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O BRASIL ESTÁ SENDO ARMADO

Agenda 09/12/2020 às 11:48

O ARTIGO APRESENTA ALGUMAS IDEIAS COM RELAÇÃO A POLÍTICA DE ARMAMENTISMO NO BRASIL.

O BRASIL ESTÁ SENDO ARMADO  

Rogério Tadeu Romano 

I – ARMAR O POVO 

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou no dia 9 de dezembro do ano em curso que a Camex (Câmara de Comercio Exterior), subordinada ao Ministério da Economia, editou resolução que zera imposto de importação cobradosobre armas de fogo, como revólveres e pistolas. 

A informação foi publicada pelo presidente em suas redes sociais, nas quais ele disse também que a medida entrará em vigor a partir de janeiro. A flexibilização do porte e da posse de armas é uma promessa decampanha eleitoral de Bolsonaro,que já adotou uma série de medidas para viabilizá-la. 

A expectativa é de que a iniciativa seja oficializada em reunião da Camex marcada para este dia 9. O presidente incluiu a participação no encontro em sua agenda oficial. Não é comum a presença do chefe do Poder Executivo em encontros do órgão de comércio. 

Um decreto do atual presidente da República dificultou o rastreamento das armas em circulação. Com isso, o armamento apreendido diminuiu e o que volta para o crime aumentou. Qualquer um compra agora 300 munições por mês —eram 50 por ano até há pouco. Pessoas apontam armas no nariz uns dos outros e bandos praticam assaltos de cinema. Aumentou o feminicídio. Bandidos e policiais continuam matando e morrendo e, cada vez mais, sobram balas para as crianças. 

As portarias 46, 60 e 61 foram revogadas por contrariarem diretrizes estabelecidas por Bolsonaro – que é favorável ao uso de armas por civis – para os chamados CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), uma das bases de apoio do seu governo. 

As portarias revogadas estabeleciam o Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército (SisNar), visando o rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército (PCE), além da implementação de dispositivos de segurança, identificação e marcação de arma de fogo e munições. 

"Bolsonaro derrubou todas as regras que determinam a marcação de munições e cartuchos, inclusive de itens nacionais. Isso vai atrapalhar trabalhos de investigação. O exemplo mais conhecido é a morte da Marielle [Franco], que começou a ter evidências sobre os autores do crime após a polícia encontrar as munições usadas naquele ato", disse Ivan Marques, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista aoUOL

O texto do Diário Oficial que cancelou as portarias não apresentou qualquer justificativa. Nas redes sociais, o presidente disse apenas que elas não se adequavam “às minhas diretrizes”. Já o deputado federal Eduardo Bolsonaro  foi mais explícito: “CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) sempre apoiaram Bolsonaro para que tenhamos pela primeira vez um presidente não desarmamentista. É inadmissível que o Colog faça portarias restringindo a importação. A quem isso interessa?”. 

Com essa atuação o atual presidente impede a proteção eficiente de um bem relevante e imprescindível aos cidadãos brasileiros, que é a segurança pública, prolifera o risco de vida para os cidadãos.  

O principal marco legal sobre armas de fogo no Brasil é o Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003 e estabelece que o acesso às armas deve ser restrito a casos específicos e que o poder público deve controlar o comércio de armas e munições. 

O atual presidente da República é crítico do Estatuto do Desarmamento e tem editado vários atos normativos na matéria.  

O primeiro desses atos normativos foi o decreto de 15 de janeiro de 2019, que entre outros pontos facilitou a posse de arma. Bolsonaro estabeleceu que moradores de zonas rurais, donos de comércio ou indústrias e moradores de zonas urbanas em estados com mais de dez homicídios por 100 mil habitantes, segundo dados de 2016, estariam dispensados de comprovar "efetiva necessidade" para comprar uma arma e registrar sua posse. Na prática, porém, moradores de todas as unidades da federação do país cumpriam esses requisitos. 

Em maio de 2019, o presidente editou um decreto autorizando o porte de arma para 20 categorias profissionais, como caminhoneiros, advogados, detentores de mandato eletivo e conselheiros tutelares. O texto se chocava com o Estatuto do Desarmamento e foi derrubado pelo Senado. Quando estava prestes a também ser derrubado pela Câmara, Bolsonaro revogou o próprio decreto e enviou a proposta de ampliação do porte ao Congresso como projeto de lei. 

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Em janeiro de 2020, uma portaria interministerial elevou de 50 para 200 o número anual de munições por arma de fogo que poderiam ser compradas por pessoas físicas. Em abril, outra portaria elevou o número a 600 por ano por arma, e acabou suspensa em junho deste ano por decisão liminar da Justiça Federal de São Paulo, a pedido de ação popular protocolada pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). A portaria seguiu suspensa, com liminar que foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 

Decreto 9.785 do presidente Jair Bolsonaro  facilita o porte de armas de fogo para uma série de categorias de profissionais e não só para caçadores, atiradores esportivos, colecionadores (CACs) e praças das Forças Armadas, como foi destacado pelo governo. O texto também permite que crianças e adolescentes pratiquem tiro desportivo sem aval judicial

O presidente Jair Bolsonaro disse na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 que quer que a população se arme para “impedir uma ditadura no País”. Ele exigiu que o ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, e o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, tomassem providências. “Eu quero todo mundo armado! Que o povo armado jamais será escravizado.” 

Qual seria o propósito final do presidente da República com essa política armamentista? 

II – O ESTATUTO DO DESARMAMENTO  

Volta-se ao Estatuto do Desarmamento, que é fulcrado na Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, norma típica primária. 

Essa lei proíbe o porte de armas por civis, com exceção para os casos onde haja necessidade comprovada; nesses casos, haverá uma duração previamente determinada e sujeita o indivíduo à demonstração de sua necessidade em portá-la, com efetuação de registro e porte junto à Polícia Federal (Sinarm), para armas de uso permitido, ou ao Comando do Exército (Sigma), para armas de uso restrito, e pagar as taxas, que foram aumentadas. 

Um exemplo dessas situações são as pessoas que moram em locais isolados, que podem requerer autorização para porte de armas para se defenderem. O porte pode ser cassado a qualquer momento, principalmente se o portador for abordado com sua arma em estado de embriaguez ou sob efeito de drogas ou medicamentos que provoquem alteração do desempenho intelectual ou motor. 

Obs 1: Em algumas dessas hipóteses a aquisição é condicionada a algumas exigências. 

Obs 2: O artigo 6º fala em membros de entidade de desporto legalmente constituídas e em caçadores de subsistência, mas nesses casos há regras mais específicas que serão tratadas posteriormente. 

Obs 3: Membros das Forças Armadas tem lei própria, porém o Estatuto do Desarmamento ainda assim estabeleceu normas para tais pessoas. 

Para colecionadores: É necessário ter registro no Exército Brasileiro, nos termos do Art. 24, o chamado Certificado de Registro (CR), e ter a atividade de colecionamento apostilada. 

Para atiradores: Os atiradores também precisam ter registro no Exército, possuir CR, nos termos do Art 24, e ser vinculado a uma entidade de pratica de tiro, mesmo que com a rejeição do Art. 36 em Referendo, a lei não exije ser membro de entidade de desporto. 

Para caçadores: A situação dos caçadores é bastante parecida com a dos atiradores, é também necessário ser registrado no exército, possuir CR, e é necessário ser membro de uma entidade de caça mesmo que o Art. 24 não o exija. 

Para caçadores de subsistência: ao contrário dos demais caçadores, os caçadores de subsistência têm seu registro e porte de arma emitidos pela polícia federal, e não são membros de qualquer entidade, a aquisição nestes casos é permitida para residentes em área rural que comprovem depender do emprego de arma de fogo para prover sua subsistência alimentar familiar poder, desde que declarem efetiva necessidade. Cada caçador de subsistência poderá ter apenas uma arma de uso permitido, de tiro simples, com 1 (um) ou 2 (dois) canos, de alma lisa e de calibre igual ou inferior a 16 (dezesseis), tal arma tem poder de fogo insuficiente para se caçar um javali, espécie cuja caça é autorizada. 

Saliente-se a diferença entre posse e porte de arma. 

A posse abrange apenas o direito de ter armas de fogo em casa. 

O porte é a autorização para transportar armas para fora de casa, além de acessórios e munições registrados. 

Para o porte é necessário não ter antecedentes criminais, apresentar documento de ocupação lícita e de residência e comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica. Deverá ser demonstrada a efetiva necessidade do porte seja por exercício de uma atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física. 

Por sua vez, as atividades já listadas têm a efetiva necessidade já cumprida. 

Para os menores bastará a simples autorização dos pais para presença em clubes de tiro. Veja-se a gravidade da medida. 

III – DECRETO NÃO REVOGA LEI 

Ora, decretos e outros atos de hierarquia normativa secundária, por óbvio, não podem revogar uma lei. 

Qualquer mudança que aí se dê virá por lei, norma típica primária e não por decreto, norma típica secundária. 

Lei, no sentido material, é o ato jurídico emanado do Estado com o caráter de norma geral, abstrata e obrigatória, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva, como já dizia Duguit. Esses caracteres e o de modificação da ordem jurídica preexistente, que decorre da sua qualidade de ato jurídico, como dizia Miguel Seabra Fagundes(“O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário”, segunda edição, José Konfino, pág. 30), se somam para caracterizar a lei entre os demais atos do Estado. Mas entre eles só é específico o da generalidade. 

Entre os italianos, Ranelletti, além de outros, entende que o caráter especifico da lei, no sentido material, está na novidade ou modificação(“novità), e não na generalidade, se bem que seja esta uma característica habitual trazida à norma jurídica. 

Ranelletti, com razão, nega o caráter de lei às regras que o Estado regula a sua própria atividade, por lhe parecer que não produzam efeito jurídico em relação a terceiros. 

Ao lado da generalidade é, sem dúvida, elemento intrínseco, inapartável da lei, a modificação do direito preexistente alterando situações juridicas anteriores. A novidade de que falou Ranellleti. 

Ora, no Brasil, não ocorre no ato administrativo normativo (decreto), mas somente na lei, generalidade e novidade. 

Aliás, dita o artigo 5º, inciso II, da Constituição, quanto ao princípio da legalidade e da reserva de lei, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou não fazer senão em virtude de lei. 

A lei que se fala é formal e material de modo que é ato normativo oriundo de reserva do Parlamento. 

Há, para o caso, uma supremacia e preeminência de lei formal. 

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado. 

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha. 

IV – A EMENDA 2 

Há, desta forma, uma perigosa tentativa de levar o Brasil a uma emenda constitucional americana, conhecida como Emenda 2. 

A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos protege o direito da população de manter e portar armas. Foi aprovada em 15 de dezembro de 1791, juntamente com as outras nove primeiras emendas constitucionais constantes da Carta dos Direitos dos Estados Unidos (em inglês, United States Bill of Rights) ou Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos . 

A Segunda Emenda baseou-se parcialmente no direito de manter e portar armas, previsto na common-law da Inglaterra, e foi influenciada pela Declaração de Direitos de 1689, também inglesa 

A cultura do brasileiro, do homem cordial, como acentuava Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do Brasil”) não se coaduna a essa prática de forma indiscriminada e apenas vem a trazer mais violência para enfrentar a violência. 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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