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Criminologia da complexidade:

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Agenda 09/03/2021 às 13:35

Discute-se de maneira interativa o alcance e as limitações de conceitos como violência, agressividade, conflito, crime e delinquência, integrando ciências naturais e humanas.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse estudo é apresentar algumas reflexões acerca da possibilidade de integração dos principais metaprogramas de pesquisa da Criminologia (pós-crítico, etiológico-positivista e crítico) realizando um diálogo construtivo entre essas unidades epistemológicas usando como espaço de conversação a teoria da complexidade.

Na concepção do mestre-filósofo Morin: 

Uma sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas essas interações produzem um todo organizado que retro atua sobre os indivíduos, para os coproduzir em sua qualidade de indivíduos humanos, o que eles não seriam se não dispusessem da educação, da linguagem e da cultura. Assim, para se conhecer e se transformar, o ser humano depende da variedade de condições que a realidade lhe oferece e do estoque de ideias existentes para que faça, de maneira autônoma, as suas escolhas (ESTRADA, 2009, p. 89).

Na obra intitulada “O método” (volume 1: A natureza da natureza) Morin (1987 [?], p. 15) advertiu que:

O grande corte entre as ciências da natureza e as ciências do homem oculta, simultaneamente, a realidade física das segundas e a realidade social das primeiras. Esbarramos com a onipotência de um princípio de disjunção: este condena as ciências humanas à inconsistência extrafísica, e condena as ciências naturais à inconsciência da sua realidade social.

Como resposta à disjunção do conhecimento, Morin (1987, p. 15) propôs que:

Toda a realidade antropossocial depende, de certo modo (qual?), da ciência física, mas toda a ciência física depende, de certo modo (qual?), da realidade antropossocial. A partir daqui, descobrimos que a implicação mútua entre estes termos se anela numa relação circular que devemos elucidar: Física > Biologia > Antropossociologia

Reforçando o seu ponto de vista, Morin (1987, p. 16) declarou que:

A constituição duma relação, precisamente onde havia uma disjunção, levanta um problema duplamente insondável: o da origem e da natureza do princípio que nos obriga a isolar e a separar para conhecer; o da possibilidade dum outro princípio capaz de ligar novamente o isolado e o separado.

Na busca do ideal da complexidade, o método proposto por Edgar Morin (1987, p. 23) considera que tudo é solidário, portanto, “o que importa procurar não é suprimir as distinções e oposições, mas derrubar a ditadura da simplificação disjuntiva e redutora”).

Morin destacou que o pesquisador deve evitar algumas práticas conservadoras do conhecimento, como por exemplo:

Idealizar (crer que a realidade pode reabsorver-se na ideia, que só o inteligível é real).

Racionalizar (querer encerrar a realidade na ordem e na coerência dum sistema, proibi-la de transbordar para fora do sistema, precisar de justificar a existência do mundo conferindo-lhe um certificado de racionalidade).

E normalizar (isto é, eliminar o estranho, o irredutível, o mistério) (MORIN, 1987, p. 25).

Nesse modelo epistemológico, é preciso romper com a simplificação do conhecimento, o que implica ao mesmo tempo rejeitar “toda a teoria unitária, toda a síntese totalizadora, todo o sistema racionalizador/ordenador” (MORIN, 1987, p. 25).

É necessário acabar com a fechadura do conhecimento programático e construir “ciclos virtuosos, que se tornem reflexivos e geradores de um pensamento complexo” (MORIN, 1987, p. 22). Portanto, mais do que propor um novo sistema, Morin defendeu a necessidade de um novo olhar sobre as regras científicas ou programas já existentes, ou seja, “não basta apenas aprender, e não apenas reaprender; não é apenas desaprender, mas sim reorganizar o nosso sistema mental para reaprender a aprender (MORIN, 1987, p.24).

No processo de abertura do conhecimento as interações com outros programas de pesquisa:

1. Supõem elementos, seres ou objetos materiais, que podem encontrar-se.

2. Supõem condições de encontro, ou seja, agitação, turbulência, fluxos contrários, etc.

3. Obedecem a determinações/imposições que dependem da natureza dos elementos, objetos ou seres que se encontram.

4. Tornam-se, em certas condições, inter-relações (associações, ligações, combinações, comunicação, etc.), ou seja, dão origem a fenómenos de organização (MORIN, 1987, p.53).

Novas organizações do saber dependem diretamente de interações e para que ocorram com sucesso é preciso que haja encontros e instabilidades através da agitação e turbulência das ideias. A ligação de saberes diferentes e até antagônicos do ponto de vista programático deve seguir a dialógica.

Nas palavras do filósofo Morin (1987, p. 79):

Digo dialógico, não para afastar a ideia de dialética, mas para fazê-lo derivar da dialética. A dialética da ordem e da desordem situa-se ao nível dos fenómenos; a ideia de dialógico situa-se ao nível do princípio e, como ouso adiantar, ao nível do paradigma.  Assim, a ordem e a desordem, sob determinado ângulo, são, não só distintas, mas também totalmente opostas; sob outro ângulo, apesar das distinções e oposições, estas duas noções são uma.

Aplicando a dialética da complementaridade do conhecimento, Morin (1987, p. 21) recomendou a seguinte estratégia:

[Com] a associação das duas proposições reconhecidas como verdadeiras, uma e outra isoladamente, mas que mal entram em contato se negam uma à outra, abrir a possibilidade de conceber estas duas verdades como as duas faces duma verdade complexa; [o objetivo aqui] é revelar a realidade principal, que consiste na relação de interdependência entre noções que a disjunção isola ou opõe; consiste, portanto, em abrir a porta à investigação desta relação.

Fazendo parte da dialogicidade, o “anel tetralógico” elaborado por Morin significa que:

As interações são inconcebíveis sem desordem, isto é, sem desigualdades, turbulências, agitações, etc., que os encontros provocam. Significa que a ordem e a organização são inconcebíveis sem interações. Nenhum corpo, nenhum objeto, pode ser concebido fora das interações que o constituíram e das interações nas quais participa necessariamente”. O anel tetralógico significa que quanto mais a ordem e a organização se desenvolvem, mais se tornam complexas, mais toleram, utilizam e necessitam até da desordem (MORIN, 1987, p. 58).

Resumindo:

O anel tetralógico significa que não podemos isolar ou hipostasiar nenhum destes termos. Cada um adquire sentido na sua relação com os outros. Temos de concebê-los em conjunto, ou seja, como termos simultaneamente complementares, concorrentes e antagónicos (MORIN, 1987, p.58).

O método proposto por Morin (1987, p.79) considera que a extrema complexidade da desordem conteria a ordem; e a extrema complexidade da ordem, ao mesmo tempo, hospedaria a desordem. Ou seja:

A relação entre ordem e desordem necessita de noções mediadoras; vemos aparecerem e imporem-se três noções indispensáveis ao estabelecimento da relação ordem/desordem:

1-A ideia crucial de interação, verdadeiro nó górdio de acaso e de necessidade, visto que uma interação aleatória desencadeia, em dadas condições, efeitos necessários (como o encontro no mesmo milionésimo de milionésimo de segundo de três núcleos de hélio que constituem um núcleo de carbono);

2- A ideia de transformação, nomeadamente as transformações de elementos dispersivos num todo organizado e, inversamente, dum todo organizado em elementos dispersivos;

3- A ideia-chave de organização.

Na base de suas reflexões, Morin (1987, p. 97) considerou que:

A vida é um sistema de sistemas, não só porque o organismo é um sistema de órgãos, que são sistemas de moléculas, que são sistemas de átomos, mas também porque o ser vivo é um sistema individual que participa dum sistema de reprodução, porque um e outro participam dum ecossistema, o qual participa da biosfera. E o que temos de compreender são os caracteres da unidade complexa: um sistema é uma unidade global, não elementar, visto que é constituído por partes diversas inter-relacionadas.


2 MÉTODO DE TRABALHO

A composição dos programas de pesquisa desse estudo utiliza seis categorias epistemológicas: ontologia, metodologia, axiologia, teoria, práxis e contexto histórico-social. Essas categorias transformam a publicação do autor na forma de um programa procedimental de pesquisa acompanhando um raciocínio categorial e lógico constituindo o modo de produção do conhecimento de cada pesquisador (MONTARROYOS, 2017). A ontologia do programa de pesquisa declara a tese fundamental da investigação que não é refutada pelo pesquisador visto que representa a base genética do sistema. Inclui principalmente a identidade cientifica do plano de trabalho, os objetivos e os objetos de estudo da investigação. A metodologia estabelece os métodos e as técnicas que possibilitarão a coleta de dados, fazendo necessariamente a ligação da ontologia com a realidade social do objeto de estudo. A axiologia, na sequência, projeta valores, ideologias e preferências que o pesquisador utiliza no recorte intelectual da realidade. A teoria ou uma série delas interpreta ou explica os dados coletados, destacando-se a linguagem transcendental ou abstrata do conhecimento. Cada teoria elencada pelo pesquisador define o grau de abstração das ideias associadas aos dados empíricos. Em seguida, a práxis do programa de pesquisa delimita problemas e soluções, apresentando modelos que recomendam estratégias de transformação da realidade. Por último, o contexto descreve o tempo e o espaço onde circulam manifesta principalmente o objeto de estudo da investigação.

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3 CRIMINOLOGIA PÓS-CRÍTICA

Nessa modalidade epistemológica, a Criminologia solicita a ajuda de outros olhares na produção do conhecimento, reconhecendo a importância da arte, religião, mídia, cultura, opinião popular, e das narrativas e percepções dos sujeitos envolvidos pelo mesmo sistema de justiça criminal.

A Criminologia pós-crítica procura conhecer a variabilidade ou diversidade do crime visando avaliar o impacto do pluralismo no funcionamento e legitimidade das instituições criminais. A esse respeito, Salo de Carvalho (2010, p. 22) considerou que “o hiato existente entre o universo jurídico e as expectativas da sociedade, sobretudo das pessoas envolvidas nos conflitos judicializados, é potencializado pela construção despótica, fragmentária e fictícia do processo. O caso em julgamento, portanto, muitas vezes é totalmente outro daquele que foi experimentado/vivenciado pelos sujeitos concretos”.  

Contribui na pesquisa a abordagem cultural considerando o crime um produto hermenêutico, fenomenológico e dialético, cuja expressividade se manifesta através das narrativas, das vivências e do conhecimento tácito dos sujeitos. Segundo Michel Polany o conhecimento tácito é um tipo de saber obtido intuitivamente e vivencialmente pela pessoa ao longo de sua vida. Nessa perspectiva filosófica, a Criminologia pós-crítica propõe que cada indivíduo é um criminologista, espontaneamente, pois acumula conhecimento tácito, ou seja, vivencial e intuitivo sobre a realidade do crime e da justiça criminal.

Atribui-se também ao filósofo Polany a definição pioneira do termo pós-crítico. Em seus diversos escritos, Polany descreveu a filosofia pós-crítica usando quatro graus de produção do conhecimento.

O primeiro grau utiliza método acrítico que identifica as coisas de forma não verbalizada, intuitiva e especulativa. O raciocínio irracional que se desenvolve com esse método não presta conta ao senso crítico da razão. É um método que permanece útil enquanto o seu conhecimento trouxer resultados esperados e atender basicamente à fé do sujeito.

É óbvio que nada semelhante pode ocorrer ao nível pré-articulado. Apenas pela ação posso testar a espécie de mapa mental que possuo de um local familiar, ou seja, usando-o como guia. Se me perder, posso corrigir as minhas ideias. Não há outra maneira de melhorar o conhecimento não articulado. Num dado momento apenas posso ver uma coisa de cada vez, e se duvido do que vejo, tudo que posso fazer é olhar uma outra vez e talvez ver agora as coisas de maneira diferente. A inteligência não articulada pode apenas apalpar o seu caminho mergulhando de uma visão das coisas para outra. O conhecimento adquirido e preservado desse modo pode por isso ser chamado acrítico. Pistas (ou indícios) e ferramentas são coisas usadas como tal, e não observadas por si próprias. Funcionam como extensões do nosso equipamento corporal, o que envolve uma certa mudança do nosso próprio ser. Nessa medida os atos de compreensão são não só irreversíveis, como também não-críticos. Porque não podemos possuir uma estrutura ou quadro de referência fixo, dentro da qual a sua reconfiguração possa ser testada de forma crítica (POLANYI, “Ciência, fé e sociedade”).

O segundo grau utiliza o método pré-crítico que se localiza entre os métodos acrítico e crítico. Seu diferencial é a boa vontade em obter validez científica; e nesse sentido, autoriza o pesquisador a desenvolver meios de ligação entre a vidência intuitiva e imaginativa e a evidência dos fatos, geralmente disponibilizando: hipóteses de trabalho, analogias, metáforas, mapas mentais, alegorias, conjecturas e imaginações diversas.

O terceiro grau utiliza o método crítico, e diferentemente dos anteriores, é totalmente racional, objetivista, priorizando assim o conhecimento explícito, extrovertido, demonstrativo, exato e impessoal.  

A dúvida cartesiana e o empirismo de Locke tornaram-se as duas alavancas poderosas da liberação subsequente da autoridade estabelecida. Essas filosofias e as de seus discípulos pretendiam demonstrar que a verdade poderia ser estabelecida e que uma doutrina rica e satisfatória do universo poderia ser construída apenas sobre os fundamentos da razão crítica. Proposições auto evidentes ou o testemunho dos sentidos, ou a combinação de ambos, seria suficiente. [...] Pensadores como Wells e John Dewey, e toda a geração cujas mentes refletem, continuam a professar essa convicção até os dias de hoje, como até mesmo os empiristas mais extremos que professam a filosofia do positivismo lógico. Todos eles estão convencidos de que nossos principais problemas ainda decorrem de não termos conseguido se livrar de nossas crenças tradicionais e continuam a basear suas esperanças em aplicações subsequentes do método do ceticismo radical e do empirismo (POLANYI, “Ciência, fé e sociedade”).

O quarto grau utiliza o método pós-crítico com o objetivo de produzir conhecimento adaptado, sentimentalizado, humanizado, contextualizado e vivenciado pela subjetividade; ainda assim dentro de uma tradição, ou sistema, teoria, ou conhecimento explícito, etc. É claramente um método anarquista que evita a estagnação do saber crítico e promove um teste de qualidade na Ciência, reorganizando e desacomodando as estruturas e tradições através da percepção detalhista de cada sujeito.

O método pós-crítico depende da percepção ou vivência sobre algo dado a prioristicamente, que será reestruturado, reorganizado, relido, e rearranjado pelo sujeito. Como exemplo, quando surge uma crise entre o ideal e o real, um disparate entre o “mapa” e a minha localização, um descompasso entre o “manual” e a minha situação na sociedade, surgirá uma epistemologia individualista onde cada sujeito ou grupo de pessoas ideologicamente semelhantes aplicarão o seu modo de saber pensar, de saber fazer, de saber ser e de saber conviver, personalizando a utilidade do conhecimento disponível. 

No conhecimento pós-crítico desenvolve-se uma crítica pessoal sobre o conhecimento que foi obtido por outras pessoas anteriormente através da crítica impessoal. Desse modo, o conhecimento pós-crítico realiza uma crítica sobre a crítica.

O método pós-crítico é imediatamente necessário quando o conhecimento explícito dos manuais, “mapas” e modelos são impertinentes ou inoportunos para a situação em que se encontra o sujeito. Nesse caso, o sujeito tem um modo próprio de pensar e de resolver as situações ordinárias e extraordinárias. Portanto, o método pós-crítico é fundamentalmente dirigido pela vivência do indivíduo.

Confirmando esse diagnóstico, Polanyi apresentou o seguinte exemplo na obra “Ciência, fé e sociedade”:

A vantagem de um mapa é óbvia, tanto pela informação que transmite, como por uma razão ainda mais importante: é muito mais fácil seguir um itinerário com um mapa do que sem um mapa. Mas há também um novo risco envolvido ao viajar por um mapa: o mapa pode estar errado. É aqui que entra a reflexão crítica. O risco peculiar que corremos ao confiar em qualquer conhecimento explícito combina-se com a oportunidade peculiar que oferece de refletir criticamente sobre ele próprio. Podemos verificar a informação de um mapa, por exemplo, lendo-o num local que possamos examinar diretamente e comparar o mapa com os marcos à nossa frente. Esse exame crítico do mapa é possível por duas razões. Primeiro, porque um mapa é algo que nos é externo e não qualquer coisa que executamos ou a que damos forma; e, segundo, porque mesmo que seja um mero objeto externo, ainda assim pode-nos falar. Diz-nos algo a que podemos prestar atenção. E fá-lo; quer tenhamos elaborado nós próprios o mapa, quer o tenhamos comprado numa loja. Mas é o primeiro caso que de momento nos interessa, em especial quando o mapa é de fato uma afirmação de nós próprios. Ao ler tal afirmação estamos a rever para nós mesmo algo que já antes tínhamos expresso, de modo que agora podemos atender criticamente. Um processo crítico deste tipo pode continuar por horas, e até por semanas ou meses. Posso percorrer o manuscrito de um livro completo e examinar o mesmo texto, frase por frase, um qualquer número de vezes.

Na metodologia pós-crítica o pesquisador aplica o método etnográfico pretendendo sistematizar o conhecimento plural do cotidiano que depois deverá ser confrontado com o Direito Penal visando estrategicamente avaliar e melhorar a capacidade de resiliência das instituições criminais sem perder de vista o direito individual, a dignidade da pessoa e da sociedade humana.

O americano Ferrel, por exemplo, que marca o avanço dos estudos culturais na Criminologia contemporânea aplicou a técnica etnográfica pelo viés anarquista e mostrou na década de 1990 que:

A tensão entre as práticas de grafitagem como expressão cultural de determinadas tribos urbanas e o seu confronto com campanhas contrárias serviu ao pesquisador como estudo de caso sobre temas como poder, autoridade e resistência, subordinação e insubordinação, abrindo espaço para possibilidades teóricas e metodológicas que intitulou na época, criminologia anarquista.

A etnografia criminal do especialista Ferrel foi “inspirado fortemente em Kropotkin”, através do qual fez uma análise do crime e da criminalidade “informada pela perspectiva anarquista de ruptura com a autoridade – sobretudo com a incrustação da autoridade nas relações humanas – e com os sistemas hierárquicos de dominação, o que permitiu abertura de inimagináveis focos de investigação criminológica” (CARVALHO, 2020, p. 36)

Reforçando a metodologia pós-crítica, Salo de Carvalho (2010, p. 27) afirmou que é “imprescindível a abertura da dogmática, iniciando-se pela aproximação com a realidade da vida, pois a peculiaridades das circunstâncias em casos envolvendo drogas, violência de gênero, meio ambiente, sistema financeiro, crimes patrimoniais, p. ex., exigem sofisticação das estruturas do direito e do processo penal, sem que isto represente ruptura com o sistema de garantias”.

Contribui também na pesquisa pós-crítica a metodologia pós-moderna que prioriza o microssocial, o particular, o artesanal, o regional, para depois alcançar aspectos macrossociais e sistêmicos.

A Criminologia pós-moderna desenvolve dois pilares: 1- o reconhecimento do fim das grandes narrativas e 2 - a impossibilidade de aceitação de qualquer tipo de verdade universal” (CARVALHO, 2010, p. 31).

Como resultado prático, “o pensamento pós-moderno permite [...] problematizar idealismos presentes em algumas vertentes das criminologias críticas - tendências que romantizam o autor de atos delitivos ao incorporarem determinismo econômicos”. Aprofundando esse último aspecto, Salo de Carvalho ressaltou que “é importante pontuar as tendências metafísicas em todos os campos de construção do pensamento criminológico, inclusive nas correntes críticas” (CARVALHO, 2010, p. 32).

Desenvolve-se na pesquisa pós-crítica o anarquismo metodológico e teórico, que deve “problematizar de forma qualificada o estudo das distintas formas de manifestação do crime, nas sociedades complexas, indicando a impossibilidade de um modelo teórico universal que [equivocadamente] forneça respostas adequadas” (CARVALHO, 2010, p. 26). Dessa forma, “o estudo do Direito Penal, do processo penal e da criminologia a partir de casos específicos, com possibilidade de experimentação (por mais infiel que possa ser o relato), permitiria a aproximação dos operadores com a vida concreta e a compreensão dos ricos e plurais elementos da sua cultura” (CARVALHO, 2010, p. 23).

Enfatiza o ilustre autor que é “inconcebível na complexidade da vida contemporânea, ensinar e aprender Direito Penal e processo penal sem análise dos problemas específicos que envolvem as distintas condutas que conformam o universo da ilicitude” (CARVALHO, 2010, p. 27).

O abolicionismo penal é bem-vindo nesse programa de pesquisa como utopia orientadora. Embora seja difícil a plenitude desse paradigma na prática forense, os argumentos abolicionistas “são extremamente úteis para a avaliação fenomenológica da ineficácia, dos custos e da violência que o sistema penal reproduz” (CARVALHO, 2010, p. 146).

Porém, o abolicionismo penal se esbarra em limites constitucionais, como a Constituição de 1988, que ao estatuir os direitos e garantias fundamentais, “define o modelo de persecução criminal dos fatos puníveis, e inclusive prevê na enumeração das sanções, a pena privativa de liberdade e regime fechado” (CARVALHO, 2010, p. 146).

Também a Constituição de 1988 em diversos incisos do artigo 5º indica meios penais que deverão minimizar o sofrimento imposto pelo Estado ao condenado, respeitando os princípios de humanidade, de individualização da pena e de respeito à integridade física e moral do condenado.

Mas o dispositivo mais exemplar de configuração constitucional da política penalógica de redução dos danos é encontrada na alínea “e” o inciso XLVII. Ao determinar vedações a algumas espécies de pena (morte, prisão perpétua, trabalhos forçados e banimento - a Constituição estabelece na referida alínea o princípio da proibição do excesso punitivo ao negar em qualquer hipótese a aplicação e execução de penas cruéis (CARVALHO, 2010, p. 148).

Apesar das restrições constitucionais,

O abolicionismo penal abre espaço para no campo da política criminal e da atuação cotidiana dos atores do Direito Penal elaboração de práticas voltadas à redução dos danos causados pelas violências do sistema penal. Neste quadro, a utopia orientadora vislumbrada por Baratta adquire importância ímpar (CARVALHO, 2010, p. 146).

A axiologia da Criminologia pós-crítica ressalta a importância da complexidade do saber. Afirmando esse valor científico, a Criminologia pós-crítica focaliza o pluralismo dos eventos ilícitos dentro de um mesmo padrão ou tipo penal:

[...] pois as, violência de gênero, meio ambiente, sistema financeiro, crimes patrimoniais, etc., exigem sofisticação das estruturas do direito e do processo penal, sem que isto represente ruptura com o sistema de garantias. Problemas de fundo como a medicalização do Direito Penal das drogas, o sexismo na abordagem das questões de gênero, o impacto socioeconômico nos crimes patrimoniais, a escassa vulnerabilidade nos crimes societários, a ausência de consciência ambiental nos ilícitos contra a natureza, não podem restar alheios de especificações nas teorias penais e processuais penais (CARVALHO, 2010, p. 27).

A teoria complexificadora da Criminologia pós-crítica rejeita a uniformidade da questão criminal que se manifesta nas soluções políticas e dogmáticas do Direito Penal. Como diferencial procura “estudar o crime e o funcionamento do sistema da justiça penal, conectando-se à dogmática penal, com a finalidade de possibilitar chaves de interpretação das variáveis inerentes a cada espécie de conflito” (CARVALHO, 2010, p. 27).

A teoria desse programa de pesquisa informa também que as diversas ciências criminológicas ficaram atreladas à dogmática, fazendo a interdisciplinaridade ser uma ilusão de ótica, pois no final da investigação predomina a vontade do sistema jurídico penal maximalista, autoritário, excludente, violento e desumano. Por extensão, a Criminologia positivista se torna uma sucursal do Direito Penal, uma ciência auxiliar, que serve apenas para compreender a lógica de punição dos códigos estatais.

Refutando a simplificação do Direito Penal, a teoria complexificadora da Criminologia pós-crítica destaca que existe uma “fixação da resposta penal na univocidade da sanção carcerária, independente da diversidade do ato praticado” (CARVALHO, 2010, p. 33).

Em outra situação, essa mesma teoria crítica procura rejeitar o modo como é ensinada a disciplina Criminologia nas Faculdades, visto que:

Os estudos realizados sobre o ensino do direito têm demonstrado à exaustão, a inominável defasagem em termos pedagógicos e a profunda distância entre o saber jurídico e a realidade social. No entanto, se é dado irrefutável que a formação do jurista está dissociada das demandas sociais contemporâneas, é fundamental dizer que este mesmo modelo está desconectado da própria realidade legislativa, que lhe é referente e lhe dá sustentação (CARVALHO, 2010, p. 18).

A praticologia do programa de pesquisa pós-crítico apresenta uma problematização e recomenda diretrizes que podem modificar a realidade social. Na prática, devem ser investigados empiricamente os fatores de risco, a vulnerabilidade individual e social ao delito, e os danos proporcionados através da atuação das agências punitivas (CARVALHO, 2010, p. 27).

Em sua agenda de trabalho, a pesquisa pós-crítica estabelece várias tarefas relevantes:

1-Inventar espaços de integração de saberes críticos (CARVALHO, 2010, p. 53).

2-Realizar diagnósticos que possam desnudar a vontade do sistema inerente aos projetos políticos e científicos modernos (CARVALHO, 2010, p. 55).

3-Usar a arte como instrumento não racional do saber (teatro, cinema, artes plásticas) e perguntar qual tem sido a forma de representação do controle social punitivista e dos atores que nele operam? Em segundo lugar perguntar como a representação artística sobre as agências de punitividade e os seus operadores correspondem à autoimagem cultivada no sistema e na justiça criminal (CARVALHO, 2010, p. 66).

4- Investigar o grau de risco de ressurgimento da prática inquisitorial no sistema democrático. Nessa direção, entende-se que:

A opção de identificar os níveis de atuação dos sistemas em inquisitorialidade de alta ou de baixa intensidade possibilitaria desnudar suas reais formas de manifestação e de otimizar ações neutralizadoras de redução dos danos potenciais aos direitos fundamentais. Desde esta perspectiva, seria possível compreender o garantismo penal como discurso e como prática voltada para a instrumentalização do controle e a limitação dos poderes punitivos (CARVALHO, 2010, p. 90).

5- Defender a racionalização e o minimalismo do poder punitivo. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2010, p. 110) afirmou que:

Se a regra da programação penal e a violação aos direitos fundamentais, o que tornaria legítima a intervenção penal punitiva? A resposta necessariamente deve se iniciar com o reconhecimento de que o grau mínimo de legitimidade da ingerência penal é adquirido através do absoluto respeito às regras do jogo democrático, ou seja, com a radical observância das garantias penais e processuais penais.

6- Desenvolver estratégias políticas de ação forense visando à redução de danos causados pelas violências dos poderes (CARVALHO, 2010, p. 131).

7- Direcionar esforços para minimizar os riscos gerados pelos aparatos punitivos, desnudar a retórica penal (discursos declarados e não cumpridos) e retomar a natureza política da pena. Desse modo, distante de qualquer idealização, a pena é recolocada no campo político da manifestação do poder (CARVALHO, 2010, p. 132).

8- Neutralizar ao máximo possível os efeitos da prisionalização e vulnerabilidade do indivíduo submetido ao sistema executivo. Tais premissas como pondera Zaffaroni, seriam orientadoras de práticas sem pretensões impossíveis ou utópicas (CARVALHO, 2010, p. 153).

9- Buscar apoio na chamada criminologia cultural, “pois como fenômeno da cultura punitivista contemporânea, as formas, as imagens, a representação e a significação social da punição ingressam no universo de análise da Criminologia cultural” (CARVALHO, 2010, p. 42).

Configura-se como criminologia, estética de análise de ícones e símbolos culturais mercantilizados pelos meios formais e informais de comunicação. Por esse motivo, representações televisivas, cinematográficas, artes plásticas, teatro, expressões e estilos musicais, campanhas publicitárias, websites, vídeo games, moda urbana e práticas desportivas e de entretenimento, sejam transgressivas ou conformistas, apresentam-se como potenciais objetos de pesquisa que falam sobre o sujeito contemporâneo.

10- Assumir a virtude de não ser a Criminologia uma ciência preocupada por temas e problemas criminológicos distintos ou simplesmente sugerir interpretações e revisões sobre temas tradicionais. Dentre os problemas emergentes desta Criminologia sem compromisso epistemológico estaria o de mapear a multiplicidade dos campos de investigação com intuito de compreender os diversos olhares científicos, penais e políticos sobre a questão criminal. O levantamento permite identificar as inúmeras chaves de leitura propostas e em segundo momento, de forma experimental, propor aproximações, sugerir diálogos, testar colagens, inverter premissas lógicas, e redefinir perspectivas (CARVALHO, 2010, p. 44).

11- Finalmente, harmonizar as especificidades culturais e os saberes locais de maneira que antes de tudo as distintas perspectivas possam dialogar com reciprocidade (CARVALHO, 2010, p. 45).

A Criminologia pós-crítica propõe alternativas que não só minimizariam os impactos do direito e do processo penal sobre a dignidade e a psicologia das vítimas, suspeitos, acusados e condenados, mas também racionalizariam a necessidade do Direito Penal como estratégia de última aplicação institucional, quando enfim outros ramos do Direito não se mostrassem condizentes com os delitos de maior gravidade.

[...] em razão de o poder penal tender sempre a um excesso - seja no plano da elaboração (legislativo), da aplicação (judiciário) ou da execução (executivo) das leis - sua utilização deveria ocorrer apenas em última instância (ultima ratio nas situações de maior gravidade aos principais interesses sociais (CARVALHO, 2010, p. xxi).

Na contextualização histórica do programa de pesquisa pós-crítico Salo de Carvalho observou que a primeira ferida narcísica na Criminologia etiológica foi causada pela Criminologia crítica americana ao denunciar que os mitos da igualdade e da eficiência do Direito Penal não são efetivados, pois há uma seletividade ideológica nos processos punitivos e na atuação das agências policiais, repressivas e investigativas. Pelo olhar da Criminologia crítica ficou evidente que a “impunidade é a regra” (CARVALHO, 2010, p. 93). A segunda ferida narcísica na História da Criminologia tradicional seria a Modernidade líquida ou pós-modernidade, com a multiplicações dos riscos ambientais e sociais, que exigem naturalmente um novo paradigma sobre a realidade, não mais baseado:

Na pretensão e na soberba exageradas pela crença romântica de que o Direito Penal pode salvaguardar a Humanidade de sua destruição sem ter clareza dos seus próprios limites que não aparecem quando a própria dogmática manifesta o delírio de grandeza messiânica de responsabilizar-se pela proteção dos valores mais importantes à Humanidade, chegando ao ponto de assumir o encargo de garantidor do futuro da civilização através da tutela penal das gerações futuras [...] (CARVALHO, 2010, p. 109).

Segundo Salo de Carvalho, os problemas que modelam a contextualização da pesquisa são:

  1. O hipercarceramento, ou inchaço da população carcerária nos presídios.
  2. A hipercriminalização, ou penalização excessiva de condutas desviantes; ou então, a banalização do Direito Penal.
  3. As irregularidades dos atos de poder do Estado, ou seja, o exercício abusivo da violência das agências penais.
  4. O inquisitorialismo, ou prática medieval, gótica, autoritária, que pode ressurgir no estado democrático de direito.
  5. A cultura punitivista, ou culto à doutrina do maximalismo penal.
  6. E os danos institucionais, ou violação dos direitos humanos da parte do Estado.

Como alternativa, a Criminologia pós-crítica propõe:

  1. Reduzir a dor e o sofrimento das pessoas no terreno da legalidade e das instituições punitivas.
  2. Desenvolver meios humanos e democráticos de aplicação das penas.
  3. Frear a fúria do Estado que afeta a vítima e o autor do delito.
  4. Proteger direitos humanos fundamentais.
  5. Não banalizar a relação e contato físico do indivíduo com o Direito Penal e com o sistema carcerário.
  6. Integrar a dogmática penal com a Criminologia e a política criminal.
  7. Desenvolver uma Criminologia vigilante dos direitos humanos.
  8. Além disso, interagir construtivamente com a Criminologia crítica, especialmente em sua abordagem cultural direcionada aos temas da política criminal e da cultura punitiva em geral.

Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor de Criminologia; associado 4, da FADIR - UNIFESSPA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Criminologia da complexidade:: reflexões epistemológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6460, 9 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88040. Acesso em: 16 nov. 2024.

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