I – O FATO
Observo da leitura do Blog de Chico Alves, no UOL, em 20 de janeiro de 2021:
“A nota do procurador-geral da República, Augusto Aras, em que ele diz que o estado de calamidade, decretado pelo presidente em março, é "a antessala do estado de defesa" e que eventuais crimes de Jair Bolsonaro são de competência do Poder Legislativo foi classificada como "incrível" pelo jurista Walter Maierovitch. "Aras finge que não sabe que os crimes são julgados pela Justiça, depois de provocada pelo Ministério Público, nas ações públicas incondicionadas", diz Maierovitch. "Já o impeachment é julgamento político, esse sim da competência do Legislativo". Na visão do jurista, essa "confusão" é usada pelo procurador-geral para não mover ações penais contra o presidente e deixar em banho-maria as investigações. "Está prevaricando, é caso para impeachment do próprio procurador-geral da República", acredita Maierovitch. Segundo ele, o início desse processo seria uma petição inicial ao Senado, baseada no artigo 52 da Constituição, e pode ser movida por qualquer cidadão.”
Impressiona o que disse Merval Pereira, em sua coluna para o Globo, em 24 de janeiro do corrente ano, “Bode expiatório”, quando acentuou:
“Tudo indica que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, será escolhido para bode expiatório da crise sanitária que o país passou a viver a partir do Amazonas, onde pessoas morreram por falta de oxigênio, o que qualifica como criminosa a inação dos governos estadual e federal. O procurador-geral da República, Augusto Aras, mais uma vez tira o presidente Bolsonaro da linha de tiro, colocando Pazuello como responsável direto pelo descalabro que tomou conta do país na atuação contra a COVID 19. É claro que o ministro Pazuello tem culpa na história, pois não deveria assumir a Saúde sem condições técnicas para tal, mas quem nomeou foi Bolsonaro, que deve ser culpado por essa escolha infeliz. Além disso, quem orientou Pazuello para dar força ao tratamento precoce da COVID 19, com ivermectina e cloroquina como a prioridade do Ministério da Saúde foi o presidente, e o ministro apenas seguiu na tese de que “um manda, e o outro obedece”.
Não cabe ao chefe do Parquet, “escalar”, “escolher”, um réu. Cabe agir dentro do que determina o princípio da obrigatoriedade que rege as ações da Instituição ministerial.
II – O ARTIGO 40 DA LEI 1.079/50
Examina-se, pois, a possibilidade de impedimento do procurador-geral da República.
Determina o artigo 52, XI, da Constituição Federal:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
XI - aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração, de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato;
É uma importante inovação da Constituição de 1988 que consiste na criação de um sistema de controle da destituição do procurador-geral da República, agora com mandato para o exercício do cargo.
Trata-se de crime de responsabilidade política que encontra a leitura do artigo 40 e 40--A da Lei nº 1.079/50:
Art. 40. São crimes de responsabilidade do Procurador Geral da República:
1 - emitir parecer, quando, por lei, seja suspeito na causa;
2 - recusar-se a prática de ato que lhe incumba;
3 - ser patentemente desidioso no cumprimento de suas atribuições;
4 - proceder de modo incompatível com a dignidade e o decôro do cargo.
Art. 40-A. Constituem, também, crimes de responsabilidade do Procurador-Geral da República, ou de seu substituto quando no exercício da chefia do Ministério Público da União, as condutas previstas no art. 10 desta Lei, quando por eles ordenadas ou praticadas. (Incluído pela Lei nº 10.028)
Sendo assim o procurador-geral da República não pode recursar-se a ajuizar ação penal pública quando o texto da lei o obrigue. Não se trate de conveniência ou oportunidade, mas de obrigatoriedade. Isso porque, como aduziu Hugo Nigro Mazzilli (O inquérito civil, pág. 102) estará a ação do membro ministerial iluminada pelo princípio da obrigatoriedade, ou seja, identificando uma lesão para cujo combate está a Instituição legitimada, surge o dever de agir.
Desta forma não se admite que o Ministério Público, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha o dever de agir, mesmo assim se recuse a fazê-lo: nesse sentido, sua ação é um dever. No caso da investigação penal, da ação penal pública, embora tenha o membro do Parquet ampla liberdade funcional, sua atuação é estreitamente regrada, já que, identificando uma hipótese em que a lei lhe imponha a atuação, não pode abster-se do dever de agir.
Se não o faz, incide nos crimes previstos no artigo 40 da Lei de impeachment, em especial, nos incisos II, III, IV.
III – A COMPETÊNCIA DO SENADO PARA TAL
Pela proposta da Comissão Afonso Arinos, dita destituição seria de iniciativa do presidente da República, depois de a ela anuir o Senado pelo Anteprojeto Conamp, a destituição só ocorreria em casos de abuso de poder o omissão grave no cumprimento dos deveres do cargo, por deliberação do Colégio Superior e pelo voto mínimo de dois termos.
Ficou a redação dada pelo artigo 52, XI, da Constituição Federal cuja interpretação deve ser dada em conjunto com o artigo 128, § 1º, da Constituição Federal.
Há o entendimento entre os estudiosos que embora melhor a solução da Carta de Curitiba, por pretender afastar ingerências políticas externas na destituição desse importante órgão do Ministério Público, assim buscando conferir maior independência à Instituição, na verdade, o texto aprovado pela Constituinte conferiu uma solução intermediária: permitiu a destituição do procurador-geral da República, por iniciativa do presidente da República, desde que a autorize a maioria absoluta do Senado Federal, por votação secreta.
Observe-se a leitura do artigo 128, § 2º, da Constituição Federal:
§ 2º A destituição do Procurador-Geral da República, por iniciativa do Presidente da República, deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta do Senado Federal.
Na lição do ministro Sepúlveda Pertence, “eis aí inédito mecanismo de salvaguarda da independência externa do Ministério Público, em face dos Poderes do Estado, mediante a segurança no cargo do seu chefe” (STF, MS 21.239, RTJ, 147:138).
A Lei Complementar nº 75/93 estatui que a votação para destituir o procurador-geral da República deve ser secreta (artigo 25, parágrafo único).
Vem a pergunta: o que quer dizer a expressão “compete privativamente” da parte do Senado para tal?
A competência privativa é aquela não exclusiva. No artigo 84 da CF, por exemplo, arrola a matéria de competência privativa do presidente da República, na medida em que o seu parágrafo único permite delegar algumas atribuições ali arroladas. Mas a Constituição não é rigorosamente técnica neste assunto. Veja-se que, por exemplo, nos artigos 51 e 52 traz matérias de competência exclusiva, respectivamente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, mas diz que se trata de competência privativa. Não é deste último tipo, porque são atribuições indelegáveis.
Portanto estamos diante do artigo 52, XI, da CF, dentro de um caso de competência exclusiva e não privativa, em que pese o texto da Constituição falar em “compete privativamente”.
IV – A NATUREZA JURÍDICA DO IMPEACHMENT E A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
Discute-se sobre a natureza jurídica do impeachment.
Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração “comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ......, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções”.
Como disse ainda Paulo Brossard (O impeachment, terceira edição, pág. 585), “não é preciso grande esforço exegético para verificar que, na amplitude da norma legal – há uma natureza política no impeachment.
A lei estabelecerá as normas de processo e julgamento (Constituição Federal, art. 85, par. único). Essas normas estão na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande parte, pela Constituição Federal de 1988 (MS nº 21.564-DF).
Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.
Para o ministro Brossard, dado que impropriamente chamados crimes de responsabilidade, enquanto infrações políticas, não são crimes, mas ilícitos de natureza política, como política é a pena a eles cominada.
Em posição que merece ser considerada como atual, Paulino Ignácio Jacques (Curso de direito constitucional, 7ª edição, Rio de Janeiro, pág. 254) concluiu que vigorava em tema de crime de responsabilidade, impeachment, a tese de que, se a causa do processo não deixa de ser puramente política, o meio – o processo e julgamento – e o fim – a pena – são tipicamente criminais, uma vez que o Presidente da República sofre a imposição de uma pena (perda do cargo, com incapacidade para exercer outro, ou sem ela). Adotamos a tese do impeachment europeu, um processo misto (político-criminal), como notaram Duguit, Esmein, Bryce e Tocqueville, dentre outros, ao passo que o impeachment americano só inflige pena administrativa, pois há um processo meramente político.
Pontes de Miranda (Questões Forenses, volume V, páginas 57 a 59) disse: “Nâo se pode julgar politicamente, porque o sistema jurídico brasileiro só se admite condenação por crime que a lei federal aponte: o “impeachment”, propriamente dito, não se introduzir no direito constitucional brasileiro, que neste ponto segue a tradição do Império, impermeável a influxo estrangeiro, razão por que a consulta a livros americanos, franceses, alemães e italianos, ou de outros países, é impertinente”; “O Brasil não o tem (julgamento político); somente tem o julgamento fundado, isto é, por crimes de responsabilidade. A enxertia americana seria contra a tradição, mais que secular, do direito escrito”.
A Constituição vigente, no artigo 52, XI, embora admita a “exoneração de ofício” do procurador geral da República, não o deixa a mercê do presidente da República, ficando a exoneração a cargo do Senado Federal, em caráter privativo, com dois requisitos: o da maioria absoluta e o voto secreto dos parlamentares presentes. Pode ser indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado Federal, tendo este, não o Executivo, o poder-dever de exonera-lo, conforme os preceitos constitucionais, a maioria absoluta e o voto secreto.
Como disse J. Crettela Jr. (Comentários à Constituição de 1988, volume V, 2ª edição, pág. 2.610), o ocupante do cargo de procurador-geral da República, embora não estável, nem vitalício, tem todas as condições para desempenhar com independência suas funções, deixando de ficar sob a tutela do presidente da República.
O procurador geral da República não é agente do governo.
Qualquer cidadão poderá apresentar o pedido de impeachment, mas reconheçamos que as decisões do Senado são irrecorríveis, irreversíveis, irrevogáveis de definitivas, em matéria de impeachment. Essa a lição de Story, Tiffany (A Treatise on Government, and Constitutional law, 1867, § 310 e 533), Dwight, Finley, Rui Barbosa (Comentários à Constituição Federal Brasileira, Coligidos e Ordenados por Homero Pires, 1932/1934, volume III, pág. 176), Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição Brasileira, 5ª edição, 1929, nota 191, pág. 643) dentre outros.
Já se entendeu, segundo Paulo Brossard (O impeachment, 3ª edição, pág. 152) que da decisão do Senado não cabe recurso algum. Ora, no julgamento do MS 20.941, o Supremo Tribunal Federal conheceu o writ que visava rever ato do Legislativo em sede impeachment.
Aguardemos os próximos passos.