4. Da especificidade acerca da vacinação compulsória contra o COVID-19
O próprio Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe que toda pessoa tem direito à saúde, e que a imunização das principais doenças infecciosas, seja por intermédio da vacinação ou por outra forma medicinal, constitui em um direito subjetivo do próprio indivíduo, que pode, inclusive, exigir que o Estado arque com essa obrigação que decidiu, por intermédio de um reflexo da sua própria soberania, assumi-la.
Ocorre que o Brasil ratificou, no dia 23 de maio de 2005, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), tendo o seu texto revisado por intermédio do Decreto n.º. 10.212, de 30 de janeiro de 2020, referindo-se expressamente sobre a adoção de medidas de segurança de âmbito mundial à saúde no tocante a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), dentre outras situações.
Como princípios do RSI, observa-se, de seu artigo 3º, que estão previstos os da dignidade da pessoa humana, à prevalência dos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas; que o Regulamento obedecerá à Carta das Nações Unidas, bem como a Constituição da Organização Mundial da Saúde; que possuirá o intuito de evitar a propagação internacional de doenças; que os Estados possuirão soberania para legislar e implementar as suas regras com o intuito de cumprir suas próprias políticas de saúde, desde que, no âmbito desse exercício, respeitem o propósito do RSI.
Além disso, a Lei n.º. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispôs justamente sobre a possibilidade de uma eventual vacinação compulsória, tem, em seu inciso III, do §2º, de seu artigo 3º, que, ficariam asseguradas às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo[8], o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdade fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional constante do Anexo ao Decreto n.º. 10.212, de 30 de janeiro de 2020.
Ou seja, a proteção principiológica dos direitos individuais de natureza de internacional prevista na Lei Federal está claramente relacionada com os preceitos previstos no RSI.
Já no artigo 43 do RSI, tem-se que:
Artigo 43 Medidas adicionais de saúde
1. Este Regulamento não impede que os Estados Partes implementem medidas de saúde, em conformidade com sua legislação nacional relevante e as obrigações decorrentes do direito internacional, em resposta a riscos específicos para a saúde pública ou emergências de saúde pública de importância internacional, que:
(a) confiram um nível de proteção à saúde igual ou superior ao das recomendações da OMS, ou
(b) sejam proibidas em outras circunstâncias, nos termos do Artigo 25, Artigo 26, parágrafos 1º e 2º do Artigo 28, Artigo 30, parágrafo 1º (c) do Artigo 31, e Artigo 33, desde que tais medidas sejam, em outros aspectos, consistentes com este Regulamento.
Tais medidas não deverão ser mais restritivas ao tráfego internacional, nem mais invasivas ou intrusivas em relação às pessoas do que as alternativas razoavelmente disponíveis que alcançariam o nível apropriado de proteção à saúde.[9]
Verifica-se que a alínea a dispõe que outras medidas de saúde poderão ser adotadas pelos Estados com o intuito de prevenir a disseminação de eventual doença, contudo, essas medidas devem, necessariamente, conferir um nível de proteção à saúde igual ou superior ao das recomendações da OMS. Desta forma, tem-se que, caso a OMS fosse inerte quanto ao assunto acerca da vacinação compulsória, ou caso se manifestasse de forma positiva, seria certo que haveria legitimidade na imposição da vacinação compulsória à toda população, tendo em vista que há, de forma expressa, a referência ao combate contra o vírus SARS, cuja estrutura genética é de extrema semelhança com o SARS-CoV-2.
Contudo, de forma manifestamente contrária à vacinação compulsória, a vice-diretora da OMS, Mariângela Simão, em uma entrevista ao jornal CNN Brasil, não recomendou que a vacinação contra o COVID-19 seja obrigatória para todos os países[10] [11], e alegou que:
A OMS defende que isso é para cada país decidir. Mas em uma situação que você está falando com adultos, que têm capacidades de discernimento para fazer escolhas informadas, não se recomenda medidas autoritárias. Até porque é difícil fiscalizar. Vai depender da situação interna de cada país, mas é de difícil implementação.[12]
Ou seja, às luzes de uma interpretação extensiva dos Direitos Humanos, tem-se que, em que pese exista uma declaração dessas dada em uma entrevista televisiva, e não por intermédio de um ofício formal, verifica-se que, primeiramente, esta foi dada pela vice-diretora da OMS, e que indica o entendimento da própria organização acerca do tema. Desta forma, a simples declaração indica que a OMS proíbe a adoção dessas medidas compulsórias contra a população (principalmente a adulta), tendo em vista que os efeitos jurídicos da não recomendação de uma medida importam na sua necessária proibição, nos termos do art. 43 do RSI.
Ou seja: caso esse tipo de declaração não existisse, de fato haveria a possibilidade jurídica de se empreender medidas de vacinação compulsória, mas, como há um posicionamento em sentido contrário por parte de um membro da alta administração da OMS, este coloca em dúvida o efetivo entendimento da própria entidade acerca da questão.
O Estado, verificando uma declaração deste peso, ou seja, mediante uma literal declaração proferida pela vice-diretora da OMS, proibindo a prática da vacinação compulsória por intermédio da não recomendação da medida, deveria, antes de tomar qualquer tipo de atitude, exigir um posicionamento formal por parte da OMS sobre o tema, sob pena de prevalecer o entendimento de que, se não é recomendável pela OMS (tendo em vista a declaração em rede nacional da vice-presidente do próprio Órgão), não haveria a possibilidade de se implementar a vacinação compulsória, sob pena de ofensa do artigo 43 do RSI, ativando a proteção do inciso III, do §2º, do 3º da Lei n.º. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Por isso verifica-se que, a partir da declaração proferida pela vice-diretora da OMS em rede nacional, houve o surgimento de uma dúvida acerca do posicionamento da entidade, e que, a partir de então, o Estado estaria proibido de implementar a vacinação compulsória contra o COVID-19, podendo, obviamente, este entendimento ser revisto formalmente pela própria entidade.
O que não pode prevalecer é a possibilidade de vacinação compulsória de pessoas não interessadas, principalmente quando há a declaração clara de um membro da alta administração da OMS não recomendando a implementação da medida (frise-se: a não recomendação acarreta a proibição, nos termos do art. 43 do RSI).
5. Dos mecanismos de proteção contra violações de Direitos Humanos: Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Verifica-se que a questão inclusive foi judicializada e tramita perante o Supremo Tribunal Federal, que deverá realizar a análise do controle de convencionalidade entre a norma internacional que se destina a proteção de Direitos Humanos (aqueles relacionados com a saúde do indivíduo), com a legislação que atualmente está vigente, e proferir, dada a dúvida gerada pela vice-diretora da OMS, a proibição de qualquer medida coercitiva por parte do Estado para obrigar os cidadãos, especificamente no caso do COVID-19, a se submeterem, contra as suas vontades, a qualquer tipo de vacinação contra esse vírus.
Caso o STF decida obrigar as pessoas a tomarem vacinas não recomendadas pela OMS e contra as suas vontades, caberá a possibilidade de acionar a Corte Interamericana de Direitos Humanos para intervir no caso em concreto, pois, como o Brasil é signatário do Pacto São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto n.º. 678, de 6 de novembro de 1992, o país estará necessariamente submetido à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nos termos do artigo 44 do Pacto, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-Membros da Organização, pode apresentar à Comissão [Interamericana de Direitos Humanos] petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-Parte, desde que tenham sidos interpostos e esgotados todos os recursos previstos na jurisdição interna brasileira, que a denúncia ou queixa seja apresentada dentro de um prazo de seis meses, contados da data em que o prejudicado tenha sido notificado da decisão definitiva, que a matéria da petição não esteja conexa com outro processo de solução internacional, e, por fim, que, na petição contenha o nome, nacionalidade, profissão, domicílio e assinatura da pessoa ou de seu representante legal.
A Comissão, por sua vez, poderá encaminhar o litígio para que este seja julgado pela Corte.
Como no RSI existem princípios como a prevalência dos Direitos Humanos, bem como ao respeito à dignidade da pessoa humana, relacionados à saúde, haveria violação em tese de Direitos Humanos de segunda geração, mais notadamente aqueles previstos no artigo 10 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, bem como ao artigo 43 do RSI, tendo em vista que o Estado-Membro estaria violando um tratado internacional que possui regras deontológicas protetoras dos Direitos Humanos ao implementar uma medida que fora proibida, mediante a sua não recomendação, por um membro da alta administração da OMS.
6. Conclusões
Verifica-se que a saúde constitui um importante vetor dos Direitos Humanos, mais notadamente aqueles de segunda geração, interpretados pelos eventos da Constituição Mexicana de 1917, Constituição de Weimar de 1919 e Tratado de Versalhes de 1919.
Em momentos de crise, principalmente em se falando de crises sanitárias, que envolvem a necessidade de se defender contra um agente biológico com potencial de prejudicar a saúde de toda uma coletividade, os Estados acabam, por vezes, tomando medidas que podem ferir certos Direitos Humanos.
Mesmo que exsurja o enigma da internacionalização dos direitos humanos, consistente na indagação sobre os motivos que levariam o Estado a abrir mão de seus direitos para ratificar normas de Direitos Humanos em seu ordenamento jurídico, observa-se que o ato de incluir tais normas constitui um nítido reflexo de sua própria soberania, no sentido de que poderia justamente não ratificar a referida diretriz e não se obrigar ao seu cumprimento (como o que ocorre nos EUA, que, por exemplo, que não fazem parte da Convenção Americana e não reconhecem a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos). Contudo, a partir do momento em que o Estado se compromete com a defesa dos direitos humanos, inclusive ratificando os seus compromissos, este deve cumpri-lo, e, inclusive, realizar o controle de convencionalidade interno para adequar as suas normas com as normas internacionais que disciplinam questões atinentes aos Direitos Humanos.
Em casos de violação de Direitos Humanos, como os verificados nesse artigo, pode o particular acionar a Comissão Interamericana, que, por sua vez, pode iniciar um processo de âmbito internacional em face do Estado violador desses Direitos Humanos, sendo certo que o Estado, ante a dúvida verificada neste artigo colocada pela própria OMS, que, em declaração nacional, emitiu opinião proibindo a vacinação compulsória por intermédio da sua não recomendação, nos termos do art. 43 do RSI, deve sempre primar pela razoabilidade e obter, de todas as formas possíveis, a clara intenção dos órgãos internacionais que protegem os Direitos Humanos, para a adoção de suas políticas internas, sob pena de sofrer sanções internacionais, ou, pior ainda: sob pena de violar Direitos Humanos ínsitos à própria natureza do homem.
A atitude mais prudente e respeitadora dos Direitos Humanos Internacionais por parte do Estado não seria, de imediato, determinar, seja pelo poder executivo, seja mediante decisão por parte do poder judiciário, seja por intermédio de leis internas, a realização da vacinação compulsória contra o COVID-19, mas sim exigir um posicionamento claro e formal por parte da OMS, em que o órgão declare se a sua recomendação acerca da medida é positiva, negativa ou omissa, e, a partir deste posicionamento, adotar as suas políticas públicas sempre respeitando o indivíduo e a proteção internacional que este recebe.