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A CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTES NÃO RESPONDE POR ASSÉDIO SEXUAL COMETIDO POR TERCEIRO EM SUAS DEPENDÊNCIAS

Agenda 17/12/2020 às 15:21

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE DECISÃO DA SEGUNDA SEÇÃO DO STJ UNIFORMIZANDO ENTENDIMENTO COM RELAÇÃO A POSSIBILIDADE DA CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTES RESPONDER POR ATOS DE TERCEIROS.

A CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTES NÃO RESPONDE POR ASSÉDIO SEXUAL COMETIDO POR TERECEIRO EM SUAS DEPENDÊNCIAS

Rogério Tadeu Romano

I – O ENTENDIMENTO DA SEGUNDA SEÇÃO DO STJ QUANTO AO TEMA

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pacificando o entendimento da corte sobre o tema, estabeleceu que a concessionária de serviço público de transporte não tem responsabilidade civil em caso de assédio sexual cometido por terceiro em suas dependências.

Por maioria de votos, o colegiado decidiu que a importunação sexual no transporte de passageiros, cometida por pessoa estranha à empresa, configura fato de terceiro, que rompe o nexo de causalidade entre o dano e o serviço prestado pela concessionária – excluindo, para o transportador, o dever de indenizar.

"Está fora de dúvida: o crime era inevitável, quando muito previsível apenas em tese, de forma abstrativa, com alto grau de generalização. Por mais que se saiba da possibilidade de sua ocorrência, não se sabe quando, nem onde, nem como e nem quem o praticará. Apenas se sabe que, em algum momento, em algum lugar, em alguma oportunidade, algum malvado o consumará. Então, só pode ter por responsável o próprio criminoso", afirmou o relator do recurso, ministro Raul Araújo.

Na ação que deu origem ao recurso, uma vítima de assédio nas dependências de estação de trem ajuizou pedido de indenização por danos morais contra a concessionária, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que a empresa tomou todas as providências que lhe cabiam, tendo, inclusive, encaminhado o suposto agressor à polícia.

No recurso especial, a vítima alegou que, não havendo controvérsia sobre a ocorrência do crime dentro da estação operada pela concessionária do serviço de transporte de passageiros, estaria caracterizada a responsabilidade civil da empresa pelos danos sofridos por ela, nos termos dos artigos 734, 735, 932 e 949 do Código Civil.

Por outro lado, ao analisar a legislação aplicável ao tema – inclusive o Código de Defesa do Consumidor –, o relator apontou que, embora as normas reforcem a natureza objetiva da responsabilidade civil do transportador, elas também preveem como causas excludentes dessa responsabilidade eventos decorrentes de caso fortuito, de força maior ou de culpa exclusiva de terceiro. "E é assim porque esses eventos não têm nexo, vínculo, ligação com o serviço de transporte de passageiros", explicou.

II – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR

A responsabilidade do transportador é objetiva, em razão da cláusula de incolumidade, que lhe impõe uma obrigação de resultado. O dever do transportador é levar o passageiro ao seu destino sem incidentes.

A responsabilidade pelo cumprimento da obrigação abrange danos que sejam acometidos quer contra a pessoa quer quanto a seus bens (bagagem). O CC 734 caput determina ser nula qualquer cláusula que exclua esta responsabilidade. Em semelhança com o CDC 51 I, o CC disciplina uma nulidade de cláusula de exoneração de responsabilidade. O escopo da norma é impedir que, antecipadamente à ocorrência do dano, de antemão o transportador tenha a seu favor uma disposição contratual que impeça a imputação da responsabilidade a si.

A nulidade é de pelo direito e independente de ação judicial, podendo ser decretada em qualquer instância e grau de jurisdição. A cláusula de não indenizar é inoperante, conforme entendimento que já era firmado pela jurisprudência, no STF 161, que afirma “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

O Código Civil adotou um sistema de responsabilidade objetiva com relação ao transportador.

Entende que é de rigor que o exame seja feito mediante a separação entre a responsabilidade do transportador urbano pelo dano causado ao pedestre por atropelamento, e aquela cujo dano se verificou durante a viagem. Na primeira hipótese, é questão incontroversa que a responsabilidade do transportador rodoviário pelos danos causados aos pedestres, por atropelamento, tem natureza extracontratual, já que entre o veículo atropelador e a vítima não havia, até então, vínculo jurídico anterior.

Mesmo reconhecida como extracontratual, tanto a doutrina como a jurisprudência não divergem ao considerar que a responsabilidade civil do transportador de pessoas é objetiva, fundada na teoria do risco.

A atividade de transporte terrestre é realizada via concessão administrativa.

De fato, fundada no risco administrativo, a responsabilidade extracontratual tem amparo no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988, considerando-se que o transporte coletivo de pessoas é serviço público concedido ou transferido através de permissão, sendo aplicável, porém, apenas em relação a terceiros.

Refere-se Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil) à possibilidade de aplicação do Código de Proteção e de Defesa do Consumidor – CDC – nessas hipóteses, tendo-se em mira que a lei consumerista em seu artigo 14, “caput”, atribui responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços, equiparando ao consumidor, em seu artigo 17, todas as vítimas do evento.

Diante também de sua natureza objetiva, na responsabilidade contratual, ainda que comprovada a culpa de terceiro, responde o transportador pelos danos causados ao passageiro durante o percurso contratado. Trata-se, como é cediço, de contrato de adesão, em que ao passageiro só é facultado, no momento do embarque, aderir às cláusulas previamente estipuladas pelo transportador.

Como assinalam os estudiosos da matéria, a espécie reúne as características de um contrato consensual, bilateral, oneroso e comutativo. Daí, para a sua implementação e efetivação, basta o simples encontro de vontades, que, por gerar direitos e obrigações para ambas as partes, mantém na sua execução o necessário equilíbrio econômico entre as respectivas prestações.
Inicia-se com o embarque do passageiro e só termina com o seu efetivo desembarque sem que se alterem as condições de incolumidade do transportado. Basta, portanto, que o passageiro inicie o seu ingresso no ônibus, com o que se tem manifestada, ainda que tacitamente, a sua vontade em aderir ao contrato. O pagamento da passagem não é, consequentemente, elemento essencial para a validade do negócio jurídico.

Destaca-se, portanto, como característica mais importante do contrato de transporte, a cláusula de incolumidade do passageiro, que nele se encontra implícita. Por certo, e sem qualquer dúvida, tem o transportador o dever de zelar pela integridade física e psíquica do passageiro, após o seu embarque e durante todo o trajeto contratado.

A cláusula de incolumidade é, como aduz José de Aguiar Dias(Da Responsabilidade Civil), inerente ao contrato de transporte de pessoas, pois quem utiliza um meio de transporte regular celebra com o transportador uma convenção cujo elemento essencial é a sua incolumidade, isto é, a obrigação, que assume o transportador, de levá-lo são e salvo ao lugar do destino.

Fácil é concluir, a obrigação assumida pelo transportador, além de objetiva, é também de resultado, não se exigindo do passageiro, em caso de dano, a prova sobre quem, culposa ou dolosamente, deu causa ao evento danoso; basta que seja provado pelo vitimado o contrato de transporte, o dano e o nexo de causalidade.

Por se tratar de prestação de serviços, a relação contratual se submete, ao contrário daquela que não está assentada em uma relação jurídica antecedente, ao regramento específico do Código de Defesa do Consumidor.

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No que se refere ao fato exclusivo do passageiro, como esclarece Sérgio Cavalieri(obra citada), “quem dá causa ao evento é o próprio passageiro, e não o transportador. O transporte, ou melhor, a viagem, não é causa do evento, apenas a sua ocasião”. Rompido, pois, o nexo de causalidade, por afastada se tem a responsabilidade civil do transportador.

Há, da parte da doutrina, uma crítica velada ao art. 927, parágrafo único, "segunda parte", do CC, por adotar uma espécie de responsabilidade objetiva sem permitir ao autor do dano fazer prova em sentido contrário de que teria adotado todas as precauções necessárias (ou seja, dentro dos parâmetros de uma obrigação de meio, e não de resultado), como permitem as legislações italiana e portuguesa. É daí por que José Aguiar Dias afirma que o legislador pátrio adotou uma redação mal copiada dessas outras legislações.

A responsabilidade civil do transportador, no âmbito do CDC também é objetiva. Este pode ser visto como um fornecedor de serviços. Quando opera em cadeia também responde junto com os demais integrantes do ciclo de distribuição do serviço.

Deste modo, o contrato de transporte, quando coligado a outras relações jurídicas, da ensejo a uma responsabilidade pelo transporte por parte de seus sujeitos. Esta assertiva vale especialmente para o transporte instrumental. Por transporte instrumental entendemos aquele que é meio para uma outra prestação, que é fim. É instrumental, por exemplo, o contrato de transporte inserido em uma relação jurídica de “pacote de turismo”. O objetivo da relação jurídica obrigacional não é o transporte em si, ele nada mais é que um meio para o turismo, que se pode qualificar, ainda assim, como uma complexa rede de contratos que envolvem prestações como a de hospedagem e prestação de serviços.

Lembramos ainda que, com o advento do CDC, temos o preceituado no art. 14, que atribui ao fornecedor de serviços a responsabilidade objetiva, e em seu art. 17 equipara todas as vítimas dos eventos danosos a consumidores, não importando se existe ou não relação contratual, destaca-se ainda   a cláusula de incolumidade (isenção de perigo ou danos, segurança). Esta cláusula está implícita e determina a obrigação do transportador, que é de resultado esperado ou de finalização, e não de meio, a garantir aos passageiros uma viagem boa e segura, não permitindo que ocorra um fato estranho que possa causar dano aos passageiros.

Quanto às empresas de ônibus, cabe ressaltar que o contrato se inicia com o início da viagem pelo passageiro, mesmo que o pagamento seja feito antes, durante ou depois do percurso pretendido, e termina quando ele chega ao seu destino final. Durante o percurso se caracteriza a responsabilidade civil do transportador.

O Supremo Tribunal Federal, no âmbito de recurso extraordinário representativo da controvérsia, assentou a exegese de que a pessoa jurídica de direito privado, prestadora de serviço público, ostenta responsabilidade objetiva em relação a terceiros usuários ou não usuários do serviço público, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição da República de 1988 (RE 591.874/MS, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 23.10.2008, publicado no DJe de 21.11.2008)

Porém, em seu voto, o ministro relator Raul Araújo ressaltou que, se o evento é previsível, evitável e relacionado aos serviços prestados ao consumidor, tem-se a hipótese de fortuito interno, caracterizador da responsabilidade do transportador. Entretanto, se o evento não tem relação imediata com os serviços e é imprevisível ou, sendo previsível, é inevitável – como no caso dos autos –, há a caracterização de fortuito externo, que afasta a responsabilidade da concessionária.

III – O VOTO VENCIDO NO RESP 1.662.551 – SP

Volto-me aqui ao julgamento dos Embargos de Divergência no REsp  1.662.551 – SP, que, por maioria, não foram conhecidos. O ministro Luis Felipe Salomão foi voto vencido ao julgar pelo não provimento dos embargos de divergência  e ali pontuou:

“Alcançada a consciência sobre tal contexto social e cultural, qualquer ser humano, independentemente do gênero, deve se sentir aterrorizado ao pensar nos riscos aos quais mães, filhas, irmãs, tias, esposas, namoradas, amigas se submetem todos os dias pelo simples ato de saírem à rua e, notadamente, ao exercerem seu direito de locomoção em limitados espaços públicos com grande concentração de pessoas, em que o contato físico é inevitável. Como de sabença, o transporte público (ônibus, trens e metrôs) envolve necessária aglomeração de pessoas (com origem, educação e caráter totalmente distintos), em um mesmo espaço físico - cenário propício para o cometimento do denominado "assédio sexual" -, onde malfeitores buscam satisfazer sua lascívia, de forma insidiosa, em detrimento das mulheres usuárias do sistema. Segundo pesquisa Datafolha realizada entre os dias 29 e 30 de novembro de 2017, 42% (quarenta e dois por cento) das mulheres brasileiras já foram vítimas de "assédio sexual", figurando, como mais comum, o assédio nas ruas e no transporte público (http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2018/01/1949701-42-das-mulheres-ja-sofreram-assedio-sexual.shtml).Em 2014, ano em que ocorreu o evento narrado na inicial, outra pesquisa já apontava que duas em cada três paulistanas diziam ser vítimas de "assédio sexual", em sua maioria (35%) perpetrado em transporte público (http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2014/04/1440470-duas-em-cada-tres-paulistanas-dizem-ja-ter-sido-vitimas-de-assedio-sexual.shtml).”

E continuou a aduzir o ministro Luis Felipe Salomão:

“Na espécie, as instâncias ordinárias consideraram que, por ter sido o ato libidinoso (crime de "importunação sexual" tipificado em 2018) praticado por terceiro usuário, estaria, inelutavelmente, rompido o nexo causal entre o dano sofrido pela vítima e o alegado descumprimento do dever de segurança/incolumidade atribuído à transportadora. Entrementes, sobressai a necessidade de se esclarecer as características do "fato exclusivo de terceiro". Nesse sentido, destaca-se excerto da seguinte doutrina abalizada: O fato de terceiro que exclui a responsabilidade de determinado agente será o fato exclusivo de terceiro. Aqui também, a exemplo do que se menciona em relação ao fato da vítima, exige-se que a causa que tiver associada ao terceiro seja exclusiva, assim entendida aquela que foi determinante, excluindo-se todas as demais possíveis para a realização de dano à vítima. Usa-se mencionar, também, culpa exclusiva de terceiro. Melhor é dizer-se fato exclusivo, inclusive porque não se há de perquirir, quando se apresentar determinada causa atribuível a terceiro como excludente do nexo de causalidade, se este terceiro atuou com culpa ou dolo. Tratando-se de rompimento do nexo causal, basta que se identifique a causa, não suas motivações. Contudo, para que se caracterize o fato exclusivo de terceiro, é necessário, igualmente, que se identifique quem é o terceiro. Ou seja, que de fato seja terceiro estranho à uma relação originária entre as partes, seja ela de natureza contratual, pretérita ao dano, ou mesmo de natureza processual, posterior ao dano. Assim, pode o devedor eximir-se das consequências do inadimplemento alegando que não lhe deu causa, uma vez que demonstre o fato exclusivo de terceiro. Ou o réu de ação indenizatória, que, para defender-se, demonstra que o dano alegado pela vítima decorre de fato cuja ocorrência se deve exclusivamente à conduta ou à atividade de terceiro. Nesse âmbito não se incluem as situações em que a conduta do agente concorre com a conduta de terceiro, hipótese em que, ao contrário de permitir a exclusão da responsabilidade, induz a responsabilidade solidária entre o agente e o terceiro pela reparação à vítima. Mencione-se, contudo, que nem sempre o fato exclusivo de terceiro tem por consequência o afastamento da responsabilidade do agente. Isso porque há situações em que, mesmo tendo a realização do dano, por causa necessária, o fato de terceiro, tal evento é colocado na esfera de risco de determinado agente, que terá de por ele responder. É o caso do inadimplemento da obrigação do transportador, por exemplo, em que este deve responder pelos danos causados por terceiro. Nesse sentido é a Súmula 187 do STF: "A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva". O critério para que dado fato de terceiro seja considerado inserido na cadeia causal entende-se que seja o da sua associação com a conduta que deu causa ao dano. Por outro lado, se na atividade do agente se insere risco que abrange mesmo o fato de terceiro (caso da atividade do transportador, por exemplo). Ou ainda, no direito do consumidor, quando aquele que deu causa ao dano, embora não sendo o agente principal, também integra a cadeia de fornecimento do produto, o fato de terceiro não se considera como causa excludente do dever de indenizar. O exame do nexo causal é imprescindível também para identificar-se o fato exclusivo de terceiro. Isso porque o juízo que deverá ser realizado é o de que determinada causa originária, imputável a um agente, não será considerada causa do dano em razão da intervenção no processo causal do fato de terceiro, que assume plenamente a natureza de causa do dano. Ou seja, na investigação sobre a contribuição da conduta do terceiro para a realização do dano, deve surgir, sem qualquer dúvida, o caráter necessário da causa que lhe é imputada para a ocorrência do evento. Nesse sentido, não bastará que o terceiro seja mero causador direto, quando se entender que a causa necessária para o dano seja outra que não lhe é imputada. (MIRAGEM, Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 242/244).

O fato de terceiro, capaz de exonerar a responsabilidade objetiva do fornecedor, refere-se, portanto, a terceiro estranho à relação originária entre as partes, cuja conduta não concorreu, de algum modo, com a atividade econômica empreendida. No entanto, ainda que se trate de fato de terceiro, tal evento pode ser colocado na esfera de risco de determinada atividade, devendo o fornecedor por ele responder, na linha da interpretação cristalizada na Súmula 187/STF ("A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva").Nesse diapasão, no que diz respeito ao transportador, a jurisprudência desta Corte tem adotado a interpretação de que o fato de terceiro que apresente vínculo (conexidade) com a organização do negócio, caracteriza fortuito interno e, por conseguinte, não exclui a responsabilidade objetiva do prestador do serviço. Confira-se: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. TRANSPORTE ONEROSO DE PASSAGEIROS. EXCLUDENTES DA OBRIGAÇÃO REPARATÓRIA. ARESTO EMBARGADO: ACIDENTE DE TRÂNSITO PROVOCADO POR ATO CULPOSO DE TERCEIRO. FORTUITO INTERNO.RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR CONFIGURADA. ACÓRDÃO PARADIGMA: PEDRA ARREMESSADA 'CONTRA ÔNIBUS. ATO DOLOSO DE TERCEIRO. FORÇA MAIOR. FORTUITO EXTERNO. RESPONSABILIDADE AFASTADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE OS ACÓRDÃOS CONFRONTADOS. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NÃO CONHECIDOS. 1. Conforme concordam doutrina e jurisprudência, a responsabilidade decorrente do contrato de transporte de pessoas é objetiva, sendo obrigação do transportador a reparação do dano causado ao passageiro quando demonstrado o nexo causal entre a lesão e a prestação do serviço, pois o contrato de transporte acarreta para o transportador a assunção de obrigação de resultado, impondo ao concessionário ou permissionário do serviço público o ônus de levar o passageiro incólume ao seu destino. É a chamada cláusula de incolumidade, que garante que o transportador irá empregar todos os expedientes que são próprios da atividade para preservar a integridade física do passageiro, contra os riscos inerentes ao negócio, durante todo o trajeto, até o destino final da viagem.2. Nos moldes do entendimento uníssono desta Corte, com suporte na doutrina, o ato culposo de terceiro, conexo com a atividade do transportador e relacionado com os riscos próprios do negócio, caracteriza o fortuito interno, inapto a excluir a responsabilidade do transportador. Por sua vez, o ato de terceiro que seja doloso ou alheio aos riscos próprios da atividade explorada, é fato estranho à atividade do transportador, caracterizando-se como fortuito externo, equiparável à força maior, rompendo o nexo causal e excluindo a responsabilidade civil do fornecedor.(...)6. Embargos de divergência não conhecidos. (EREsp 1.318.095/MG, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 22.02.2017, DJe 14.03.2017) ).

Sob tal perspectiva, o ato libidinoso ofensivo à liberdade sexual de usuária do serviço público de transporte, praticado por outro usuário, caracteriza, a meu ver, fato conexo à atividade empreendida pela transportadora.

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Isso porque, em se tratando de conduta que encontra cenário propício na aglomeração excessiva de passageiros, o "assédio sexual" no transporte público configura situação previsível e corriqueira a ser devidamente sopesada pelo prestador de serviço, não podendo ser reconhecida como fortuito externo quando não adotadas as devidas precauções para evitar o cometimento de tais atos, distinção que tem sido admitida por esta Corte para excepcionar a jurisprudência que afasta a responsabilidade do transportador por roubo praticado por terceiro.”

Nessa linha de entendimento tem-se:

“PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. Agravo regimental NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE TRANSPORTE METROVIÁRIO. ASSALTO ÀS BILHETERIAS. MENOR VITIMADO. CONDUTA NEGLIGENTE DA CONCESSIONÁRIA. NEXO DE CAUSALIDADE E DANO COMPROVADOS. DEVER DE INDENIZAR. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA. DECISÃO MANTIDA.1. Na linha dos precedentes do STJ, a circunstância de o consumidor ser vítima de roubo não é, por si só, suficiente para caracterizar fortuito externo apto a ilidir a responsabilidade de indenizar do fornecedor de produtos ou serviços. Precedentes.2. No caso dos autos, as instâncias ordinárias afirmaram que o cenário envolvido no crime era propício a esse tipo de delito, pois envolvia movimentação de alta quantia de dinheiro. Nesse contexto, concluíram ter ficado devidamente comprovada a negligência da concessionária com a segurança. Portanto, é de rigor a responsabilização da empresa pelos danos causados à parte autora.(...)4. Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 218.394/RJ, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 01.10.2015, DJe 16.10.2015).”

Ali se discutia uma ação por danos materiais e compensação por danos morais movida contra a  Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

Acórdão da Terceira Turma do STJ   conheceu e deu provimento ao recurso especial, para reconhecer a responsabilidade da embargante pelos danos causados por assédio sexual praticado por outro passageiro, nos termos da ementa abaixo: DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. ATO LIBIDINOSO PRATICADO CONTRA PASSAGEIRA NO INTERIOR DE UMA COMPOSIÇÃO DE TREM NA CIDADE DE SÃO PAULO/SP ("ASSÉDIO SEXUAL"). FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA. NEXO CAUSAL. ROMPIMENTO. FATO EXCLUSIVO DE TERCEIRO. AUSÊNCIA DE CONEXIDADE COM A ATIVIDADE DE TRANSPORTE.1. Ação ajuizada em 02/07/2014. Recurso especial interposto em 28/10/2015 e distribuído ao Gabinete em 31/03/2017.2. O propósito recursal consiste em definir se a concessionária de transporte de trens metropolitanos da cidade de São Paulo/SP deve responder pelos danos morais sofridos por passageira que foi vítima de ato libidinoso ou assédio sexual praticado por outro usuário, no interior de um vagão.3. Os argumentos invocados pela recorrente não demonstram como o acórdão recorrido violou os arts. 212, IV, do CC/02 e 334, IV, do CPC/73, o que inviabiliza o julgamento do recurso especial quanto ao ponto. Aplica-se, na hipótese, a Súmula 284/STF.4. A cláusula de incolumidade é ínsita ao contrato de transporte, implicando obrigação de resultado do transportador, consistente em levar o passageiro com conforto e segurança ao seu destino, salvo se demonstrada causa de exclusão do nexo de causalidade, notadamente o caso fortuito, a força maior ou a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro.5. O fato de terceiro, conforme se apresente, pode ou não romper o nexo de causalidade. Exclui-se a responsabilidade do transportador quando a conduta praticada por terceiro, sendo causa única do evento danoso, não guarda relação com a organização do negócio e os riscos da atividade de transporte, equiparando-se a fortuito externo. De outro turno, a culpa de terceiro não é apta a romper o nexo causal quando se mostra conexa à atividade econômica e aos riscos inerentes à sua exploração, caracterizando fortuito interno.6. Na hipótese, conforme consta no acórdão recorrido, a recorrente foi vítima de ato libidinoso praticado por outro passageiro do trem durante a viagem, isto é, um conjunto de atos referidos como assédio sexual.7. O momento é de reflexão, pois não se pode deixar de ouvir o grito por socorro das mulheres, vítimas costumeiras desta prática odiosa, que poderá no futuro ser compartilhado pelos homens, também objetos potenciais da prática de assédio.8. É evidente que ser exposta a assédio sexual viola a cláusula de incolumidade física e psíquica daquele que é passageiro de um serviço de transporte de pessoas.9. Mais que um simples cenário ou ocasião, o transporte público tem concorrido para a causa dos eventos de assédio sexual. Em tal contexto, a ocorrência desses fatos acaba sendo arrastada para o bojo da prestação do serviço de transporte público, tornando-se assim mais um risco da atividade, a qual todos os passageiros, mas especialmente as mulheres, tornam-se sujeitos.10. Na hipótese em julgamento, a ocorrência do assédio sexual guarda conexidade com os serviços prestados pela recorrida CPTM e, por se tratar de fortuito interno, a transportadora de passageiros permanece objetivamente responsável pelos danos causados à recorrente.11. Recurso especial conhecido e provido.(REsp 1662551/SP, TERCEIRA TURMA, DJe 25/06/2018).

Observo que o STJ já delineava posição favorável ao consumidor, como se lê abaixo:

“O fato de terceiro que exclui a responsabilidade do transportador é aquele imprevisto e inevitável, que nenhuma relação guarda com a atividade de transporte, o que não é o caso dos autos, em que a vítima foi empurrada por outros passageiros, clientes da concessionária.3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 621.486/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05.02.2015, DJe 11.02.2015).”

IV – CONCLUSÕES

Com o devido respeito o julgamento apontado da Segunda Seção traz forte reviravolta no entendimento que vem se consolidando na sociedade como exposto pela ministra Nancy Andrighi:

“O ciclo histórico que estamos presenciando exige um passo firme e corajoso, muitas vezes contra uma doutrina e jurisprudência consolidadas. É papel do julgador, sempre com olhar cuidadoso, tratar do abalo psíquico decorrente de experiências traumáticas ocorridas durante o contrato de transporte. Como afirmei no julgamento do REsp 1.349.790/RJ, "na condição de agente responsável pelo exercício desse papel, não pode o Ministro assumir uma postura resignada e comodista. Deve a todo momento questionar a jurisprudência, inclusive aquela sumulada, ciente de que a sociedade se encontra em constante transformação, circunstância que exige a contínua releitura da ordem jurídica, como fenômeno cultural que é, de sorte a atender aos novos anseios sociais”.O momento é de reflexão, pois não se pode deixar de ouvir o grito por socorro das mulheres, vítimas costumeiras desta prática odiosa, que poderá no futuro ser compartilhado pelos homens, também objetos potenciais da prática de assédio.”

Tal negligência da transportadora - que falha por não tomar providências necessárias e efetivas a fim de, ao menos, reduzir a ocorrência de casos de "assédio sexual" em suas composições (o que, como dito anteriormente, guarda, sim, conexidade com a prestação de serviço). É incabível pensar que a concessionária diante de diversas condutas nocivas identificadas em ocasiões similares não tome qualquer providência para sanar tal continuidade delituosa e escape incólume de qualquer indenização.

Com o devido respeito o julgamento trazido à colação julgado pela Segunda Seção trará ainda mais incômodos e ofensas às passageiras que frequentem o transporte referenciado.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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