5 CRIMINOLOGIA POSITIVISTA
Dias & Andrade (1997, p. 165) lembraram que as teorias bioantropológicas identificam biotipos de pessoas intrinsicamente predispostas ao crime. Na Criminologia etiológica a explicação da tendência natural depende exclusivamente de variáveis congênitas inalteráveis, onde o delinquente é diferente da pessoa “normal”.
Juarez Cirino dos Santos (s.d., p. 8) considerou na mesma direção que “o discurso etiológico é a marca da Criminologia positivista, que trabalha com um método causal-determinista fundado na pergunta: por que certas pessoas cometem crimes?”.
Baratta (2002, p. 43) concordaria com esse quadro dizendo que “[...] a tarefa da Criminologia etiológica é reduzida à explicação causal do comportamento criminoso, baseada na dupla hipótese do caráter complementar determinado do comportamento criminoso, e da diferença fundamental entre indivíduos criminosos e não criminosos”.
Buscar fatos científicos que podem explicar a criminalidade tem sido e continua sendo uma vertente dominante na criminologia acadêmica. O positivismo nesse quadro epistemológico não se preocupa com o abstrato e improvável, mas sim com o tangível e quantificável. Através da aquisição de conhecimento objetivo, é assumido na pesquisa positivista que a maioria dos problemas sociais pode ser melhor compreendida e tratada. A principal característica da escola positiva é sua ênfase na aplicação dos métodos das ciências naturais ao estudo do comportamento humano (Open University: Introduction to critical criminology, 2019)
As atividades científicas do positivismo seguem no sentido de estabelecer relações de causa e efeito e aumentar a capacidade de prever a criminalidade quando determinados fatores criminogênicos podem ser identificados (Open University: Introduction to critical criminology, 2019)
A metodologia da Criminologia etiológica recomenda os seguintes procedimentos (SANTOS, s.d., p.8-9):
a) Assumir a teoria do consenso sobre valores e intereses como fundamento político da sociedade, o que permite definir o desvio como dissenso individual determinado por patologia ou subsocialização.
b) Trabalhar com o conceito de determinação causal da conduta humana, que reduz o comportamento a mero sintoma revelador da natureza do sujeito, produzido por causas internas desconhecidas e não controladas pelo autor, mas identificáveis por peritos (psiquiatras, biólogos etc.) mediante diagnóstico de causas, prognóstico de comportamentos e prescrição de terapias corretivas, segundo o modelo e a linguagem médica.
c) Pressupor o método indutivo-experimental das ciências naturais, verificando hipóteses induzidas da quantificação da conduta com base em estatísticas criminais.
d) Responder à pergunta (por que determinadas pessoas cometem crimes?) com a apresentação de propostas de correção pessoal ou de reformas sociais, substituindo assim as penas criminais (fundadas na liberdade de vontade) por medidas corretivas.
Na axiologia da Criminologia etiológica “o castigo dos elementos associais reconfortará os membros das maiorias obedientes à Lei, sancionando as suas proposições de seres normais e morais. A pena tem assim, a função de evitar o castigo” (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 203). A axiologia da Criminologia etiológica acredita também que o criminoso é inimigo da sociedade, cabendo assim às políticas públicas o desafio de promover a guerra contra o crime (DIAS & ANDRADE, 1997, p. 178).
Entre as teorias mais populares da Criminologia etiológica destacam-se a biológica, a morfológica, a genética, a hereditária e a instintiva.
a) Teoria biológica. A primeira explicação biológica do comportamento humano é a teoria do criminoso nato (LOMBROSO), fundada na hipótese de atavismo, definível como degeneração pessoal identificável por estigmas físicos: o crânio estreito e pomos salientes do assassino, os olhos oblíquos e o nariz grande do estuprador, a fronte fugidia do ladrão etc.
b) Teoria morfológico-constitucional. Pressupõe correlações entre caracteres físicos e tendências psíquicas para determinados delitos: por exemplo, o leptossomático ou ectomorfo (indivíduo magro e alto), possui tendência para o furto, o estelionato etc.; o atlético ou mesomorfo (indivíduo musculoso), possui tendência para a violência pessoal, patrimonial e sexual; ao contrário, o pícnico ou endomorfo (indivíduo gordo) seria sociável e bonachão.
c) Teoria genética. A teoria mais difundida indica a presença de um Y a mais na estrutura cromossômica individual como responsável pelo comportamento violento (o normal é apenas XY no homem, XX na mulher); essa anomalia cromossômica teria sido encontrada na proporção de 3% a 4% da população das prisões e apenas na proporção de 0,04% da população em geral.
d) Teoria da hereditariedade. Pesquisas de gêmeos idênticos e fraternos pressupõem correlações entre disposições hereditárias e comportamento humano, assim formuladas: se existe a correlação herança/comportamento, então (a) o comportamento de gêmeos idênticos seria concordante e (b) o comportamento de gêmeos fraternos seria discordante. Os dados de pesquisas mais recentes indicam pequena correlação: gêmeos idênticos, concordância em 35% dos casos; gêmeos fraternos, concordância em 13% dos casos. A crítica menciona influências sociais e culturais para explicar a concordância superior do comportamento de gêmeos idênticos em relação aos gêmeos fraternos, desconsideradas nas pesquisas indicadas.
e) Teoria dos instintos. Estudos do comportamento instintivo animal identifica sinais/estímulos inatos (maioria) e condicionados (minoria) responsáveis pelo controle das relações recíprocas, mostrando como a transmissão/captação desses sinais/estímulos pode desencadear ou inibir a agressividade (SANTOS, 2002, p. 10-11).
A praticologia do programa de pesquisa da Criminologia etiológica desenvolve procedimentos experimentais e laboratoriais, realizando observações antes e depois do crime com abordagens genéticas, neurocerebrais, endocrinológicas, médicas, psiquiátricas e psicanalíticas. Diferentemente da criminologia metafísica, o programa de pesquisa etiológico derruba o mito iluminista de que a pessoa teria liberdade de escolha para praticar ou não o ato criminoso, e como justificativa demonstra a existência de fatores endógenos e exógenos que impedem o livre arbítrio.
5.1 Criminologia etiológica de Enrico Ferri
A ontologia do programa de pesquisa do criminalista Ferri declarou como tarefa essencial estudar as causas, as condições e os remédios dos fenômenos criminais (FERRI, 2006, p. 411). Nessa direção, o criminalista não deve investigar o delito e a pena como entidades exclusivamente jurídicas. Ele deverá pensar na prevenção e repressão do crime, bem como na prisão, tratamento e socialização do condenado.
Segundo Ferri, a criminalidade é uma “planta malfeitora” que cresce com vigor e estende suas raízes profundas exigindo medidas de combate da sociedade que ficarão situadas entre o texto da lei, as sentenças do juiz, a organização das prisões e as medidas preventivas.
O remédio para enfrentar a criminalidade não é moralista, nem burocrática, mas social, e demanda estratégias visando socializar o apenado e ao mesmo tempo melhorar o ambiente social. Nessa perspectiva, o delito não é um dado imoral decorrente da livre escolha; mas um dado bio-físico-psico-social, determinado por fatores “antropológicos, telúricos, sociais; e como tal é um sintoma de patologia individual e social (FERRI, 2006, p. 416).
Considera-se nesse programa de pesquisa que existe a criminalidade atávica, que é por natureza incorrigível; e de outro modo, a criminalidade evolutiva, que pode ser corrigida com a intervenção de uma medicina sociológica.
Ferri explicou que “voltando a nossa comparação com a medicina biológica, na medicina sociológica também as grandes classes de medidas higiênicas (meios preventivos); de disciplinas terapêuticas (meios reparatórios e repressivos); e de operações cirúrgicas (meios eliminatórios), constituem o arsenal que permite a sociedade fazer frente a necessidade permanente de sua própria conservação” (FERRI, 2006, p. 204).
Ferri separou a nova ciência positivista da tradição clássica que justificou “o direito de castigar pelos atos reprováveis dos homens que possuem livre arbítrio ou seja liberdade moral”. Usando essa mentalidade clássica, o Direito Penal reproduz uma crença simplista a respeito da criminalidade. Nesse tipo de abordagem, segundo Ferri:
O [indivíduo] pode querer o bem e o mal, e em consequência se escolhe o mal é responsável de sua eleição e deve ser castigado por ela. E segundo é ou não livre, ou que é mais ou menos nesta eleição que faz de mal, é também mais ou menos responsável e punível (FERRI, 2006, p. 13).
Existem fatores naturais e artificiais que alteram o comportamento humano. Correspondendo a essa premissa a metodologia da pesquisa recomenda observar estímulos ambientais sobre o corpo da pessoa, que depois são interiorizados causando reações nervosas, musculares e cerebrais que não dependem, portanto, das crenças ou ideologias da pessoa para se manifestarem, pois fazem parte de um processo mecânico e biológico.
O café e o chá excitam a produção de ideias; o álcool a doses pequenas excita a vontade, entanto, que se é tomado em doses frequentes e excessivas conduzem a uma degeneração orgânica seguida de debilitação das funções psíquicas, inteligência e vontade. Outro tanto pode decidir-se da ação característica de certos venenos, narcóticos, etc. (FERRI, 2006, p. 20).
Importante destacar que Ferri reconheceu que “cada sujeito tem uma personalidade própria, temperamento e caráter”; “que a personalidade é essencialmente determinada pela herança físio-psíquica e que depois se desenvolve e se modifica segundo o meio”; “que o ambiente tem grande poder sobre a conduta da pessoa”; “que uma temperatura elevada, um vento siroco, um esgotamento nervoso, como resultado de um excesso de trabalho, um período de digestão laboriosa, e outras causas acidentais têm sobre a energia de nossa vontade e até sobre nossos sentimentos um poder que todos nós temos comprovado por experiência” (FERRI, 2006, p. 20).
Ferri destacou que “todo homem tem sua maneira própria e especial de responder as influências exteriores que dependem de um modo necessário logo em cada momento de sua vida, destas mesmas condições externas combinadas com o estado fisio-psicológico do organismo” (FERRI, 2006, p.32).
A pesquisa deve demonstrar, portanto, que em muitas situações o indivíduo não age plenamente de acordo com as suas crenças morais. O hipnotismo é um exemplo que faz o indivíduo perder o controle e o livre arbítrio. As tipologias raciais ajudam também na observação das variações do temperamento e da maneira de pensar entre diferentes povos. A Estatística também mostra a influência do meio sobre o comportamento das pessoas. A esse respeito, Ferri avaliou que “a estatística só não é suficiente para provar a inexistência do livre arbítrio; serve de uma maneira incontestável a confirmá-la. De outra parte, essa liberdade moral uma vez admitida, haveria impossível e absurda toda ciência psicológica e social, o mesmo que a suposição do livre arbítrio nos átomos da matéria reduziria a nada toda ciência física e química” (FERRI, 2006, p. 25).
A metodologia da pesquisa valoriza a determinação do meio na definição do destino das espécies. Por exemplo: duas plantas da mesma espécie podem crescer com formas diferentes mesmo respondendo às mesmas causas ou condições ambientais.
A observação empírica nesse programa de pesquisa desenvolve um modelo pluricausal sobre a criminalidade evolutiva. Existem causas físicas (envolvendo ação-reação); psicológicas (incluindo sentimentos, aversões, percepções, etc.); sociais (influenciadas pelos fatores de agregação); e biológicas (correspondendo à luta pela sobrevivência).
Além de aceitar a possibilidade do desajuste familiar e social, esse programa de pesquisa denuncia também a existência de uma seletividade injusta que ocorre no sistema de justiça criminal. Desse modo, além de derrubar o mito da liberdade criminal, Ferri procurou combater o mito da isonomia penal.
Ferri demonstrou que a Justiça penal é desmoralizada no dia a dia porque não inclui dados científicos sobre a criminalidade e nesse sentido “assegura a impunidade ou a indulgência mais imprevista aos malfeitores perigosos, reservando todas as suas severidades tão desproporcionais como prejudiciais aos que são menos temíveis, aos delinquentes ocasionais” (2006, p. 39).
Em sua avaliação: 1- devem existir critérios científicos para se definir a periculosidade penal do indivíduo; 2- constata-se que os critérios burocráticos e ideológicos vigentes são mais rigorosos sobre os delitos de ligeira importância; 3- por outro lado, ocorrem “dulcificações extraordinárias” na pena para as manifestações temíveis de criminalidade atávica; 4- e de modo simplista o Direito Penal tem como finalidade apenas prender/punir o condenado.
Ferri enfatizou que a justiça penal deve se assentar “sobre o determinismo natural dos atos humanos e, portanto, sobre os dados da antropologia e sociologia criminal, e nesse caso, deve buscar critérios radicalmente diferentes e se desenvolver em conjunto adequado de instituições e mecanismos judiciais e administrativos (FERRI, 2006, p. 43)
A axiologia positivista desse programa de pesquisa adverte que “quanto se enganam aqueles que nos acusam de fazer do Estado um ídolo e de anular em seu proveito todos os direitos dos indivíduos. Na verdade, o que se busca é o “equilíbrio entre os direitos do indivíduo que comete um delito e os da sociedade dos homens honrados” (FERRI, 2006, p. 223). Também não é cabível a acusação de que “a escola positiva desconheça os direitos da pessoa humana; ou que procure “fazer do delinquente um instrumento em mãos da sociedade”; ou então que pretenda afirmar que “ o indivíduo está feito para o Estado e não o Estado para o indivíduo”.
Ferri (2006, p.224) reforçou a sua preocupação humanista da seguinte forma:
[...] a Idade Média viu unicamente o delinquente, e a escola clássica considera só ao Homem. Para conformar-se a verdade experimental se deverá considerar ao homem delinquente, equilibrando assim os direitos inegáveis do Homem, que ainda no delinquente subsistem, e os direitos não menos inegáveis da sociedade honrada que sofre a ameaça do delinquente [grifo nosso].
Segundo Ferri, além de impor deveres sobre os indivíduos, também “impomos ao ser coletivo obrigações consideráveis e permanentes em proveito dos indivíduos, ao dar a preeminência à prevenção, e dizer, ao melhoramento do direito social, sobre a repressão violenta e demasiado cômoda, que nós medimos ademais, sempre pelas regras da justiça social [...]” (FERRI, 2006, p. 224).
Como resultado desses posicionamentos, Ferri propôs um código de procedimentos sociais a ser utilizado no Poder Judiciário baseado em três princípios gerais:
1- é preciso restabelecer o equilíbrio dos direitos e das garantias entre o indivíduo que deve ser julgado e a sociedade que julga, obviar os exageros do individualismo introduzidas pela escola clássica; 2- o ofício do juiz penal não é tampouco comprovar o grau de responsabilidade moral do delinquente, senão uma vez provada sua culpabilidade material ou responsabilidade física, fixar a forma de preservação social mais apropriada ao processado, segundo a categoria antropológica a que pertença; 3- deve existir continuidade e solidariedade entre as diferentes funções práticas de defesa social desde a polícia judicial até à sentença e sua execução (FERRI, 2006, p. 229).
A teoria da complexidade desse programa de pesquisa informa que “a biologia e a sociologia em lugar de estar uma com respeito a outra em uma relação de sucessão ou de verdadeira e rigorosa independência, são, pelo contrário, concomitantes e paralelas, tendo em conta que a vida animal se manifesta desde seus começos em uma dupla série de organismos individuais e sociais” (FERRI, 2006, p. 45).
Ferri considerou que os seres vivos buscam defender a sua vida individual e reagem com agressividade ou violência física quando são ameaçados. Organizados em colônias, os indivíduos passam então a reagir em nome da coletividade. Chama atenção que quanto mais elevados ou sofisticadas se tornam as organizações animais, a defesa social deixa de ser uma iniciativa puramente individualizada para ser coordenada e até mesmo assumida primeiramente por um chefe ou pelo Estado.
Muitos mamíferos herbívoros vivem em sociedade e existe sempre um indivíduo que exerce alguma autoridade sobre os demais, que os guia ou defende: tal fato acontece entre os elefantes e os cavalos. Entre os humanos, o Estado passou a assumir o controle mais amplo da força, da violência e da resistência.
Ferri considerou que a defesa social tem a ver com a existência do organismo social. “A sociedade como organismo coletivo permanente sofre todos os dias agressões criminais contínuas, não interrompidas”. Diante dessa realidade, o Direito Penal segue uma direção não recomendada pela Criminologia positivista. Ou seja, não garante, e não promove a defesa social, pois não considera as condições concretas da “existência social” (FERRI, 2006, p. 67).
Além disso, Ferri advertiu que “o direito de castigar não pode ser assimilado ao de defesa”. Segundo Ferri, quando se fala de direito de defesa o alvo não é o Direito Penal, mas a sociedade. Ele concluiu nesse sentido que a defesa social não é o fundamento e a alma da justiça penal. E nem deve a defesa social ser confundida com a defesa do interesse de uma classe dominante.
Infelizmente, segundo Ferri, o Direito Penal em nome da sociedade reage contra o indivíduo que ora atenta ao interesse do Estado, outras vezes, incomoda o interesse da classe dominante.
Sendo mais crítico, Ferri afirmou que:
A última objeção contra a ideia de que a defesa social é a razão da função penal é afirmar que o ofício das leis penais não tem sido até aqui defender a sociedade, e dizer a quantos grupos a compõe, senão que tem sido proteger particularmente os interesses daqueles em cujo favor está constituído o poder político, ou o que é igual, da minoria (FERRI, 2006, p. 77).
Na visão desse programa de pesquisa, o Direito preserva mais a soberania do Estado e menos a existência livre da sociedade. Também o caráter punitivo das penas é considerado um dogma e alimenta o otimismo de que depois de cumprido cronologicamente o castigo o sujeito vai estar apto à convivência social. Outro aspecto social marcante do direito consiste na sanção legal que é o seu conteúdo necessário e que constitui o único critério positivo” (FERRI, 2006, p. 78).
A palavra justiça, em seu sentido positivo, expressa o conjunto e a ideia geral das sanções sociais que em todo tempo e lugar seja pelo costume ou pela lei, mas sempre com uma autoridade coativa, fixam e protegem as regras do direito determinadas pelas condições especiais da existência social (2006, p. 73).
Aprofundando a contribuição científica da Criminologia positivista, Ferri introduziu um novo conceito. Além de usar o conceito de criminalidade atávica (decorrente da herança maldita e criminosa dos antepassados), propõe a criminalidade evolutiva que tem fundamento psicológico-social (FERRI, 2006, p. 79). A primeira criminalidade “atávica” é antihumana; a segunda “criminalidade evolutiva” é antissocial (em sentido estrito).
Na sequência, a praticologia desse programa de pesquisa propõe uma política criminal e uma penalogia que leve a sério o enfrentamento da criminalidade evolutiva, sendo necessário superar a visão cronológica e burocrática da Justiça, e ao mesmo tempo rejeitar os privilégios distribuídos tradicionalmente à classe dominante.
Segundo Ferri:
No porvir da justiça penal, a ciência deve indicar e impor um predomínio sempre crescente, até chegar a ser exclusivo, dos interesses permanentes e comuns da coletividade inteira, reduzindo ao mínimo quando não eliminando completamente a parte que concerne aos interesses e privilégios de classe, e transformando assim a justiça penal de um mecanismo de dominação política que é, em uma clínica social preservadora (FERRI, 2006, p. 82).
Ou seja, Ferri desenvolveu o discurso da medicalização e socialização das penas. Consequentemente, não basta prender o indivíduo, é preciso tratar/cuidar e socializar o apenado, mas além disso é preciso reformar a sociedade e as instituições públicas usando o viés positivista.
A justiça penal não é só uma função de seleção; é melhor ou deve ser uma função clínica preservativa; e de outra parte, o ponto de vista puramente selecionado (darwinismo) deve ser completado tanto na ordem social como no biológico, pelo ponto de vista da adaptação ao meio (lamarckismo); de sorte que a influência do meio social na patogenia do delito deve ser de grande valor, quando se trata da sanção social contra o delito, da readaptação do condenado à vida social (FERRI, 2006, p. 101).
A proposta política apresentada por Ferri é que a Justiça Penal seja reformada, da seguinte forma:
Despojando-se em princípio de qualquer outro caráter que não seja o de uma função de preservação social, deve considerar o delito como um efeito de anomalias individuais e como um sintoma de patologia social, que exige necessariamente que se afaste dos indivíduos antissociais, isolando assim os elementos infecciosos e saneando o meio em que se desenvolvem os germes (FERRI, 2006, p. 102).
Ferri propôs não só reinserir o condenado na sociedade, mas também melhorar a qualidade do meio, pois a sociedade é a causa externa ou exógena da criminalidade. O meio deve ser saudável, inclusivo, justo, fraterno, civilizado, etc. Não pode ser um espaço criminógeno.
O projeto político é valorizar a função defensiva da sociedade não usando unicamente o castigo, mas sobretudo medidas sociais, morais e pedagógicas. “A palavra pena implica sempre um resto das ideias medievais de expiação e de retribuição como objeto final, e de dor ou de tortura como meio de consegui-lo, meio que acaba por chegar a ser seu fim mesmo (FERRI, 2006, p 103.).
Para mudar essa tradição penalista, Ferri afirmou que “de hoje em diante, pelo contrário, a função social deverá ter por fim exclusivo e por só efeito o bem-estar da coletividade, posto que uma das primeiras condições para trabalhar nela é o respeitar a personalidade humana”. Ele sugeriu deixar de lado os termos delito e pena, e usar “ofensas e defesa”; ou melhor ainda, “quando os dados científicos sobre os dados da delinquência tenham passado a consciência comum falar somente de enfermidade moral e clínica preservativa” (FERRI, 2006, p. 105).
Outro procedimento importante seria jogar fora a ideia de responsabilidade moral “que é impugnada pela psicologia positiva” (FERRI, 2006, p. 105). Em seu lugar foi sugerido o conceito de responsabilidade social. Ferri explicou que o delito será considerado na ciência positivista um fenômeno da “patologia individual e social” (FERRI, 2006, p 115). Dessa forma a modernização da Justiça deve adotar a premissa de que “o Homem é um ser social, que não vive só, isolado, e por isso é responsável pelas ações e efeitos resultados no mundo. “Isto equivale a dizer que todo Homem é sempre responsável de qualquer ação antijurídica realizada por ele, unicamente porque e entanto vive em sociedade” (FERRI, 2006, p. 120).
A praticologia desse programa de pesquisa lembra que existem diferentes formas de reação social contra as ações antissociais:
- Existem meios preventivos: inspirados nas regras de higiene. Estes meios, considerados de uma maneira abstrata poderiam não ser estimados como uma forma de sanção ou de reação, porque são anteriores aos feitos antissociais. Incluem medidas de policiamento
- Existem meios reparatórios: que visam reparar os danos causados à vítima e à sociedade
- Existem meios repressivos: que incluem prisão em colônias agrícolas, para adultos; para menores o internato; a multa; e a suspensão do exercício de um cargo ou profissão liberal. Segundo Ferri, deveriam ser estes meios: 1-temporários; 2- aplicados em delitos poucos graves; 3-e quando os delinquentes exigissem realmente pouco cuidado social.
- Finalmente, existem os meios eliminatórios: que são melhor aplicados nos crimes atávicos e nos casos de grave criminalidade envolvendo criminosos natos, loucos e habituais. Podem ser usadas: 1- a pena de morte; 2- o manicômio para os loucos criminosos; 3- e as colônias agrícolas.
Em seu programa de pesquisa Ferri propôs medidas direcionadas ao desencarceramento. Nas palavras do autor “[...] desembaraçar os Códigos, tribunais, e prisões, destes infinitamente pequenos do mundo criminal, suprimindo a detenção, [...] e abrindo um pouco as malas desta rede de proibições e de penas, que aprisiona despiedosamente aos pequenos contraventores e delinquentes, sendo demasiado elástica para os malfeitores perigosos” (FERRI, 2006, p. 255).
O modelo de prisão celular também deveria ser modificado, pois sua natureza isola e oprime a personalidade humana. Em seu lugar, deveriam ser criadas colônias agrícolas e industriais onde o apenado poderia apreender a se comportar na rotina da comunidade. Seria também necessário que a nova Justiça penal posivista adotasse os conhecimentos produzidos pelo ditame pericial, ou seja, “pela reunião e evolução metódicas das comprovações experimentais acerca das circunstâncias materiais do delito (provas físicas, químicas, mecânicas, caligráficas, profissionais, toxicológicas, etc.) e sobretudo pelas provas individuais e sociais relativas à pessoa do delinquente: provas antropológicas, psíquicas e psicopatológicas (FERRI, 2006, p. 268).
Ferri afirmou que acusadores públicos e advogados “[...] deveriam possuir o conhecimento técnico, não da história do direito, ou do direito romano, ou civil, se não, da biologia, da psicologia; em suma: das ciências naturais e sociais de onde há surgido na ciência nova da sociologia criminal” (FERRI, p. 277).
Finalmente, Ferri considerou que a liberação condicional e até definitiva do apenado deveria estar pautada nos conhecimentos fisio-psicológicos do apenado, no exame pessoal e não burocrático sobre documentos médicos e assistenciais. Seriam os exames decisivos para soltar ou não o apenado, independentemente de a pena judicial estar ou não finalmente cumprida, pois o mais importante é saber se o indivíduo está apto para retornar ao convívio social. Isso deveria ser preponderante e poderia inclusive se sobrepor ao tempo burocrático da execução estabelecida pelo Código Penal e Tribunal de Justiça. Essa medida de segurança social deveria ser preponderante. Nesse quadro modernista o juiz precisa se render aos dados científicos e estatísticos e graduar os delitos, segundo os graus da liberdade moral, devendo assim calcular uma infinidade de elementos e de fatores que se encontram fora do indivíduo; por exemplo: o juiz deve saber a temperatura, a latitude, e os metros cúbicos de ar respirável e disponíveis ao indivíduo no momento do crime (por exemplo, saber se ele vivia numa guarita miserável, ou se ele se amontoava dentro de um caminhão carregado de adultos e crianças; também deveria aprofundar o aspecto social e conhecer as condições lamentáveis do meio familiar e social; também precisaria fazer avaliação física, fisiológicas, psíquica e social periodicamente no condenado.
Por último, é preciso reconhecer na contextualização desse programa da pesquisa que existe uma diversidade de raças e de tipos sociais para os quais serão dedicadas aplicações punitivas e preventivas especiais. Nesse sentido, Ferri explicou que “as medidas de defesa social devem reduzir-se a reparação do dano [...] ou ao isolamento por tempo indeterminado em manicômios criminais ou em colônias agrícolas com uma disciplina diferente segundo as diversas categorias antropológicas dos isolados” (FERRI, 2006, p. 418).