INTRODUÇÃO
O fenômeno da pejotização não é novidade quando tratamos de relações de trabalhos, contratos de prestação de serviços e proteção no ordenamento jurídico brasileiro, sendo comumente caracterizado como a condição em que as pessoas físicas constituem empresas para a prestação se serviços em determinada área de sua competência, transformando-se de uma relação de trabalho em uma relação civil.
Tal fenômeno se define comumente como sendo a contratação de empresas ou cooperativas para a realização de serviços individuais ou a prestação de serviços especializados, ou ainda, quando há a substituição dos empregados, comumente contratados através de anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social ou por instrumentos contratuais para o exercício da tarefas anteriormente executadas por tais funcionários, considerada uma forma de precarização do trabalho ou falta de proteção ao trabalhador.
Inegável que as relações de trabalho no Brasil passaram por profundas transformações ao longo dos últimos anos. Contribuíram enormemente para tais mudanças a globalização, os avanços tecnológicos, as crises econômicas, mudanças normativas nas organizações de pequenas empresas e a política de tributação cada vez mais agressiva acabaram construindo um exército de pequenos empreendedores e, nada mais natural que a recente Reforma na Consolidação das Leis Trabalhistas tenha por objeto a regularização de parte dessas alterações.
A Reforma Trabalhista trouxe consigo mudanças significativas na forma de tratamento das várias espécies de contratação, inclusive trazendo o instituto do trabalhador temporário e, bem recentemente, autorizando a contratação de terceirizados para a realização de atividade-fim das empresas, ou seja, a principal natureza do serviço da empresa, seu núcleo, além de permitir a livre negociação entre as partes interessadas em relação à sua mão de obra, forma de remuneração e benefícios à margem daquele modelo engessado.
E como elemento fundamental na construção de qualquer sociedade, a saúde também acabou sendo atingida. Inúmeros fatores contribuíram para esse ingresso: seja a política de remuneração praticada nesse setor, seja os prestadores de serviços de saúde que se tornam cada vez mais especializados e tal especialização exige, em contrapartida uma melhor estrutura física, equipamentos e aparelhagem de tecnologia mais avançada para a execução de um serviço mais apurado e condizente com as exigências adquiridas.
O Direito Trabalhista Brasileiro possui, como um de seus princípios, o princípio da proteção, em que se presta amparo àquela parte considerada hipossuficiente na relação empregatícia. E tal princípio é por vezes suscitado quando se levantam críticas às relações civis que surgiram no momento em que a prestação dos serviços é realizada por empresas especializadas, por pessoas jurídicas devidamente firmadas.
Quando se trata de profissionais gabaritados como é o caso de médicos, o exercício de seu labor é revestido de autonomia, insubordinação e com forte tendência a manutenção de sua liberdade profissional em relação às instituições hospitalares ou clínicas médicas, que, em sua grande maioria, mantém junto a esses profissionais, uma relação de parceria em que um lado possui a técnica e por vezes, o renome e o outro lado, possui os serviços de hotelaria, equipamentos e materiais adequados à prática da Medicina e uma equipe assistencial pronta para atender às exigências desse profissionais.
- DA RELAÇÃO TRABALHISTA E SEUS REQUISITOS
O contrato de trabalho, firmado entre duas pessoas, sejam elas pessoas físicas ou naturais e pessoas jurídicas, exige o compromisso de direitos e obrigações entre os seus celebrantes. Assim como outros contratos regulares, o contrato de trabalho é um acordo de vontades, onde uma pessoa natural emprega seus talentos no exercício de uma função à serviços de outrem, preenchendo os requisitos de validade e caracterização da relação de trabalho.
Assim, surge uma relação em que a prestação exige a contraprestação. É uma relação de confiança em que o empregado trabalha regularmente, exercendo a função para a qual foi contratado, obedecendo às orientações e normas de seu empregador e recebe, ao final de período acordado, a remuneração por tais serviços.
O contrato de trabalho, que possui como sujeitos o empregado e o empregador, pode ser tácito ou verbal, escrito ou expresso, por tempo determinado, por tempo indeterminado e, como uma das novidades trazidas na Reforma Trabalhista, contrato temporário e os serviços prestados pelo empregado podem ser de origem intelectual, técnico ou manual e independe da espécie ou da condição do empregado. O que vale no contrato de trabalho é o seu conteúdo, sua essência e por conseguinte, sendo acordo de vontades, o fiel cumprimento daquilo que foi pactuado entre as partes pactuantes.
Já o personagem de empregador é, também de forma generalizada, aquele que, de forma organizada, vende bens ou presta serviços no mercado, com vistas à obtenção de lucro ou não, como é o caso das instituições de beneficência ou recreativas que não possuem fins lucrativos e que assume os riscos da atividade econômica.
Da leitura feita do terceiro artigo do Decreto-Lei nº 5.452, a Consolidação das Leis Trabalhistas, obtêm-se os requisitos para a justa caracterização da relação trabalhista, quais sejam: pessoalidade, não-eventualidade, subordinação e onerosidade.
Pormenorizando cada um dos requisitos demonstrados, o primeiro requisito para ser empregado, o da pessoalidade, é ser pessoa física. A legislação trabalhista apenas ampara e tutela os direitos das pessoas físicas, sendo os direitos das pessoas jurídicas assegurados pelo Direito Civil.
O requisito pessoalidade orienta por si, que o trabalho outrora vinculado através da relação de emprego seja executado por pessoa certa e determinada, que não pode ser substituído durante a relação de emprego ou durante a execução do serviço para o qual foi contratado.
A jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, em decisão acerca da pessoalidade na prestação dos serviços, se posicionou:
INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. AUSÊNCIA DE PESSOALIDADE NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Para se caracterizar a existência do liame empregatício, é necessária a presença cumulativa dos requisitos relacionados no artigo 3º da CLT, quais sejam: onerosidade (pagamento de salário), subordinação hierárquica, não eventualidade do serviço prestado e pessoalidade. Havendo confissão pela reclamante de que trabalhava junto com seu marido em seu domicílio, fica afastada a pessoalidade e, por conseguinte, o vínculo empregatício (TRT-15 – RO 60064 SP 0600/2012, Relator LUIZ ROBERTO NUNES, Data de Publicação: 03/08/2012
Assim, sem que a prestação de serviços seja realizada por pessoa jurídica, não há o que se falar em relação de emprego e sim, relação civil, regularmente prevista no Código Civil, restando infrutífera qualquer reconhecimento de relação de emprego ou caracterização de contrato de trabalho.
O segundo princípio retirado da própria norma trabalhista é a não-eventualidade, sendo considerado assim para Sérgio Pinto Martins[1], aquele trabalho de natureza habitual, duradouro, que não se esgota numa única sessão de prestação do serviço. Não se caracteriza uma relação de emprego quando se contrata uma obra de empreitada ou os serviços de um profissional liberal, como a atuação de um advogado em um processo judicial.
A eventualidade traz consigo distintas proposições para sua definição, tal como afirma Maurício Godinho Delgado[2]:
O conceito de eventualidade, definitivamente não resulta de um único ponto constitutivo. Controvertido, encontra distintas propostas de explicação, todas buscando firmar um critério básico à nítida identificação da natureza eventual da relação de trabalho enfocada. Na verdade, a possibilidade de aglutinação de, pelo menos, dois desses critérios no exame da relação jurídica concreta, é que irá permitir o mais firme enquadramento da situação fática examinada.
As quatro principais teorias existentes a respeito da temática, procurando fixar critérios objetivos de identificação dos elementos eventualidade, são como visto a teoria do evento, a teoria da descontinuidade, a teoria dos fins do empreendimento (ou fins da empresa) e a teoria da fixação jurídica do tomador dos serviços.
A primeira dessas teorias considera que eventual será o trabalhador contratado para atender a um serviço esporádico, decorrente de um evento episódico verificado na empresa. A teoria da descontinuidade considera que eventual será o trabalhador que se vincula, do ponto de vista temporal, de modo fracionado ao tomador, em períodos entrecortados, de curta duração. A ideia de segmentação na prestação de serviços ao longo do tempo é que se torna relevante para tal enfoque teórico.
A teoria dos fins da empresa identifica no eventual o trabalhador contratado para realizar tarefas estranhas aos fins do empreendimento, as quais, por isso mesmo, tenderiam a ser episódicas e curtas. A teoria da fixação jurídica, por sua vez, enxerga no eventual aquele trabalhador que, pela dinâmica de relacionamento com o mercado de trabalho, não se fixa especialmente a um ou outro tomador de serviços, ofertando-se indistintamente no mercado e relacionando-se, de modo simultâneo e indistinto, com diversos tomadores.
A subordinação, terceiro elemento caracterizador das relações de emprego firmadas, se caracteriza como sendo a obrigação que o empregado adquire, no momento da celebração do contrato de trabalho, de obediência aos ditames impostos pelo seu empregador, ela relaciona-se com a hierarquia existente entre empregado e empregador. Desta forma, Oscar Ivan Prux[3] define o instituto do profissional liberal como sendo:
Assim, precipuamente, conclui-se serem os profissionais liberais uma categoria de pessoas, que no exercício de suas atividades laborais, é perfeitamente diferenciada, pelos conhecimentos técnicos reconhecidos em diploma de nível superior, não se confundindo com a figura do autônomo, [...] sempre que atuem de forma independente, no sentido de não serem funcionários de um empregador.
Corroborando com essa definição, encontra-se o professor Paulo Luiz Neto Lobo[4], deve-se entender por profissional liberal: "todo aquele que desenvolve atividade específica de serviços, com independência técnica, e com qualificação e habilitação determinadas pela lei ou pela divisão social do trabalho". A ausência da subordinação descaracteriza firmemente a suposta relação de emprego existente entre médico e instituição hospitalar, senão vejamos:
MÉDICO. RELAÇÃO DE EMPREGO. AUSÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO. Os elementos que compõem a relação de emprego são: a prestação de trabalho por pessoa física, efetuada com pessoalidade pelo trabalhador de forma não eventual e onerosa e ainda sob subordinação ao tomador dos serviços. A ausência de um desses requisitos descaracteriza a relação de emprego. Não se afigura como empregado o médico, credenciado pelo SUS, que deste recebia diretamente a contraprestação e tampouco era obrigado a cumprir pessoalmente os plantões, podendo designar substituto em caso de impedimento. (TRT-19 – RECORD: 1096200106119009 AL 01096.2001.061.19.00-9, Relator: João Leite, Data de Publicação: 13/08/2003)
Por fim, o requisito da onerosidade como meio de se caracterizar a relação e o vínculo de trabalho existente entre as partes é ligado ao fato da retribuição pecuniária que o empregado percebe pela prestação dos seus serviços ao empregador. Pela falta de preenchimento desse requisito é que os trabalhos voluntários, filantrópicos, religiosos ou comunitários, por exemplo, não são agraciados com a identificação de relação de emprego, pois faltam-lhe justamente a onerosidade, a contraprestação financeira. Como cita Homero Batista Mendes da Silva[5]:
O contrato de trabalho é necessariamente a título oneroso, pois do contrário se aproxima de uma atividade de voluntariado ou nem ao menos se configura com uma forma de prestação de serviços, mas isso está longe de ser o bastante para explicar o alcance da onerosidade no direito do trabalho. Há necessidade de um outro elemento, nem sempre enaltecido nas atividades civis e comerciais, que vem a ser a garantia absoluta de recebimento dos salários pelo empregado, independente do que possa ter ocorrido com o empregador. Esse elemento complementar não tem um nome fácil de ser apontado, sendo comum a referência à palavra alteridade como forma de frisar que o trabalho é prestado por conta e risco alheio. A palavra não encontra consenso na doutrina, mas é satisfatória para se destacar que o caráter oneroso não pode ser afastado por dificuldades financeiras ou conjunturais por parte do empregador.
Esclarece-se, portanto, que independentemente de o empregador ter ou não auferido lucro no exercício de seu negócio, a contraprestação pecuniária devida ao empregado é certa e jamais poderá gerar qualquer tipo de prejuízo ao contratado.
- DO FENÔMENO DA “PEJOTIZAÇÃO”
A crise econômica enfrentada pelo Brasil na década de 90 trouxe mudanças significativas nas relações trabalhistas e, como decorrência direta dessa crise, houve a criação da Lei nº 11.196, que trouxe incentivos à inovação tecnológica, a inclusão digital, incentivos fiscais às áreas abrangidas pela SUDENE e a possibilidade de criação de empresas prestadoras de serviços sem empregados, como se vê no artigo 129 da referida lei.
Junta-se a isso, a flexibilização das normas trabalhistas, que é a possibilidade das partes envolvidas na relação de emprego, ou seja, empregado e empregador, estabelecerem acordos que agilizam ou facilitam o desenrolar de certas relações empregatícias, o que ainda hoje ocorre quando a reforma trabalhista traz o acordado sobrepondo-se ao legislado.
Não se confunde flexibilização com falta de regulamentação, e é importante frisar tal afirmação. Na desregulamentação a lei deixa de existir, o que não se aplica e nem se espera do nosso cotidiano. É necessário que haja normas para uma convivência pacífica e regular entre as partes. Vale destacar o entendimento de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena[6]:
A relação de empregos dos profissionais liberais advém do conjunto de relações por eles mantidas com a empresa credora de seu trabalho. A subordinação que lhes é peculiar não guarda as mesmas características que se encontram, amiúde, no status dos trabalhadores em geral. Antes de tudo, importa verificar-se se há participação da atividade do profissional na atividade da empresa. Se esta se dá, é indispensável se tenha essa participação como integrativa, isto é, se ela é necessária e permanente. A permanência e a necessidade dosam-se pelo grau de expectação, quando a empresa conta, a qualquer momento, com os serviços do profissional.
Ainda que possua ele escritório (consultório) próprio, isso não obsta à formação da relação de emprego, desde que seja manifesta a sua disponibilidade e se ache ele vinculado a um atendimento prioritário aos interesses e chamadas da empresa credora. (...) O pagamento de importância mensal fixa, haja ou não serviço, carrega indiscutível presunção a existência de um contrato de trabalho. A disponibilidade, o estar à disposição nas formulações do art. 4º da CLT (paga-se o tempo) torna irrefutável a dependência em seu corte jurídico.
Para Amauri Mascaro Nascimento[7], o trabalho que é prestado com pessoalidade, continuação e coordenação é considerado um trabalho parassubordinado, que seria uma categoria existente entre o trabalhador autônomo e o subordinado.
Ressalte-se que a flexibilização é prevista até na Constituição Federal, no seu artigo 7º, quando trata de redução salarial e redução ou ampliação de jornada de trabalho. Ainda assim, é mister que sua utilização seja feita por meio de parcimônia, com real necessidade para manutenção da relação de emprego e devidamente supervisionado pelos órgãos competentes.
- DA ÁREA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE
Para Ruy Rosado de Aguiar Júnior[8] que define o hospital como ente que assume a obrigação de meios, consistente em fornecer hospedagem (alojamento, alimentação) e em prestar serviços paramédicos (medicamentos, instalações, instrumentos, pessoal de enfermaria, etc.):
O hospital é uma universalidade de fato, formada por um conjunto de instalações, aparelhos e instrumentos médicos e cirúrgicos destinados ao tratamento da saúde, vinculada a uma pessoa jurídica, sua mantenedora, mas que não realiza ato médico[9].
O profissional médico, em seu Código de Ética Médica, possui o direito de não exercer sua atividade em instituição, se ela pública ou privada, que não ofereça condições adequadas para tal exercício, incluindo aqui, a remuneração digna e justa pelos serviços prestados, devendo até apresentar ao Conselho Regional de Medicina sua decisão e justificativa.
Por tal definição, se denota que o então Ministro reconhece que os serviços prestados por um estabelecimento de saúde limitam-se ao fornecimento de insumos capazes de prover as necessidades dos pacientes assistidos pelos profissionais médicos. Sabiamente. O Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo se posicionou da seguinte forma:
“TERCEIRIZAÇÃO. ATIVIDADE FIM. HOSPITAL. A ré possui médicos empregados que dão suporte à atividade fim do hospital, e também médicos autônomos, que assim se qualificam e que optaram em prestar seus serviços nessa condição, sem qualquer alegação de coação. Diante disso, não há como se concluir pela ilicitude da ré na contratação de empresas prestadoras de serviços médicos. E não cabe a esta Justiça Especializada determinar o registro de vínculo empregatício de pessoas (físicas ou jurídicas) que não reconhecem a violação de seus direitos, tampouco possuem interesse em alguma reparação. Recurso do ente público a que se nega provimento. (PROCESSO TRT/SP Nº 0000960-60.2015.5.02.0062 - RECURSO ORDINÁRIO da 62ª VT/SÃO PAULO. RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO RECORRIDO: SOCIEDADE BENEFICENTE DE SENHORAS – HOSPITAL SÍRIO LIBANÊS, Des. Relatora: ODETTE SILVEIRA MORAES)
As novas relações existentes entre os estabelecimentos de prestação de serviços de saúde e os profissionais médicos não foge à prática do mercado quando se trata de contratação desses profissionais, que se dá através de pessoas jurídicas, tendo em vistas as peculiaridades que a essa classe de profissionais requer.
Tal verdade é ainda mais latente quando o estabelecimento se apresenta como sendo um hospital de “corpo clínico aberto”, o que significa dizer que os profissionais médicos que queiram utilizar dos recursos existentes no nosocômio, devem apresentar as credenciais que o habilitam para a especialidade, assim como que permitem ao profissional o uso que os instrumentos e pessoal capacitado se mostra, o que é de responsabilidade do Conselho Regional de Medicina competente.
MÉDICO. SUBORDINAÇÃO JURÍDICA E DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. INEXISTÊNCIA. RELAÇÃO DE EMPREGO NÃO CONFIGURADA. A subordinação jurídica é o elemento qualificador por excelência da relação de emprego. Assim, se o profissional é 'senhor de si- no desempenho da atividade laborativa, atendendo clientes particulares no interior do estabelecimento patronal e, ainda, podendo ser substituído por terceiros quando lhe convier, resta configurada a hipótese de autonomia capaz de excluir o vínculo de emprego. Apelo autoral parcialmente provido. (TRT – RO: 17096820115010281 RJ, Relatora: Rosana Salim Villela Travesedo, Data do Julgamento: 03/04/2013, Décima Turma, Data de Publicação: 16/04/2013)
Sendo o corpo clínico um ente despersonalizado, e que tal condição possui influência desde o que tange o acesso e obediência à certas normas do estabelecimento até a responsabilidade civil pelos atos praticados dentro do estabelecimento, é necessário que se estabeleça que ele é formado exclusivamente por profissionais médicos, que possuem atuação símil e independente da estrutura hospitalar, quando atendem em seus consultórios e clínicas e utilizando da estrutura hospitalar apenas quando surge a necessidade de intervenção cirúrgica ou acompanhamento clínico de maior monta. A Segunda Turma do TST pacificou o entendimento de que não existe os requisitos de subordinação ou pessoalidade na relação entre médicos e hospitais:
MÉDICOS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A PESSOA JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE EMPREGO. O Regional consignou que, no caso específico dos médicos: "estes se utilizam das instalações físicas da parte autora MED IMAGEM para atender seus clientes, como uma extensão de seus consultórios, uma vez que buscam o serviço do profissional, e não a instituição em si, o que afasta o elemento alteridade, ou seja, o trabalhador não representa a Instituição, e exerce suas funções por sua conta e risco, e não por conta do empreendimento". Portanto, não se trata a situação de contratação de empregado por meio de empresa interposta, mas de contratos de prestação de serviços firmados entre a empresa e os médicos, profissionais liberais, o que, por si só, afasta a alegada contrariedade ao disposto na Súmula nº 331, itens I e III, do TST. Dessa forma, diante das circunstâncias registradas pelo Tribunal a quo, que, com base na prova dos autos, não reconheceu a existência de subordinação jurídica na prestação de serviços pelos médicos à empresa reclamada, não se pode adentrar na discussão dos aspectos fáticos, em face do disposto na Súmula nº 126 do TST. Assim, não se pode entender pela existência de afronta ao disposto nos artigos 2º, 3º e 9º da CLT. Recurso de revista não conhecido." (TST, Processo: RR - 59200-80.2009.5.22.0002, Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, Data de Publicação: 19/10/2012).
Atente-se para o fato de que a profissão de médico possui autonomia garantida desde seu código de ética médica, não cabendo qualquer interferência por parte da administração do estabelecimento hospitalar sobre o ato médico, sendo completamente desprovida de qualquer legitimidade na adoção de atos de fiscalização, controle ou ingerência.
A suposta subordinação alegada por alguns no exercício da medicina dentro de um ambiente hospitalar limita-se à norma gerencial quanto às funcionalidades do estabelecimento, tais como, agendamento de cirurgia, uso de equipamentos para a realização de exames, a obediência à escala de especialidade montada pelo diretor clínico do hospital, dentre outros que não implicam na figura da subordinação em si, mas no respeito às normas administrativas do hospital.
RELAÇÃO DE EMPREGO. MÉDICO PLANTONISTA. CONFISSÃO DA RECLAMANTE DE AUTONOMIA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Resta afastada a existência de vínculo de emprego ante a admissão pela parte reclamante da disponibilidade para escolha dos plantões e da possibilidade de afastamento da prestação de serviços sem autorização da reclamada. (Processo RO 01179-2003-005-04-00-3, da lavra do Exmo. Juiz Mário Chaves, publicado em 10/12/2004).
Nesse sentido, o TRT cearense reconhece a plena autonomia dos médicos contratados como prestadores de serviços nas dependências de um hospital, como transcrito:
RECURSO ORDINÁRIO. MÉDICO PLANTONISTA. RELAÇÃO DE TRABALHO. Não é empregatício o vínculo mantido entre médico plantonista e unidade hospitalar quando constatados traços incompatíveis com a subordinação, onerosidade e pessoalidade, ordinariamente encontrados nos contratos de emprego. (TRT – 7 – RECORD: 56200602707009 CE 00056/2006-027-07-00-9, Relator: Des. CLAUDIO SOARES PIRES, Data de Julgamento: 19/01/2009, Primeira Turma, Data de Publicação: 11/02/2009 DOJTe 7ª Região)
É de bom tom, ressaltar que um dos princípios do Direito do trabalho é a primazia da realidade, sendo indispensável que haja um estudo mais profundo e esclarecido nas relações que norteiam os serviços da classe médica, uma categoria esclarecida, de alto poder econômico, e que, por livre escolha do profissional, não se submeter às obrigações relacionadas ao contrato comum de trabalho, optando pela prestação de serviços, que lhes dá maior liberdade. No mesmo norte, o TRT da 4ª Região, proferiu:
Não resta a menor dúvida que os profissionais liberais, como é o caso dos médicos, podem prestar serviços de forma subordinada, e são empregados, ou de forma autônoma, por meio de contratos civis. A proletarização das profissões ditas liberais é uma realidade crescente. A proliferação de universidades, a recessão econômica, a concentração populacional nos grandes centros urbanos são, entre outros, os fatores que, gradativamente, reduziram espaços no mercado de trabalho, tornando-o altamente competitivo. Médicos, dentistas, arquitetos, advogados, antes atividades tradicional e essencialmente liberais, passaram a ter, na vinculação empregatícia, a possibilidade do seu exercício. O associamento em cooperativas, a contratação de convênios ou de credenciamentos, o agrupamento de profissionais por especialização para a prestação mais abrangente de serviços, se revelaram fórmulas criativas e eficazes para o enfrentamento das vicissitudes do mercado, sem que fosse perdida, integralmente, a liberalidade da profissão. Essa realidade, todavia, não retira do profissional a sua condição de diferenciado no contexto da sociedade brasileira. É diferenciado pelo grau de instrução conquistado, pelo estágio cultural alcançado, pelas oportunidades que lhe são oferecidas, não importando a quantidade delas. Realizada a digressão que se impunha, é nesse contexto que devemos examinar a lide proposta. (...) Quando se discute a existência de relação de emprego de profissional detentor de formação superior, é relevante investigar os antecedentes dessa contratação, a qualificação e condições pessoais desse trabalhador e, o quanto possível, a intenção das partes ao ajustarem a prestação dos serviços. É autorizado concluir, portanto, que a intenção das partes, ao contratarem, longe estava do desejo de se vincularem empregaticiamente. Aliás, a documentação trazida aos autos corrobora a tese patronal, no sentido de que celebrado, entre os litigantes, contrato de natureza civil, assim como comprovado resta que os pagamentos ocorreram através de RPAs. Considerada a qualificação, condições e antecedentes dos contratantes, não há como reconhecer a existência de contrato de emprego que os vincule, mesmo porque não provada, a contento, a presença dos elementos elencados nos artigos 2º e 3º da CLT. Note-se que, embora os serviços tenham sido prestados pelo reclamante, pessoalmente, de forma sucessiva e a título oneroso, não se evidencia a subordinação hierárquica, necessária à constituição da relação de emprego.” (Processo RO 00946.731/01-2, 7a Turma, Rel. Carlos César Cairoli Papaléo, publicado em 04/11/02)
Ao debater a existência de uma relação de emprego disfarçada sob a capa da pejotização, antes é necessário e de relevante importância que se investigue os antecedentes dessa contratação, a qualificação e grau de instrução daqueles que estão a celebrar o contrato de prestação de serviços e as condições pessoais de celebrante para se avaliar as reais intenções das partes ao ajustarem a prestação dos serviços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, demonstra-se a contratação de médicos através das pessoas jurídicas nada mais é que uma adequação dás partes envolvidas à necessidade do mercado profissional. É uma quimera profissionais médicos dispostos à contratação celetista, acobertada pelo vínculo empregatício, o que, pelas exigências acabariam suprimindo a possibilidade do médico prestar atendimento em clínicas e consultórios, que lhe auferem maior rendimento, para cumprir jornada de trabalho junto aos Hospitais,
Da mesma forma, necessita o Hospital de prestadores de serviços, pois, ao contrário do que se imagina, não é todo o aparato tecnológico, insumos, materiais, mão de obra assistencial especializada ou os medicamentos que ali estão que serão capazes de trazer a cura aos malefícios ou o pronto restabelecimento de um quadro clínico dos pacientes que procuram o estabelecimento. É necessária a presença de profissional médico para a correta prescrição desses.
Daí porque se diz que o médico não obedece às regras do Hospital: ele as dita. É o médico quem define quando e como irá atender seus pacientes, segundo seus interesses pessoais e necessidades do paciente.
A espinha da questão é analisar e correlacionar a presença dos elementos caracterizadores da relação de emprego e a maneira de prestação de serviços dos profissionais contratados por meio de pessoas jurídicas ou cooperativas. Quando se faz essa análise, demonstra-se o quão distinto é a aplicação desses elementos na prestação de serviços médicos, cujos profissionais exigem vantagens e liberdade de exercício definidos.
Ainda que para alguns, a pejotização seja uma forma de fraude, ela é a realidade que bate à nossa porta e, portanto, frente à essa nova norma, se faz necessário que o legislador, caso também entenda ser a pejotização uma maneira de precarização das relações trabalhistas, elabore de maneira eficaz e aplicável uma norma regulamentadora, tal como foi feito para o instituto da terceirização, que ganhou uma nova injeção de ânimo após o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no final de agosto do corrente ano.
Em verdade, hoje as relações existentes entre os profissionais médicos e os hospitais não se revestem de quaisquer dos característicos da relação típica de emprego. Devemos entender que o Hospital moderno não passa de estrutura hoteleira, com equipamentos de última geração, além do suporte técnico e administrativo, tudo de que um médico não dispõe, a princípio, em seu consultório. Por essa razão, o médico leva seu paciente ao hospital no qual realizará a intervenção que melhor lhe aprouver.
REFERÊNCIAS
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade Civil dos médicos, Revista Jurídica nº.231, jan/97.
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (15ª Região) Recurso Ordinário nº 60064 SP 0600/2012. Recorrente: Dayana Roberta Miguel, Recorrido: Mauricio Soares Antunes Franca – ME. Relator: Luiz Roberto Nunes, Campinas, 03 ago. 2012.
___. Tribunal Regional do Trabalho (19ª Região) Recurso Ordinário nº 1096200106119009 AL 01096.2001.061.19.00-9. Recorrente: Associação Psiquiátrica Teodora Albuquerque. Recorrido: Wellington Lemos Palmeira. Relator: João Leite, Maceió, 13 ago. 2003.
___. Tribunal Regional do Trabalho (7ª Região). RECORD: 56200602707009 CE 00056/2006-027-07-00-9. Partes: José Gonçalves Sobrinho, Hospital e Maternidade São Francisco de Assis. Relator: Des. Cláudio Soares Pires. Data de Julgamento: 19 jan. 2009. Primeira Turma. Data de Publicação: 11 fev. 2009. DOJTe 7ª Região
___. Tribunal Regional do Trabalho (Rio de Janeiro – 10ª Turma), RO: 17096820115010281 RJ. Recorrente: Carmem Lúcia de Sá da Silva. Recorrido: Pró-Clínicas Clínica de Diagnóstico e Tratamento S/A. Relatora: Rosana Salim Villela Travesedo, Data do Julgamento: 03 abr. 2013. Data de Publicação: 16 abr. 2013.
___. Tribunal Regional do Trabalho. (4ª Região). Processo RO 01179-2003-005-04-00-3. Recorrente: Marcelo Puerari Corrales. Recorrido: Hospital Saúde LTDA. Juiz Mário Chaves. Data da Publicação: 10 dez. 2004.
___. Tribunal Superior do Trabalho. RR - 59200-80.2009.5.22.0002. Recorrente: Ministério Público do Trabalho da 22ª Região. Recorrido: MED IMAGEM S/C. Relator: Ministro José Roberto Freire Pimenta, 2ª Turma, Data de Publicação: 19 out. 2012.
___. Tribunal Regional do Trabalho (São Paulo). RT/SP Nº 0000960-60.2015.5.02.0062 – Recurso Ordinário 62ª Vara de Trabalho/São Paulo. Recorrente: Ministério Público do trabalho. Recorrido: Sociedade Beneficente de Senhoras – Hospital Sírio Libanês. Des. Relatora: Odette Silveira Moraes, 09 set. 2016.
DELGADO, Mauricio Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr. 2017.
___. Curso de direito do trabalho. 8° ed. São Paulo: LTr, 2009.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Responsabilidade Civil dos Profissionais Liberais e o ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 26, p. 159-165. 1998.
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
OLIVEIRA, Samara Moura Valença de. A aplicação do princípio da primazia da realidade no combate ao fenômeno da pejotização. Universidade Federal da Bahia. 2013. Disponível em: Acesso em: 13 jul 2018.
PEREIRA, Leone. Pejotização – o trabalhador como pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.
PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade Civil do Profissional Liberal no Código de Defesa do Consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
SILVA, Batista Mateus da. Curso de direito do trabalho: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro. Relação de Emprego – Estrutura Legal e Supostos, 2ª Edição, Editora LTr, São Paulo, 1999.
CORREIA, Henrique. MIESSA, Élisson. Manual da Reforma Trabalhista. Salvador. 2018.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), online, Belém, v. 04, n. 01, p. 168-187. jan/jun. 2017.
[1] MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 128
[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 8° ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 323-324
[3] PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade Civil do Profissional Liberal no Código de Defesa do Consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 107
[4] LOBO, Paulo Luiz Netto. Responsabilidade Civil dos Profissionais Liberais e o ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, nº 26, p. 159-165. 1998. p. 160
[5] SILVA, Homero Batista Mendes da. Curso de direito do trabalho: parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 93
[6] VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro. Relação de Emprego – Estrutura Legal e Supostos”, 2ª Edição, Editora LTr, São Paulo, 1999, p. 562
[7] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 75.
[8] RECURSO ESPECIAL Nº 1.658.103 - MG (2017/0048270-7)
[9] DE AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade Civil dos médicos, Revista Jurídica nº.231, jan/97, pág.122