1 - Introdução ao Tema: novamente a importância da prova
Há alguns anos publicamos um artigo sob o título "Assédio Moral: a importância da prova". Naquele singelo trabalho alertávamos para a extrema relevância, no âmbito de processo que vem a discutir a caracterização de assédio moral no ambiente de trabalho, para a produção de uma prova robusta que venha delinear, de fato e de forma incontestável, a existência desse fenômeno no âmbito do caso em colação.
Obviamente, o alerta ainda se faz imperioso nos dias atuais. Ao que verificamos, infelizmente parte de nossa sociedade não evoluiu suficientemente para lidar com seus direitos de uma forma prudente e democrática. Ainda vigora com muita ênfase o imaginário que basta "processar" para se sair vencedor numa demanda judicial, não importando sequer a pertinência do que se alega ou se possui provas suficientes para demarcar o direito alegado. Essa situação acaba por gerar múltiplos malefícios, desde a produção de processos inviáveis, que acabarão por aumentar ainda mais o acervo judiciário, com consequente alargamento do tempo para se prestar a jurisdição, à inquietação da parte demandada que, não raramente, é inocente em relação às acusações. Não estamos aqui a afirmar que qualquer das partes é culpada ou inocente necessariamente. O que se afirma é que a postulação perante o Judiciário adota uma das facetas do Estado Democrático de Direito, substituindo a autotutela, e tornando o processo, em tese, mais equilibrado, apesar de todas as dificuldades e deficiências enfrentadas atualmente para uma efetiva prestação jurisdicional. Ocorre que essa dinâmica reclama regras rígidas, sob pena de tornar o processo um instrumento de vingança e o Judiciário uma ferramenta de intervenção indevida. É justamente a observância dessas regras que possibilita, ao menos de forma hipotética, que a intervenção do Judiciário seja justa e democrática. Novamente alertamos que não estamos aqui a tratar de questões que envolvam erro judiciário ou mesmo discordâncias pessoal ou social do resultado final da prestação jurisdicional. Estamos, pois, referenciando as regras gerais e democráticas para a submissão de uma demanda ao Poder Judiciário.
Nesta senda, chegam à apreciação do Poder Judiciário, em suas múltiplas competências, milhares de demandas que não seguem às regras democráticas estabelecidas. É comum a leitura em redes sociais, diante de relatos de problemas de somenos importância, algum "especialista" respondendo: "coloca um processo", "processa", "vai na Defensoria". Não estamos nos referindo a questões que de fato reclamam a intervenção do Judiciário para uma justa reparação, mas a acontecimentos cotidianos, de ínfimo aborrecimento e, muitas vezes, nem isso. Vem à tona o imaginário popular de que basta comparecer diante de um juiz e dizer que fulano fez isso ou que foi prejudicado por alguém ou por uma empresa, e tudo será decidido a seu favor. É fato que a experiência no Judiciário indica que em muitos casos nada ocorreu, na verdade. Já em outros, é possível que efetivamente tenha ocorrido, mas as tais regras do processo democrático informam que aquele que alegou o prejuízo ou o ato ilícito deve comprovar a sua existência e todos os moduladores que responsabilizem a parte antagônica. Claro que para toda regra há exceções e temos no Direito as hipóteses de inversão do ônus da prova ou mesma da responsabilidade objetiva por atos ilícitos vinculados à Administração Pública. Mas, até nessas hipóteses há requisitos a cumprir. Digamos que uma pessoa alegue que a empresa para a qual trabalha jamais lhe pagou férias e que tais registros encontram-se de posse da empresa. Nesse caso, a empresa deverá, por intermédio da inversão do ônus da prova, comprovar que efetivamente pagou as férias ao empregado. Mas, primeiramente, o demandante deverá comprovar que, de fato, prestava serviços para aquela empresa. Imagine-se que, com apego às hipóteses de inversão do ônus da prova, fosse possível se obter valores indenizatórios de uma empresa, simplesmente alegando o fato, mas sequer comprovando que havia alguma vinculação laboral com ela. Chegaríamos um caos jurídico e social. Da mesma forma, estaríamos imersos na anarquia se fosse possível simplesmente se obter indenizações do Poder Público alegando que foi vítima de uma ação ou omissão administrativa, mas sequer comprovando a existência do fato, o dano e relação de causalidade ou concausalidade entre um e outro, tendo a Administração Pública como protagonista.
As questões afetas à discussão sobre a existência ou não da prática do assédio moral também são incluídas nessa realidade processual. Muitas vezes o processo de assédio moral ocorre realmente, mas é imperioso, para reconhecimento por parte do Judiciário, que as provas que o caracterizem sejam apresentadas. Sem provas é totalmente inviável a obtenção de uma decisão favorável ao postulante. E quando nos referimos à prova, estamos sinalizando para todo aquele acervo legalmente previsto que tenha o condão de demonstrar, em toda sua plenitude, a existência do que foi alegado. Não obstante, o objetivo do presente artigo não é pontuar os meios de provas, mas tão somente focar sobre a impossibilidade de se reconhecer a existência do assédio moral com base exclusivamente no Laudo Psicológico, sem a existência de outro núcleo probante que com ele se harmonize.
2. Laudo Psicológico: importante, mas não suficiente por si só
A questão é muito simples. Em diversos manuais, que tratam do fenômeno do assédio moral no ambiente de trabalho, consta a recomendação de que um dos meios de provas mais importante é justamente o Laudo Psicológico, onde o perito faça constar o diagnóstico do examinando e, não raras as vezes, os motivos que o teriam conduzido àquela patologia psicológica. Ocorre que a maioria das vezes o registro sobre os eventos que teriam motivado a patologia acabam sendo pautados exclusivamente na narrativa do examinando. Ou seja, o profissional da saúde, após avaliar a sintomatologia e aplicar uma série de protocolos, conclui pela existência da psicopatologia e registra no Laudo as impressões do próprio examinando no que se refere aos fatos que teriam originado seu estado psicológico. Não há nenhuma impropriedade em relação a esses registros. Porém, o que os tribunais têm reiteradamente descartado é o reconhecimento da prática de assédio moral quando a única prova disponível é o Laudo Psicológico.
Trata-se, pois, de um entendimento pautado pela lógica. Nas hipóteses onde se discute a existência de assédio moral, consoante já exposto, o Laudo Psicológico funciona como um importante meio de prova. Porém, para o reconhecimento do fenômeno, a ponto de justificar uma condenação e a imposição da equivalente reparação do dano, as provas produzidas nos autos devem ser incontestáveis em relação à demarcação do assédio moral. Vale ressaltar que o assédio moral é um fenômeno jurídico-social complexo, caracterizado por ser um processo e não um ato isolado. Portanto, para ser reconhecido exige a comprovação de inúmeros fatores, tais como: habitualidade e reiteração dos atos impróprios, individualização da vítima e finalidade de degradar sua autoestima, dentre outros (SILVA, 2012). Esse percurso pode ser cumprido pelo assediador mediante a utilização de múltiplos e inusitados estratagemas, o que permite a aferição probatória por diversos meios durante a jornada caracterizadora da prática. Ademais, o assédio moral é um fenômeno que contempla diversos segmentos, em especial contextos éticos, criminológicos e psicológicos, o que o torna mais valioso em termos de abordagem e também em relação à pujança na produção de provas, desde que esta seja avaliada por profissional especializado no tema.
Essas provas trazidas aos autos devem ser robustas, a ponto de delinear plenamente a ocorrência do assédio moral. Quando a pretensa vítima apresenta tão somente o Laudo Psicológico, ainda que este indique a psicopatologia e registre, a teor (ou não) do que foi informado pelo examinando, que as motivações teriam sido originadas no ambiente de trabalho, resta a necessidade de comprovação efetiva da existência das práticas assediadoras. A questão da aferição da prova em relação ao assédio moral não foge à sistemática dano, origem e relação de causalidade ou concausalidade entre ambos. Neste contexto, vale ressaltar que o ônus da prova incumbe a quem alega, regra da qual não se afastam as ações cujo centro da discussão é o assédio moral. A jurisprudência pátria ilustra muito bem essa questão do ônus da prova e a não suficiência do Laudo Psicológico como único meio de prova produzido. Vejamos alguns exemplos:
ASSÉDIO MORAL. ÔNUS DA PROVA. O ASSÉDIO MORAL É UM PROCESSO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTINUADA REPETITIVA NO CONTEXTO DO TRABALHO E QUE PRODUZ EFEITO DE HUMILHAÇÃO, OFENSA E CONSTRANGIMENTO. ELEMENTO RELEVANTE É A INTENÇÃO DO AGENTE EM ATINGIR A VÍTIMA, FRAGILIZANDO-A GRADATIVAMENTE. O ÔNUS DA PROVA É DO EMPREGADO QUANTO À OCORRÊNCIA DA PRÁTICA ILÍCITA POR PARTE DO EMPREGADOR, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ART. 373, I, DO NOVO CPC, POR SE TRATAR DO FATO QUE CONSTITUI A PRETENSÃO, DO QUAL SE DESONEROU A PARTE AUTORA. (PROCESSO Nº 0020738-92.2018.5.04.0405 - ROT. TRT-4, 6ª Turma. RED. DES. RAUL ZORATTO SANVICENTE. J. 20.05.2020)
Note-se, consoante os julgados cujas ementas seguem abaixo transcritas, a precisa abordagem, considerando o Laudo Psicológico, que atesta a psicopatologia e relação de causalidade/concausalidade desta com as agressões sofridas no ambiente de trabalho ou não, um meio de prova importante, desde que comprovado o assédio moral. Assim, resta evidente que o Laudo Psicológico que cumpra tais requisitos deve ser harmonizado com outras provas que atestem a prática do assédio moral. É exatamente essa harmonização das provas que tornará a postulação idônea a ser acatada:
DOENÇA DE CARÁTER PSICOLÓGICO. TRANSTORNO DE ANSIEDADE. LAUDO PSICOLÓGICO. ASSÉDIO MORAL COMPROVADO. EM CASO DE AFASTAMENTO DO TRABALHO POR MOTIVO DE TRANSTORNO DE ANSIEDADE, HAVENDO O LAUDO CONCLUÍDO QUE O NEXO DE CAUSALIDADE COM O TRABALHO ESTÁ CONDICIONADO À PROVA DO SOFRIMENTO IMPUTADO À VÍTIMA POR SEUS COLEGAS DE TRABALHO, É RECONHECIDA A DOENÇA DO TRABALHO QUANDO COMPROVADA A EXISTÊNCIA DE ASSÉDIO MORAL. RECURSO DO RECLAMANTE PARCIALMENTE PROVIDO. (PROCESSO Nº 0000390-26.2010.5.04.0731 - RO. TRT-4, 1ª Turma. RED. DES. IRIS LIMA DE MORAES. J. 22.10.2014) - DESTAQUE NOSSO
ASSÉDIO MORAL. PEDIDO DE DEMISSÃO. HIPÓTESE EM QUE NÃO SE CONFIRMAM AS ASSERTIVAS DA INICIAL, FACE À AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS ALÉM DO LAUDO PSICOLÓGICO JUNTADO AOS AUTOS, QUE NÃO SE PRESTA A DEFINIR A OCORRÊNCIA EFETIVA DOS FATOS ALEGADOS PELA RECLAMANTE E NEGADOS PELA DEFESA. ASSIM, POR APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 818 DA CLT, BEM COMO NO ART. 333, INC. I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, É MANTIDA A SENTENÇA QUE INDEFERIU O PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR ASSÉDIO MORAL, POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. (PROC. Nº 0000276-44.2012.5.04.0561 - RO. TRT-4, 7ª T. RED. DES. MARCELO GONÇALVES DE OLIVEIRA. J. 30.01.2013)
DOENÇA OCUPACIONAL. DANOS MORAIS. CASO EM QUE O RECLAMANTE ALEGA ASSÉDIO MORAL NA PETIÇÃO INICIAL, MAS NÃO PRODUZ QUALQUER PROVA NESSE SENTIDO, AUSENTANDO-SE NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. O SIMPLES FATO DE O LAUDO PERICIAL INDICAR QUE FATORES LABORAIS CONCORRERAM PARA O DESENCADEAMENTO DA DOENÇA (NO CASO, DEPRESSÃO), ISOLADAMENTE, NÃO CONFIRMA A TESE DO RECLAMANTE. É IMPRESCINDÍVEL, NESSE CONTEXTO, A PROVA DE QUE A COBRANÇA NO AMBIENTE DE TRABALHO, FATOR NATURAL NAS RELAÇÕES DE EMPREGO, ERA EXCESSIVA, EXTRAPOLANDO OS LIMITES DO RAZOÁVEL E CONFIGURANDO O ALEGADO ASSÉDIO MORAL. APELO NÃO PROVIDO. (PROCESSO Nº 0000477-56.2011.5.04.0404 - RO. TRT-4, 1ª T. RED. DES. IRIS LIMA DE MORAES. J. 30.10.2013)
DOENÇA OCUPACIONAL. NEXO CAUSAL. A PROVA TESTEMUNHAL REVELA O ASSÉDIO MORAL SOFRIDO PELA AUTORA, QUE RESULTOU NO QUADRO DEPRESSIVO CONSTATADO NO LAUDO PERICIAL. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (PROCESSO Nº 0000076-07.2011.5.04.0841 - RO. TRT-4, 5ª T. RED. DES. LEONARDO MEURER BRASIL. J. 10.05.2012) - DESTAQUE NOSSO
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DOENÇA OCUPACIONAL SÍNDROME ANSIOSA COM ATAQUES DE PÂNICO. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL. INDENIZAÇÃO INDEVIDA. O TRIBUNAL REGIONAL, AMPARADO NO CONJUNTO PROBATÓRIO DOS AUTOS, CONCLUIU PELA INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL DO RECLAMADO, VISTO QUE NÃO FICOU COMPROVADO O NEXO DE CAUSALIDADE OU DE CONCAUSALIDADE ENTRE A PATOLOGIA DESENVOLVIDA (SÍNDROME ANSIOSA COM ATAQUES DE PÂNICO) E O LABOR NO RECLAMADO. A CORTE DE ORIGEM ASSENTOU QUE , EMBORA O LAUDO PERICIAL TENHA CONCLUÍDO QUE "A SÍNDROME ANSIOSA APRESENTADA PELA AUTORA TEM UMA CONCAUSA LEVE COM O TRABALHO DESEMPENHADO NA RECLAMADA SE FICAREM COMPROVADOS QUE AUTORA NÃO TINHA PERFIL PARA O CARGO E NÃO RECEBEU TREINAMENTO ADEQUADO PARA A FUNÇÃO" , AS PROVAS COLIGIDAS AOS AUTOS NÃO EVIDENCIAM A EXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL, VISTO QUE NÃO FICOU COMPROVADO O "ASSÉDIO MORAL POR ATINGIMENTO DE METAS, AMEAÇAS DE DEMISSÃO E HUMILHAÇÕES PELOS SUPERIORES HIERÁRQUICOS, TAMPOUCO QUE NÃO HOUVE TREINAMENTO SUFICIENTE PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO", FATOS ELENCADOS COMO OS CAUSADORES DA SÍNDROME DE ANSIEDADE D ESENVOLVIDA. (AIRR Nº 1387-85.2014.5.09.0001. TST, 2ª Turma. REL. MIN. JOSÉ ROBERTO FREIRE PIMENTA. J. 25.10.2017)
3. Considerações Finais
Consoante exposto, o Laudo Psicológico é um importante meio de prova em relação à configuração do assédio moral no ambiente de trabalho. Contudo, ainda que registre a existência de uma relação de causalidade ou concausalidade entre a psicopatologia e o ambiente de trabalho, não será suficiente, por si só, a comprovar a existência do assédio moral e gerar o dever de indenizar. Para tal, é imprescindível que o assédio moral venha a ser comprovado por outras provas produzidas, constituindo, assim, um a cervo probatório firme e seguro, funcionando o Laudo Pericial como uma peça importante, mas não dotado de autossuficiência. O Princípio da Unidade das Prova s deve prevalecer, o que importa afirmar que não haverá apreciação isolada da prova, sendo esta aferida em seu conjunto. O resultado do processo estará alinhado à configuração fornecida por essa análise, exigindo que a caracterização do assédio moral seja modulada concretamente. Caso contrário, a demanda será julgada improcedente.
Não estamos aqui a tentar enfraquecer o valor probante do Laudo Psicológico nos casos de assédio moral. Pelo contrário, reafirmamos sua importância no contexto robatório, mas também sua insuficiência, solitariamente, para comprovar a prática de assédio moral no ambiente de trabalho. Relembramos que todo processo judicial representa um resgate histórico em busca da reconstrução dos momentos relevantes do fato jurídico. Quanto mais fidedigno for esse resgate, sempre pautado nas provas produzidas, mais perfeita será a reconstrução do fato jurídico passado e, por conseguinte, mais precisa será a decisão judicial. Assim, a qualidade da prova está diretamente relacionada à consecução da verdade passada que se busca retratar. Portanto, o Laudo Psicológico constitui-se em mera peça desse quebra-cabeças, dotado de importância, mas não autossuficiência. Outras provas necessitam ser produzidas para se harmonizarem com o Laudo Psicológico e só então demonstrarem a configuração da prática do assédio moral no ambiente de trabalho.
4. Referência Bibliográficas.
SILVA, Jorge Luiz de Oliveira da. Assédio Moral no Ambiente de Trabalho, 2 ed. São Paulo: LEUD, 2012.
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO. Website. Disponível em: http://www.trt4.jus.br. Acesso em: 02 dez. 2020.
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Website. Disponível em: https://www.tst.jus.br. Acesso em: 02. dez. 2020.