura erro judicial passível de indenização. II – A par da responsabilidade objetiva insculpida no art. 37, §6º, da CF/88, para a configuração do dever do Estado de indenizar, devem estar presentes, além do dano e do nexo de causalidade, a existência do dolo. Nessa esteira, configura prisão ilegal (na acepção cível) e passível de indenização moral, aquela perpetrada e face de cidadão – equivocadamente condenado. A prisão, é fato por demais estigmatizante na vida do cidadão, lhe causando prejuízo que pode ir muito além da mácula da honra. [...].”

Contudo, em que pese a garantia de indenização em razão de prisão ilegal, nenhum valor monetário é passível de reparar os danos provocados no injustiçado. As histórias acima mostradas ainda tiveram “um final feliz”, posto que as inocências foram provadas, porém, ainda são assustadores os números de pessoas que são presas e ostentam antecedentes criminais por delitos que não cometeram, mas foram reconhecidas como se autor fossem.

8 CONCLUSÃO

Quando o Código de Processo Penal apresenta alguma formalidade que deve ser observada, seja ela no âmbito policial ou judicial, é para que seja válido e com o menor percentual de erro possível o ato a ser realizado.

Assim, o procedimento para a realização do reconhecimento de pessoas serve para que não seja criado na vítima, ou na pessoa reconhecedora, um efeito sugestivo (induzimento) ou falsas memórias, que podem provocar um erro imensurável, condenado pessoas inocentes e restringindo, ilegalmente, um dos direitos mais protegidos pela Constituição Federal, qual seja, a liberdade do indivíduo.

Sabe-se que a ocorrência de um crime desestabiliza a sociedade e coloca o trabalho da polícia e do Poder Judiciário em descrédito caso não descoberto e punido o autor. Entretanto, tanto a Autoridade Policial, quanto o magistrado, não devem ser tomados pelo desejo de dar uma resposta rápida, e, por consequência, condenar deliberadamente todos aqueles que foram reconhecidos pelas vítimas, porque, como visto acima, nem sempre o reconhecimento é verdadeiro.

A única solução é uma melhor conscientização das autoridades policiais e magistrados e, principalmente, dos acadêmicos e bacharéis em direito que visam trabalhar nessas áreas, para o fim de observar a formalidade do Código, bem como não tomar tal prova como absoluta, diminuindo, assim, por consequências, histórias como as apresentadas no presente artigo.

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Sobre os autores
Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

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