RESUMO
A doutrina e a jurisprudência muito discutem acerca da possibilidade de inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego brasileiros e, em caso positivo, de quais seriam os requisitos necessários à validade deste tipo de cláusula.
A cláusula de não concorrência, muito conhecida também como quarentena, tem a finalidade de impedir que o empregado que tenha exercido atividades que proporcionem conhecimentos estratégicos e sigilosos da empresa exerça, por conta própria ou alheia, atividade concorrencial após o encerramento do contrato de emprego.
Ocorre que este tipo de cláusula acaba pondo em conflito dois direitos fundamentais: a liberdade de trabalho do empregado e a propriedade do empregador.
O ordenamento jurídico brasileiro é omisso acerca da inserção deste tipo de cláusula nos pactos laborais, restando à doutrina e jurisprudência a busca pela melhor solução a este conflito por meio: das regras de hermenêutica, de formas de solução de colisão entre direitos fundamentais, das normas gerais do direito brasileiro e da análise sistemática e teleológica do ordenamento jurídico nacional.
Neste conflito estão ainda envolvidas diversas outras garantias constitucionais.
Ao lado do direito de propriedade do empregador, somam-se as garantidas: da livre iniciativa, da livre concorrência e própria propriedade privada.
Já ao direito de liberdade de trabalho do empregado agregam-se às garantias: do valor social do trabalho, do trabalho como direito social capaz de prover a existência digna, da valorização do trabalho humano e da busca do pleno emprego.
Atualmente a doutrina e jurisprudência majoritária têm solucionado essa problemática com base: na ausência de proibição legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro sobre a pactuação deste tipo de cláusula, no princípio da proporcionalidade, na responsabilidade pós contratual e no direito comparado.
Assim, seria possível a inserção de cláusula de não concorrência em contrato de emprego, mas desde que observados uma série de requisitos, em especial: não impedir o empregado de trabalhar, mas apenas de exercer atividade determinada que implique em concorrência à empresa e risco de prejuízos; limitar a área geográfica na qual o trabalhador ficará restrito e o período de tempo no qual vigorará a limitação; prever o pagamento de uma indenização compensatória ao empregado razoável e adequada à restrição sofrida; e, atender ao interesse social.
Palavras-chaves: Contrato de emprego. Concorrência. Cláusula de não concorrência. Quarentena. Liberdade de trabalho. Direito de propriedade.
ABSTRACT
The doctrine and jurisprudence thoroughly discuss the insertion possibility of the non-competition clause into Brazilian employment contracts and, if implemented, which would be the necessary requirements for the validity of this type of clause.
The non-competition clause, also known as quarantine, has the purpose of averting that an employee whom has exerted activities that provide company’s strategic or confidential knowledge practice, on their own or for others, competitive activity after the employment contract’s termination.
It happens that this type of clause puts in conflict two fundamental rights: the work freedom of an employee and the employer’s property rights.
The Brazilian law is silent about the insertion of these types of clauses in the labor acts, leaving to the doctrine and jurisprudence a search for a better solution to this conflict through: the hermeneutic rules, collision among fundamental rights, from the Brazilian law general norms and the systematic and teleological analysis of the national laws.
Moreover, many other constitutional guarantees are involved in this conflict.
Together with the employer’s property rights, subjoins the guaranteed: free enterprise, free competition and the private property itself.
In another hand, to the employee’s freedom of work the following guarantees are aggregated: the labor social value, labor as the social right capable of providing dignified existence, the appreciation of human labor and the search for plenary employment.
Currently the doctrine and majority jurisprudence have solved this problematic based upon: absence of express legal prohibition in the Brazilian law regarding the pact of this type of clause, in the proportionality principle, in post contractual responsibility and comparative law.
Thereby, it would be possible to insert the non-competition clause in a labor contract, but only if observed a series of requirements, specially: not precluding the employee of working, but only to exert determined activities that imply in competition to the company and risks of financial loss; limit the geographical area in which the employee will be restricted and the length of this limitation; previse a compensatory indemnity payment to the employee reasonable and adequate to the imposed restrictions; and, attend to social interest.
Keywords: employment contracts. Competition. Non-competition clause. Quarantine. Work freedom. Property right
ABREVIATURAS E SIGLAS
a.C. = antes de Cristo;
CC = Código Civil;
CCo = Código Comercial;
CF = Constituição Federal;
CLT = Consolidação das Leis do Trabalho;
coord. = coordenador;
CP = Código Penal;
CTPS = Carteira de Trabalho e Previdência Social;
CUP = Convenção da União de Paris;
ed. = edição;
LINDB = Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro;
n. = número;
OIT = Organização Internacional do Trabalho;
p. = página;
RE = recurso extraordinário;
RO – recurso ordinário;
trad. = tradução;
v. = volume.
INTRODUÇÃO
A presente monografia é o resultado da pesquisa, análise e estudo acerca da cláusula de não concorrência inserida em contrato de emprego à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
O tema gera muitas discussões na doutrina e jurisprudência em decorrência da dúvida sobre a possibilidade ou não da celebração deste tipo de cláusula e, ainda, se possível, sobre quais seriam os requisitos de validade.
Esta discussão ocorre, principalmente, em decorrência: da inexistência de previsão legal sobre a celebração de cláusula de não concorrência entre empregado e empregador; e, por esta cláusula implicar na colisão entre dois direitos fundamentais, o direito à liberdade de trabalho do empregado e o direito de propriedade do empregador.
Foi exatamente por isso que o tema foi escolhido como objeto deste estudo.
Buscou-se neste trabalho apresentar essa discussão, analisando-se os elementos nela envolvidos sempre em conformidade com o direito brasileiro e com o objetivo de responder às dúvidas: se a proteção ofertada pela cláusula de não concorrência ao direito de propriedade do empregador (seus bens e interesses) deve prevalecer sobre a liberdade de trabalho do empregado; se sim, o porquê; com base em quais fundamentos jurídicos; e, quais os seus critérios e limites de validade.
Assim, primeiramente, foi realizado o estudo acerca: da origem da cláusula de não concorrência; do que ela é realmente; de qual a sua distinção e relação com a concorrência, livre concorrência e concorrência desleal; e, de como ela se insere no ordenamento jurídico brasileiro.
Após, foi feita análise sobre o direito de propriedade e seus limites jurídicos, bem como do direito de propriedade do empregador enquanto empresário e de suas limitações impostas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Em seguida, foi estudado o direito à liberdade de trabalho desde sua origem, inclusive, sua previsão e seu tratamento no ordenamento jurídico brasileiro.
Além disso, analisou-se o contrato de emprego: seu conceito, sua função social e ainda seus efeitos, em especial, as obrigações dele inerentes como a boa-fé, a lealdade, a confiança, a obediência e o sigilo.
Neste passo, foi apresentada a grande problemática existente no direito brasileiro quanto à inserção da cláusula de não concorrência em contratos de emprego.
Buscou-se demonstrar os motivos jurídicos pelos quais a cláusula de não concorrência pode ser inserida em contratos de emprego brasileiros, bem como apresentar os entendimentos atuais, majoritário e minoritário, tanto da doutrina quanto da jurisprudência nacional, acerca da legalidade e validade deste tipo de cláusula, apontando o embasamento jurídico-legal adotado por cada uma.
Por fim, foram objeto de estudo as consequências ocasionadas pelo descumprimento da cláusula de não concorrência tanto para o ex-empregador quanto para o ex-empregado e novo empregador de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.
Foi utilizado para elaboração do trabalho o método científico, com pesquisa doutrinária e jurisprudencial, além da realização de consultas a artigos sobre o tema desenvolvido em revistas jurídicas e sites da internet. Para a pesquisa jurisprudencial foram utilizados os sites oficiais dos Tribunais Trabalhistas, bem como sites específicos de pesquisa jurisprudencial.
O trabalho foi ainda desenvolvido na ordem cronológica em que é apresentado a fim de possibilitar ao leitor a melhor compreensão e conclusão acerca da questão central que é abordada, a legalidade e validade da inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego brasileiros, diante da omissão legal sobre o tema e o conflito que envolve essa discussão, entre o direito de propriedade do empregador e o direito à liberdade de trabalho do empregado.
A importância deste trabalho monográfico e principal objetivo é demonstrar o que é a cláusula de não concorrência que costuma ser inserida em contratos de emprego e como esse tipo de cláusula se enquadra no ordenamento jurídico brasileiro, em vista da possível violação ao direito fundamental à liberdade de trabalho e demais garantias a ela ligadas.
SUMÁRIO
1 CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA 15
1.1 Panorama histórico internacional 15
1.2 Panorama histórico nacional 21
1.3 Concorrência, livre concorrência e concorrência desleal: conceitos 28
1.4 Cláusula de não concorrência: conceito 34
1.5 Legislação brasileira sobre cláusula de não concorrência 38
2 DIREITO DE PROPRIEDADE 41
2.1 Panorama histórico internacional 41
2.2 Panorama histórico nacional 47
2.3 Conceito 51
2.4 Legislação brasileira sobre direito de propriedade 54
2.5 Limites do direito de propriedade 55
2.6 O direito de propriedade do empregador e sua função social 58
3 LIBERDADE DE TRABALHO 61
3.1 Panorama histórico internacional 61
3.2 Panorama histórico nacional 64
3.3 Conceito 67
3.4 Legislação brasileira sobre a liberdade de trabalho 68
4 CONTRATO DE EMPREGO 71
4.1 Conceito 71
4.2 Efeitos do contrato de emprego 72
4.2.1 Boa-fé contratual 74
4.2.2 Lealdade ou fidelidade contratual 76
4.2.3 Confiança contratual 78
4.2.4 Obediência contratual 79
4.2.5 Sigilo contratual 80
4.3 Função social do contrato 81
5 INSERÇÃO DA CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE EMPREGO BRASILEIRO 83
5.1 Colisão entre direitos fundamentais 83
5.1.1 Aplicação do princípio da proporcionalidade 87
5.1.2 Análise do ordenamento jurídico nacional e aplicação de normas gerais do direito brasileiro 92
5.1.3 Aplicação do direito comparado 98
5.2 Requisitos de validade da cláusula de não concorrência 107
5.3 Posicionamento doutrinário e jurisprudencial sobre a inserção de cláusula de não concorrência em contrato de emprego 123
6 DESCUMPRIMENTO DA CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA 136
CONCLUSÃO 141
ANEXO 147
REFERÊNCIAS 151
1 CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA
1.1 Panorama histórico internacional
A cláusula de não concorrência surge em virtude da própria concorrência, e, esta, assim como o próprio Direito do Trabalho, tem origem com o desenvolvimento do sistema de produção industrializado, eclodido no século XVIII, com a Revolução Industrial. Anteriormente a isto, a competição industrial praticamente não existia.
Para Maurício Godinho Delgado[1]:
O Direito do Trabalho é, pois, produto cultural do século XIX e das transformações econômico-sociais e políticas ali vivenciadas. Transformações todas que colocam a relação de trabalho subordinado como núcleo motor do processo produtivo característico daquela sociedade. Em fins do século XVIII e durante o curso do século XIX é que se maturaram, na Europa e Estados Unidos, todas as condições fundamentais de formação do trabalho livre mas subordinado e de concentração proletária, que propiciaram a emergência do Direito do Trabalho.
Na Antiguidade, na Grécia e em Roma, o trabalho realizado por seres humanos era tido como coisa, o que permitia a escravidão[2]. Esta situação se justifica em decorrência das condições econômicas da época e da ausência da noção de liberdade.
Portanto, o escravo era objeto do direito de propriedade. Obviamente não prestava consentimento contratual, tampouco adquiria direitos e contraia obrigações. Inexistia a figura dos dois sujeitos de direito que compõe o contrato de trabalho: empregado e empregador, eixo do Direito do Trabalho.
De forma paralela, porém em menor quantidade, existiam também pessoas livres que exerciam atividades de forma autônoma como artífices e artesãos.
Em decorrência do crescimento populacional e da complexidade das relações sociais, entre os séculos VII e VI a. C., muitos senhores passaram a arrendar[3] escravos de outros senhores e, com o tempo, as pessoas livres passaram a arrendar os seus próprios serviços.
Esta situação, segundo Alice Monteiro de Barros[4], era regida pela locação de coisas e denominada de locatio conductio. Uma de suas espécies, a locatio conductio operarum[5], segundo ela, é a antecessora do contrato de trabalho.
Já no feudalismo, ocorrido entre os séculos V e XI, o escravo foi substituído pelo servo. Possuía a natureza de pessoa reconhecida, mas não era absolutamente livre, pois, em troca de proteção militar e política de seu senhor feudal, estava preso ao trabalho nas terras dele.
Com o início do século X, novas necessidades surgiram e os moradores dos feudos começaram a obter mercadorias de feiras e mercados localizados fora dos feudos, às margens de rios, lagos e mares. Estes locais formavam comunas[6] e eram pontos de interesse de mercadores e artesãos e, com o tempo, evoluíram para as corporações de ofícios[7].
Estas relações não eram ajustadas por meio contratual. As corporações constituíam normas reguladoras que se aplicavam a todos os seus membros, tais como: mestres, aprendizes e operários.
Nos séculos XVII e XVIII diversos fatores desencadearam o fim deste regime e o desenvolvimento do liberal, como: abusos praticados por mestres nas corporações de ofício e tendências oligárquicas; e, a impossibilidade de adaptação do trabalho que era ali realizado à nova situação socioeconômica, em especial, diante da inovação tecnológica desencadeada pela Revolução Industrial.
Regiane Teresinha de Mello João[8] explica que:
A supressão das corporações de ofício decorre de sua incompatibilidade com o pensamento liberal que norteava a Revolução Francesa, que preconizava a ampla liberdade do indivíduo de se estabelecer e trabalhar, consistindo o primeiro marco na história do desenvolvimento da concorrência.
A Revolução Industrial exigia grande quantidade de mão-de-obra para os maquinários, ocasionando migração de trabalhadores rurais para as áreas urbanas e, consequentemente, superlotação das cidades.
Além disso, a utilização de máquinas fez com que a produção aumentasse demasiadamente, implicando na necessidade de se dar vazão aos produtos.
Isto ocasionou o desenvolvimento das ferrovias, preciso para o transporte da larga produção, e o uso da mão-de-obra masculina para esta finalidade.
Não bastasse, tal situação deu origem a concorrência desregrada e a consequente redução de preços.
E, todo este contexto, acabou por exigir que o custo da produção fosse reavaliado para que o lucro se mantivesse.
Como a matéria-prima tem custo mínimo, o barateamento da produção foi obtido principalmente pela profunda redução de salários; grande aumento da jornada de trabalho; utilização da mão de obra de mulheres e crianças; e, precariedade das condições de trabalho.
O proletariado urbano era muito explorado e acabava por viver em situações subumanas nas cidades.
Passaram, então, a surgir conflitos entre: patrões, de mentalidade absolutamente mercantil; e, operários, que reivindicavam melhores condições de trabalho.
Diante desta realidade, patrões e operários passaram a criar regramentos entre si, nítidos acordos e convenções coletivas, que apaziguavam a situação por certo período.
Tendo em vista a ideologia do liberalismo vivenciado na época o Estado não intervinha nesta situação. As condições de trabalho deviam resultar de livre estipulação pelas partes, operários e patrões.
Catia Guimarães Raposo Novo[9] explica que o Capitalismo sob a forma de concorrência liberal estava baseado em dois princípios: a liberdade de empresa e a liberdade de concorrência. Estes dois princípios, por seu turno, baseavam-se na liberdade individual, que possui como valor supremo da ordem econômica e social a iniciativa privada.
Por este motivo, o Estado não deveria intervir. A livre iniciativa na busca dos interesses dos indivíduos se materializava por meio de uma concorrência que deveria ser a mais perfeita possível.
Somente depois de tempos o Estado passou a interferir e criar leis que asseguravam direitos mínimos aos operários. Alice Monteiro de Barros[10] aponta que “as causas originárias do intervencionismo encontram-se no aparecimento das massas, no surgimento de uma consciência coletiva e de um sentimento de solidariedade”.
Neste período passou-se a perceber que a criação, de inventores ou escritores, não se exauria com a sua materialização ou execução. A criação poderia ir muito além, ser reproduzida por diversas vezes e implicar em uma forma de lucratividade.
Em decorrência disto, em 1710 é criada a primeira lei inglesa sobre direitos autorais e, em 1974, surge, na Itália, a primeira lei sobre marcas e patentes que se tem notícia.
Em 1883 e 1886, foram firmadas as Convenções de Paris e de Berna respectivamente. A primeira regulando a proteção da propriedade industrial[11] e a segunda, as obras artísticas e literárias.
Portanto, o estabelecimento da indústria fez com que o conhecimento se tornasse algo de grande relevância. Ter informação passou a ser uma de suas exigências e o invento algo de enorme importância econômica.
Em verdade, a relevância do conhecimento passa a ser assim, tão grande, principalmente em decorrência da percepção de que ele permite a realização de novas pesquisas e a continuidade do desenvolvimento.
Regiane Teresinha de Mello João[12] aponta que:
Nos dias de hoje testemunhamos outra revolução, cujos efeitos ultrapassam os limites do sistema produtivo.
(...)
A sociedade pós-industrial, como muitos a denominam, introduziu avanços tecnológicos cujos efeitos abrangem praticamente todos os ramos do conhecimento humano. Essa nova forma de organização produtiva funda-se, primordialmente, na propriedade intelectual.
As novas relações de trabalho ultrapassam o modelo taylorista de comando, exigindo do empregado uma inserção maior nos objetivos da empresa, maior abrangência de conhecimento do processo produtivo, e o domínio de artefatos tecnológicos.
Neste cenário surge a preocupação: com o uso, pelos operários, do conhecimento adquirido durante a execução dos serviços para os quais foram contratados, principalmente após o término da relação de trabalho; e, com a possibilidade de este conhecimento ser utilizado em benefício do concorrente.
É desta preocupação que surge a cláusula de não concorrência.
Nas palavras de Márcio Granconato[13]:
Nas sociedades menos desenvolvidas, o conhecimento não era tão relevante, pois as formas de produção eram simples e conhecidas por todos. O mesmo não se passa nas sociedades industrial e pós-moderna, em que o conhecimento ganha importância econômica, podendo ser o diferencial entre o sucesso e a ruína de um negócio.
Esse assunto, então, passa a ser uma questão relevante para o Direito do Trabalho, interessando para o empregador o uso que seu empregado faz do conhecimento obtido durante o contrato e depois de seu término. Surge, a partir daí, a ideia dos pactos de não concorrência (...).
Segundo Cibele Andrade Pessoa de Freitas[14] a cláusula de não concorrência originou-se no direito norte-americano e passou a ser disseminada e aplicada em praticamente todo o mundo, em especial, para os empregados detentores de conhecimentos estratégicos da empresa.
1.2 Panorama histórico nacional
No Brasil, até 1888, o trabalho prevalecente era o escravo. A princípio, dos indígenas e, posteriormente, dos negros. Portanto, pelos motivos já abordados acima, até então era difícil se falar em concorrência e em Direito do Trabalho.
Em 1807, a vinda de Dom João VI para o Brasil implicou em desenvolvimento econômico e cultural em decorrência da abertura dos portos e da chegada de diversos estrangeiros. Tal situação acabou por permitir o surgimento de relações de trabalho e de concorrência.
No entanto, estas duas figuras apareceram neste período de forma muito singela, tendo em vista que ainda predominava o trabalho escravo.
A Constituição do Império, de 1824, segundo Alice Monteiro de Barros[15], no inciso XXIV de seu artigo 179, permitia o trabalho e coibia sua proibição desde que não fosse contrário aos costumes públicos, à segurança e a saúde dos cidadãos. E, ainda, no inciso seguinte, previa a extinção das corporações de ofício.
Em que pese a aparente contradição entre estes dois incisos, tendo em vista que as corporações de ofício não deixam de ser uma forma de manifestação de trabalho existente na época, a autora[16] aponta que esta Constituição tinha como objetivo assegurar a liberdade de trabalho.
A extinção das corporações de ofício foi reflexo da Revolução Francesa que atingiu todo o mundo na época, já que esta forma de manifestação de trabalho era conflitante com a liberdade de trabalho e a concorrência que se passou a objetivar.
Para Catia Guimarães Raposo Novo[17]:
(...) a Revolução Francesa e a proibição das corporações de ofício na Europa foram os primeiros marcos históricos do desenvolvimento da “concorrência”, e, consequentemente, a Constituição de 1824 traduz o primeiro marco no Brasil acerca da “concorrência”.
Em 1850 foi promulgado o Código Comercial que regulamentava, segundo Regiane Teresinha de Mello João[18] explica, a relação de prestação de serviço de comerciantes (preponentes) e auxiliares de comércio (prepostos).
Segundo a autora[19] dentre os direitos assegurados aos prepostos haviam alguns muito similares aos existentes hoje aos empregados, como: “aviso prévio em caso de rescisão do contrato por prazo indeterminado”, rol de faltas graves (justas causas) que implicavam no rompimento do contrato por ambas as partes e, dentre estas, a “negociação por conta própria ou alheia sem permissão do preponente”.
Por meio da Lei Áurea, em 1888 foi abolida a escravidão o que acabou por impulsionar o surgimento da relação de trabalho e, consequentemente, da concorrência.
Para Maurício Godinho Delgado[20] este é “o primeiro período significativo na evolução do Direito do Trabalho no Brasil”.
Durante este período a relação de trabalho e a concorrência eram vistas de forma mais evidente na agricultura cafeeira de São Paulo e, em especial, na capital paulista e no Rio de Janeiro, locais que estavam em processo de industrialização.
A mão-de-obra, em regra, era de imigrantes europeus que não aceitavam a exploração e más condições de trabalho a que eram submetidos, já que traziam consigo uma mentalidade mais avançada pelo fato de seus países de origem terem sido o berço da Revolução Industrial e estarem muito mais há frente em questões trabalhistas.
Nesta época, a preocupação com a proteção ao conhecimento e, por conseguinte, à criação e ao invento, assim como em todo o mundo, ia se tornando cada vez maior.
Em 1875 entra em vigor no país a primeira lei sobre marcas e patentes. Logo em seguida, em 1882 é editada uma nova lei sobre o tema e, em 1887 e 1904 foram editadas, ainda, outras leis versando sobre marcas e patentes.
Em 1891, segundo Alice Monteiro de Barros[21], foi promulgada nova Constituição que assegurava tanto a brasileiros como estrangeiros residentes no país inviolabilidade à liberdade, à segurança individual e, ainda, à propriedade.
E, durante a vigência desta Constituição, em 1916, entrou em vigor o Código Civil revogado apenas em 2002. Este Código Civil possuía regulamentações acerca da prestação de serviços que se aplicavam a todas as atividades profissionais, com exceção da empreitada, e, ainda, assim como o Código Comercial da época, previa penas duras para quem aliciava trabalhadores alheios.
Com efeito, Alice Monteiro de Barros[22] aponta que a Constituição de 1934 foi pioneira em tratar da ordem econômica e social e garantir o amparo da produção e o estabelecimento de condições de trabalho nas zonas rurais e urbanas tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos nacionais.
Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[23] explicam que esta constituição se preocupou com o desenvolvimento da economia popular e, por isso, passa a proteger a concorrência entre as empresas.
A partir de então, todas as constituições posteriores incluíam em seu corpo um capítulo referente à ordem econômica e social regulando a intervenção do Estado na economia e nos Direitos Trabalhistas.
Neste diapasão, Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[24] ressaltam que:
Embora as constituições dos séculos XVIII e XIX também contivessem preceitos de conteúdo econômico, como a garantia da propriedade ou da liberdade de indústria, o debate sobre a constituição econômica é sobretudo um debate do século XX. As constituições do século XX não representam mais a composição pacífica do que já existia, mas lidam com conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo de busca de realização de seus conteúdos, de compromisso abeto de renovação democrática. Não há mais constituições monolíticas, homogêneas, mas sínteses de conteúdos concorrentes dentro do quadro de um compromisso deliberadamente pluralista. A constituição é vista como um projeto que se expande para todas as relações sociais. O conflito é incorporado aos textos constitucionais, que não parecem representar apenas as concepções da classe dominante, pelo contrário, tornam-se um espaço onde ocorre a disputa político-jurídica.
Já a Constituição de 1937, segundo Alice Monteiro de Barros[25], tratava do trabalho como dever social; garantia a todos os indivíduos o direito de subsistir por meio de seu trabalho digno; e, ainda, determinava que o Estado assegurasse a proteção ao trabalho honesto.
Não obstante, segundo Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[26] nesta Carta Política foi determinado que o Estado deveria intervir na economia para “cuidar dos interesses da nação” e, ainda, pretendeu-se desenvolver a economia popular ao equiparar os crimes contra ela a crimes contra o próprio Estado.
Estes autores[27] ressaltam que no Brasil “o direito concorrencial não nasce como consequência do liberalismo econômico, mas como repressão ao abuso do poder econômico, buscando proteger a população geral e o consumidor, em particular”.
Durante sua vigência e após a criação da própria Justiça do Trabalho, em 1943, foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho, em vigor até os dias atuais.
Na alínea c de seu artigo 482, prevê como motivo para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador por justa causa a “negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço”.
Já na alínea g deste mesmo artigo 482, prevê também como motivo para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador por justa causa a “violação de segredo de empresa”.
Explica Alice Monteiro de Barros[28] que a Constituição de 1946 retomou as diretrizes democráticas da Constituição de 1934 e garantia aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade à vida, liberdade, segurança individual e à própria propriedade.
Assegurava também, de forma singela, no parágrafo único de seu artigo 174, a pesquisa científica ao determinar que a lei promovesse a criação de institutos de pesquisas.
Garantia ainda que a ordem econômica deveria ser organizada em conformidade com os princípios da justiça social e conciliar a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano, obrigação social que deveria ser garantida a todos, juntamente com a existência digna.
Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[29] apontam que esta Constituição consagrou a intervenção do Estado na economia como maneira de corrigir desequilíbrios ocasionados pelo mercado e como forma alternativa de fomentar os setores que não eram interessantes à iniciativa privada.
Segundo estes autores[30], as Cartas Políticas de 1967 e 1969, do período de ditadura militar, previam o desenvolvimento como finalidade da ordem econômica constitucional, e, a repressão ao abuso do poder econômico foi elevada a princípio da ordem econômica e social. No entanto, a principal finalidade na época era aperfeiçoar as condições de funcionamento e expansão da empresa privada nacional e internacional.
Especificamente a Constituição de 1967 tratou de forma bem simples da pesquisa, no parágrafo único de seu artigo 179, ao garantir que o Poder Público a incentivaria juntamente com o ensino científico e tecnológico.
Em 1973 foi criada a lei n. 5.988 que assegurava que as obras produzidas pertenciam ao seu produtor.
Com efeito, em 1883 entrou em vigor a Convenção da União de Paris – CUP que tem a finalidade de proteger a propriedade industrial e que coibir a prática de atos de concorrência desleal. Esta convenção sofreu ao longo do tempo sete revisões, a última em 1967 em Estocolmo, aderida pelo Brasil em 1992.
Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal que manteve os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e os elevou, como nunca antes feito no país, ao patamar de fundamento do próprio Estado Democrático de Direito.
Segundo Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[31], esta Constituição foi a primeira a romper com a sistemática de tratar da economia e dos Direitos Trabalhistas de forma conjunta ao incluir estes últimos no capítulo dos Direitos Sociais.
Os autores[32] apontam ainda que a Constituição de 1988 cria uma economia voltada para a transformação das estruturas sociais.
Além disso, esta constituição passou a garantir, em seu artigo 219, dentro do capítulo relativo à ordem social, o estímulo ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica com o apoio para que as empresas invistam em pesquisa, quebrando o padrão das Constituições anteriores que atribuíam ao Poder Público o encargo da promoção da pesquisa.
Neste diapasão, Regiane Teresinha de Mello João[33] aponta que:
O estímulo e apoio ao investimento privado em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao País remete à garantia de que o investimento e o tempo gasto pela empresa nessas atividades tenham por resultado o aproveitamento comercial e econômico de suas descobertas e aprimoramentos tecnológicos, criando mecanismos de proteção aos bens imateriais desta, consistente em propriedade intelectual, coibindo essa forma de concorrência desleal.
Por derradeiro, em 1996, 1997 e 1998 foram editadas, respectivamente, às leis: n. 9.279, que trata sobre a proteção de marcas e patentes; n. 9.456, que diz respeito a cultivares[34]; e, n. 9.609, que aborda a proteção de software e n. 9.610, que trata da proteção aos direitos autorais e revoga a lei n. 5.988/73.
Com este panorama, cada vez mais complexo, de concorrência acirrada e proteção ao conhecimento, a cláusula de não concorrência, que já era utilizada em outros países como Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Portugal e Alemanha, começou a ser importada para os contratos de trabalho brasileiros.
1.3 Concorrência, livre concorrência e concorrência desleal: conceitos
De forma concomitante ao desenvolvimento da intervenção do Estado na economia, a noção de concorrência foi evoluindo. Inicialmente se tinha uma ideia de concorrência perfeita, extremamente ligada ao idealismo concorrencial que o próprio capitalismo pressupõe.
Esta forma de concorrência deduz que haja diversas empresas em um mesmo ramo de atividade de forma que não seja possível firmarem entre si pactos para o controle de preços e, portanto, estas empresas não conseguem influir a oferta de forma que a qualidade e a quantidade da produção acabam tendo que seguir a direção dada pelos próprios consumidores.
Segundo Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[35] esta concorrência perfeita pressupõe a:
(...) existência de um grande número de empresas em que nenhuma delas poderia exercer influência sensível sobre a oferta, partindo da ideia de que, sendo elas muito numerosas em cada indústria, não teriam a possibilidade de desenvolver acordos entre si (controle de preços e do mercado), o que permitiria aos consumidores orientarem a produção em quantidade e qualidade (a “soberania do consumidor”, que seria exercida por meio de cálculos racionais de utilidade marginal).
Nas palavras de Catia Guimarães Raposo Novo[36] a concorrência classificada como pura diz respeito ao “simples ato de apresentar um produto ou serviço similar que passa a integrar determinada faixa de mercado”.
No entanto, este conceito de concorrência perfeita sofreu mudança quando, no final do século XIX, começaram a surgir empresas monopolistas e a prática de cartéis nos principais setores econômicos.
Para Catia Guimarães Raposo Novo[37] surge, então, a figura da concorrência imperfeita, que é a “que tem o efeito de monopolizar o mercado”.
Segundo o economista Nicholas Gregory Mankin[38]:
Um tipo de mercado que não é perfeitamente competitivo é o oligopólio, com apenas alguns vendedores que oferecem produtos similares ou idênticos aos oferecidos por outros vendedores.
(...)
Um segundo tipo de mercado que não é perfeitamente competitivo chama-se competição monopolística, que descreve uma estrutura de mercado em que há muitas empresas que vendem produtos similares, mas não idênticos. Em um mercado monopolisticamente competitivo, cada empresa tem monopólio sobre seu produto, mas muitas outras empresas têm produtos similares que competem pelos mesmos clientes. (Destaques originais)
Com este novo cenário, percebeu-se que este conceito de concorrência perfeita é um modelo analítico, de caráter hipotético, isto é, tem mais utilidade para a pesquisa e análise do que à situação prática, à realidade empírica.
Disto surge a noção de uma concorrência praticável ou desejável, que exige a existência de determinada quantidade de empresas atuantes em um mesmo ramo de atividade para evitar circunstâncias abusivas. Trata-se de uma concorrência necessária para se evitar o total controle do mercado por uma ou um grupo pequeno de empresas e, consequentemente, o abuso, por elas, desta situação.
Para Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[39] a concorrência praticável ou desejável ocorre quando:
(...) um número considerável de empresas vende seus produtos substituíveis em uma área importante do mercado, onde não há colusão entre os agentes econômicos e o acesso a uma atividade econômica é possibilitado pela larga difusão do progresso técnico. Em outros termos, um mercado que possui um nível de concorrência necessário para evitar situações abusivas, com toda a complexidade que essa afirmação acarreta.
Neste diapasão, Regiane Teresinha de Mello João[40] aponta que a definição jurídica brasileira dada atualmente sobre concorrência pode ser encontrada tanto no âmbito do Direito Comercial quanto do Direito Econômico.
Do conceito encontrado nestes dois ramos do direito, a autora[41] explica que concorrência diz respeito à competição ocorrida entre agentes econômicos com a finalidade de satisfazer a escolha daquele que adquire produtos ou serviços e, esta disputa, influência o desenvolvimento dos meios de produção e dos custos da produção e, por corolário, implica em menores preços.
Desta maneira resta evidente que a existência de concorrência é fundamental para o desenvolvimento da sociedade capitalista.
Não obstante, Regiane Teresinha de Mello João[42] aponta que a livre concorrência é uma questão mais relacionada à Teoria Econômica que ao próprio direito.
Catia Guimarães Raposo Novo[43] explica que a livre concorrência diz respeito à “maior ou menor margem de liberdade de que dispõem as empresas no mercado, fato essencialmente econômico”.
Portanto, para que haja uma boa produção e circulação de bens e serviços é essencial que a livre concorrência seja protegida.
E, a proteção à livre concorrência objetiva, de forma primordial, impedir a prática de atos que se caracterizem como uma competição desleal, desonesta, isto é, que se utilize de meios ilícitos e contrários aos usos e costumes mercantis para a obtenção de vantagens.
Catia Guimarães Raposo Novo[44] explica que “a concorrência desleal caracteriza-se quando o empregado ou outra pessoa pratica deslealmente atos do comércio em concorrência com o empregador ou com qualquer outra empresa, causando-lhe prejuízos ou afetando seus interesses”.
Logo, o grande foco das legislações acaba sendo a disfunção concorrencial.
A primeira regulamentação sobre concorrência desleal e tipificação de atos proibidos por caracterizarem desonestidade na concorrência ocorreu somente em 1883 na Convenção da União firmada em Paris, em que pese, pouco tempo após o surgimento da noção de concorrência durante a Revolução Industrial, meios desonestos de competição logo terem passado a ser utilizados.
Nesta toada, é possível que atos desonestos de concorrência não estejam tipificados em lei como crime de concorrência desleal e se caracterizem apenas como atos contrários aos usos e costumes mercantis. No entanto, estes atos podem ser coibidos contratualmente. Pode ser firmada uma obrigação de não competir em determinado lugar, ou durante certo tempo, ou, ainda, em determinada atividade.
Para Regiane Teresinha de Mello João[45] “a concorrência desleal, quer configure um delito, quer constitua apenas um modo contrário aos usos mercantis e aos bons costumes, constitui figura indesejável, perseguida pela legislação”.
A atual Constituição Federal brasileira não define concorrência, mas determina, em seu artigo 146-A (introduzido por meio da Emenda Constitucional n. 42/03), que ela seja assegurada por meio de lei complementar que imponha instrumentos tributários para a sua proteção.
Neste passo, no inciso IV de seu artigo 170, a Carta Maior coloca a livre concorrência como um dos princípios da ordem econômica e, ainda, em seu artigo 173 impõe que o abuso do poder econômico visando à eliminação da concorrência seja coibido por lei.
Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade[46] explicam que a concorrência está atrelada a outros princípios constitucionais, como o valor social do trabalho[47] e da livre iniciativa[48], assegurados no inciso IV do artigo 1º e caput do artigo 170 da Carta Política. Defendem ainda que “a concorrência deve ser interpretada e/ou aplicada a partir da própria Constituição, e não independentemente dela”.
Tendo isto em vista, estes autores[49] apontam que:
(...) na Constituição de 1988, consagra-se a ideia de que a ordem econômica (do ponto de vista fático) gerada pelo mercado não é perfeita, já que os agentes da livre iniciativa privada não produzem harmonia a partir de sua liberdade de atuação e da não-intervenção estatal (...).
Em consonância com a determinação constitucional acima mencionada, a Lei n. 12.529/11, segundo o caput de seu artigo 1º, “estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”.
A concorrência desleal é tratada: no Código Penal - CP, já que pode se configurar como crime; no Código Comercial - CCo, podendo gerar direito à indenização aos prejudicados; pela Administração Pública, tendo em vista que pode implicar em multas e embaraço de certos negócios comerciais; e, ainda, pela própria Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, pois se praticada pelo empregado na vigência do contrato de trabalho pode ensejar despedida por justa causa.
Não obstante, a concorrência desleal é ainda reprimida e tipificada como crime no artigo 195 da Lei n. 9.279/96, que regula obrigações e direitos relativos à propriedade industrial. Dentre as diversas situações previstas neste dispositivo legal como crime de concorrência desleal, envolvem a relação de trabalho as tratadas nos incisos IX, X e XI.
Tem-se, portanto, que o vocábulo concorrência, de forma genérica, diz respeito à disputa de mercado, possuindo facetas diversas conforme o tipo de disputa existente.
A proteção à liberdade de concorrer é essencial para uma sociedade capitalista, já que acaba por impedir que uma ou um pequeno grupo de empresas domine o mercado e pratique abusos e, consequentemente, garante a adequada produção e circulação de bens e serviços, incentiva o avanço tecnológico e o progresso do próprio conhecimento.
E, a proteção a esta liberdade de concorrer tem como finalidade máxima coibir a prática de meios ilícitos, desonestos e contrários aos usos e costumes mercantis para a obtenção de vantagens, que se caracterizem como competição desleal.
Por corolário, o foco das legislações das sociedades capitalistas, como a brasileira, é a criação de mecanismos que protejam a liberdade de concorrer por meio da repressão da concorrência desleal.
1.4 Cláusula de não concorrência: conceito
A cláusula[50] de não concorrência é também chamada de quarentena e, segundo Sérgio Pinto Martins[51], pode ainda ser conhecida, principalmente no Direito Comercial, como “cláusula de não restabelecimento”, “proibição de concorrência”, “pacto de não reestabelecimento”, “proibição negocial de concorrência”, “cláusula de interdição da concorrência”, “pacto de não concorrência”, “pacto de abstenção de concorrência” e “pacto de exclusão de concorrência”.
Cibele Andrade Pessoa de Freitas[52] afirma que nos Estados Unidos e Inglaterra esta cláusula é denominada non-compete clause, covenant notto compete ou non-compete agrements; na Espanha, pacto de no competencia; na Alemanha, Konkurrenzklausel; na França, clause de non-comcurrence; e na Itália, patto di non concorrenza.
Este tipo de pacto pode ser encontrado tanto no Direito Comercial quanto no Direito do Trabalho.
No Direito Comercial geralmente se celebra este tipo de cláusula em contrato de sociedade para impedir que os sócios, durante ou após sua saída da sociedade que faça parte, não pratique atos de concorrência.
É comum, ainda, no Direito Comercial, se celebrar esta cláusula em contratos de compra e venda de estabelecimento comercial como forma de evitar que o vendedor não atue na atividade do estabelecimento vendido durante certo lapso temporal, em determinada localidade para se evitar perda de clientela e a própria concorrência.
Já no Direito do Trabalho ocorre desta cláusula ser inserida no pacto de trabalho para evitar que os conhecimentos adquiridos ao longo da prestação de serviço (Know how) sejam utilizados após seu encerramento pelo próprio empregado em benefício de concorrente ou de seu próprio negócio.
A palavra concorrência utilizada como nome desta cláusula deve ser interpretada de forma ampla e a questão crucial envolvida é o risco que determinado empregado pode causar ao empregador ao passar a trabalhar para uma empresa concorrente ou abrir um próprio negócio que seja concorrente.
Na grande maioria das vezes esta cláusula é utilizada em contratos de empregados que exercem função estratégica na empresa ou que tenham acesso a informações privilegiadas e dados confidenciais.
Célio Neto[53] explica que a cláusula de não concorrência que é inserida nos contratos de trabalho “consiste, pois, no compromisso assumido pelo empregado, de não gerar concorrência com o ex-empregador, após o contrato, mediante compensação financeira, com limitação de tempo, local e atividade”.
Sérgio Pinto Martins[54], por seu turno, entende que “a cláusula de não concorrência é a obrigação pela qual o empregado se compromete a não praticar pessoalmente ou por meio de terceiro ato de concorrência para com o empregador”.
Já Regiane Teresinha de Mello João[55] expõe que “a cláusula de não concorrência consiste na pactuação da abstenção do empregado de ativar-se por conta própria ou para outro empregador, em atividade igual ou semelhante, após o término do contrato de trabalho”.
Por fim, Cibele Andrade Pessoa de Freitas[56] aponta que:
(...) a cláusula de não-concorrência consiste num conjunto de dispositivos nos quais se pactua com o empregado um non facere, uma abstenção da prática de atos que possam prejudicar a atividade econômica do empregador, ressaltando-se que a eficácia do pactuado fica suspensa até o término do contrato de trabalho. Em outros termos, estendem-se alguns efeitos do contrato individual para além do seu término, permanecendo em especial o dever de colaboração, probidade e fidelidade do obreiro em face do seu ex-empregador.
Esta cláusula, portanto, visa impedir que o empregado, após a rescisão do contrato de trabalho, exerça uma atividade que se assemelhe à exercida ao longo da prestação de serviços, seja como empregado de uma concorrente, seja de forma independente, em local e durante o período de tempo em que estes atos possam ensejar danos à ex-empregadora.
A cláusula, evidentemente, tem o intuito de evitar que o conhecimento obtido, as informações privilegiadas ou mesmo os dados confidenciais dos quais o empregado teve acesso durante a vigência do pacto laboral não sejam utilizados, após a rescisão contratual, em prejuízo dos interesses da ex-empregadora. Logo, não é necessário que haja um efetivo prejuízo pelo desempenho de atividade concorrencial, mas, tão somente, exista este risco.
Portanto, a cláusula de não concorrência que é inserida em contratos de trabalho tem a finalidade precípua de evitar que sejam praticados atos concorrenciais abusivos pelo ex-empregado que se configurem como concorrência desleal.
Disto tudo se extrai que a cláusula de não concorrência posta em contratos de trabalho é uma disposição com o objetivo de restringir a atuação, após o término da relação de trabalho, do então ex-empregado e, com isso, impedir que ele se utilize do conhecimento adquirido durante a prestação de serviços (dados confidenciais, informações privilegiadas, estratégias, técnicas, etc) de maneira prejudicial aos interesses da ex-empregadora (seja em benefício de seu próprio negócio, seja em benefício de nova empregadora concorrente), durante determinado período de tempo, em certa área geográfica e em troca de uma adequada indenização pecuniária, de forma a não gerar concorrência desleal.
1.5 Legislação brasileira sobre cláusula de não concorrência
O ordenamento jurídico brasileiro não trata de forma expressa da cláusula de não concorrência inserida em contratos de emprego.
Há previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, alíneas c e g do seu artigo 482, abaixo transcritas in verbis, que possibilita a despedida por justa causa no caso de o empregado praticar ato de concorrência à empresa para a qual trabalha durante o pacto laboral ou que viole segredo da empresa:
Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
(...)
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;
(...)
g) violação de segredo da empresa;
Nas palavras de Célio Neto[57]:
Não há disposição expressa na CLT tratando da cláusula de não concorrência após o contrato de trabalho, tão somente o há no curso do contrato de emprego, consoante o art. 482, alínea c da CLT, que considera a concorrência ao empregador motivo para rescisão por justa causa.
Em decorrência da disposição das alíneas c e g do artigo 482 da CLT não há dúvidas acerca da possibilidade de restrição durante o contrato de trabalho de o empregado praticar ato de concorrência à empresa para a qual trabalha ou que seja prejudicial ao serviço, tampouco violar segredo da empresa.
Entretanto, o mesmo não ocorre em relação à possibilidade de restrição após o término do contrato de trabalho de o empregado exercer uma atividade que se assemelhe à exercida na sua então empregadora, seja como empregado de uma concorrente, seja de forma independente e que possa gerar prejuízo aos interesses da ex-empregadora em decorrência do uso do conhecimento obtido ou das informações privilegiadas às quais o ex-empregado teve acesso.
Em que pese isto, como já citado anteriormente, o artigo 195 da Lei n. 9.279/96, que regula obrigações e direitos relativos à propriedade industrial, prevê diversas situações que se caracterizam como crime de concorrência desleal, e, dentre elas, as tratadas nos incisos IX, X e XI, envolvem a relação de trabalho, conforme se verifica da transcrição feita abaixo in verbis:
Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem:
(...)
IX. dá ou promete dinheiro ou outra utilidade a empregado de concorrente, para que o empregado, faltando ao dever do emprego, lhe proporcione vantagem;
X. recebe dinheiro ou outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa, para, faltando ao dever de empregado, proporcionar vantagem a concorrente do empregador;
XI. divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato; (Destaque ausente no original)
Extrai-se do texto dos referidos incisos o nítido intuito de coibir atos que se constituem como concorrência desleal e têm grande potencial lesivo ao negócio do empregador, deixando claro que o empregado tem dever de sigilo do conhecimento e informações obtidas em decorrência da função laboral desempenhada na empresa, bem como o dever de lealdade para com o empregador ao longo do pacto laboral e mesmo após o seu término.
Por derradeiro, o Brasil é signatário da Convenção da União de Paris – CUP, que tem a finalidade de proteger a propriedade industrial e que coibir a prática de atos de concorrência desleal, conforme se verifica dos seus artigos 1º, 2 e 10 bis[58], abaixo transcritos in verbis, de sua última revisão ocorrida em 1967 em Estocolmo e aderida pelo país em 1992:
Artigo 1
1) Os países a que se aplica a presente Convenção constituem-se em União para a proteção da propriedade industrial.
2) A proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de proveniência ou denominações de origem, bem como a repressão da concorrência desleal.
Artigo 10 bis
1) Os países da União obrigam-se a assegurar aos nacionais dos países da União proteção efetiva contra a concorrência desleal.
2) Constitui ato de concorrência desleal qualquer ato de concorrência contrário aos usos honestos em matéria industrial ou comercial.
3) Deverão proibir-se particularmente:
1º. todos os atos suscetíveis de, por qualquer meio, estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente;
2º. as falsas alegações no exercício do comércio suscetíveis de desacreditar o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou comercial de um concorrente;
3º. as indicações ou alegações cuja utilização no exercício do comércio seja suscetível de induzir o público em erro sobre a natureza, modo de fabricação, características, possibilidades de utilização ou quantidade das mercadorias.
Portanto, não existe ainda no ordenamento jurídico nacional disposição expressa tratando da inserção de cláusula de não concorrência em contratos de trabalho, tampouco regulamentação acerca de seus limites, daquilo que pode ser objeto de restrição. O que se extrai é, apenas, uma inclinação legal a repudia da prática de atos concorrências pelo ex-empregado que possam causar danos a sua ex-empregadora.
2 DIREITO DE PROPRIEDADE
2.1 Panorama histórico internacional
Segundo Luiz Gustavo Bambini de Assis[59] a propriedade surge praticamente junto com o próprio indivíduo. Seu conceito se desenvolve de forma paritária a transição da fase do homem selvagem para o homem sedentário, que se organiza em civilização e passa a permanecer em um mesmo espaço físico e retirar da terra seu próprio sustento e formar seus valores.
Durante a Antiguidade, principalmente em Roma, a propriedade tinha feição individualista e caráter absoluto. Era oponível erga omnes, exclusiva de seu titular e por ele poderia ser disposta com total plenitude.
Em regra, o ser humano e todo o seu patrimônio eram atrelados ao Estado. Não existiam direitos individuais contrários ao poder Estatal.
A noção de propriedade privada era intrínseca à família e à religião. Cada grupo familiar tinha um lar próprio, comandado pelo homem, chefe de família. Seus deuses e antepassados eram lá venerados e protegiam a família dentro daquele local.
Luiz Gustavo Bambini de Assis[60] esclarece que:
O poder ideológico do detentor da propriedade, ainda nos primórdios da civilização humana, fica evidente com o surgimento dos clãs religiosos, onde a figura do chefe de família (depois, pater famílias para o Direito Romano) tem destaque e liderança sobre as demais pessoas fixadas em um território.
Tanto o Império grego como o Império romano implicaram a eventual liderança ideológica e, posteriormente, econômica ao conceito de propriedade. Tanto é verdade que os jurisconsultos romanos trazem à tona o conceito de direito de propriedade como algo absoluto, indisponível, quase uma garantia fundamental do indivíduo.
No feudalismo, o poder estava concentrado no rei e este era atrelado ao clero. O domínio da propriedade era dos senhores feudais que permitiam aos servos o uso de suas terras para moradia, subsistência e proteção em troca de seu cultivo.
O vínculo entre senhores e servos era vitalício e edificado no domínio daqueles que tinham as terras e na subordinação daqueles que dela precisavam.
Já na Idade Média, a propriedade passou por uma fase de dualidade de sujeitos: o dono propriamente dito da propriedade e o explorador econômico, que pagava ao dono pelo seu uso.
O domínio da propriedade obedecia a um sistema de transmissão hereditária e, portanto, a propriedade permanecia sempre com a mesma família.
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves[61]:
Na Idade Média, passou por uma fase peculiar, com dualidade de sujeitos (o dono e o que explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro pelo seu uso). Havia todo um sistema hereditário para garantir que o domínio permanecesse numa dada família de tal forma que esta não perdesse o seu poder no contexto do sistema político.
Não obstante, Luiz Gustavo Bambini de Assis[62] aponta que:
(...) a visão da propriedade como algo absoluto passa incólume também durante o período da Idade Média, quando o direito de propriedade é mantido inclusive como condição de manutenção da divisão social, havendo uma concentração imobiliária nas mãos de poucos que detinham certo poder social sobre os demais indivíduos.
Durante o absolutismo, no início da Idade Moderna, a propriedade privada era vista como um direito natural, ligada à vontade de Deus e vinculada à religião.
Com o iluminismo e a Revolução Francesa em 1987 passou-se a adotar uma visão antropocêntrica, a razão passou a ser valorizada e o indivíduo visto como ser livre e possuidor de direitos.
O direito natural como o à propriedade privada passa a ser atrelado à razão, decorrente da própria existência do ser humano e, portanto, independente de Deus.
Segundo Luiz Gustavo Bambini de Assis[63]:
O iluminismo, pautado em suas duas correntes fundamentais, o racionalismo e o empirismo, levou à criação de duas importantes vertentes para a positivação do direito de propriedade. De um lado a vertente do contratualismo, cuja doutrina básica previa não ser o Estado fruto do acaso, mas resultado da ação racional do homem. A visão de Locke, Hobbes e Rousseau, dentre outros, de que o homem era detentor de direitos e que os levavam para a vida em sociedade foi decisiva para a cristalização dessa vertente na História da Humanidade. De outro lado, havia a vertente jusnaturalista, que buscou justamente positivar os direitos fundamentais e individuais que seriam anteriores à sociedade e ao Estado, cabendo a este respeitá-los. (Destaques originais)
Os indivíduos em geral deveriam ter liberdade pessoal, autonomia frente ao Estado, a propriedade privada garantida e assegurado o direito de dela usar e dispor de forma livre.
Surgiam, assim, os direitos civis e políticos, oriundos da valorização da liberdade do indivíduo, classificados como de primeira geração.
Têm como características principais a titularidade individual e a exigência de que o Estado não intervenha na esfera privada dos indivíduos.
Então, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, fruto das ideias iluministas e dos ideais da Revolução Francesa, a propriedade privada foi consagrada em seu artigo 17 como direito natural, sagrado e inalienável de todos os indivíduos.
Praticamente na mesma época, o direito de propriedade também é positivado na Carta Constitucional norte-americana, originada da Convenção de Filadélfia de 1787.
Neste novo contexto, portanto, a propriedade tinha caráter individualista.
O absolutismo foi decaindo ao mesmo tempo em que ganhava força o liberalismo, teoria política segundo a qual o Estado deveria intervir de forma mínima na economia, já que a remuneração do trabalho e a distribuição da renda seriam determinadas pelo próprio mercado de acordo com a livre concorrência.
Diante deste cenário, surgiu a necessidade de um mecanismo de proteção estatal que controlasse os abusos econômicos que eram praticados.
Surgem, então, as teorias socialistas, dentre as quais chegou a ser defendida a abolição do direito de propriedade sob o fundamento de que ela não seria uma mercadoria e sim um bem de produção que deveria ser utilizado para se obter uma igualdade material, mais profunda que a igualdade formal oriunda das revoluções liberais.
O caráter absoluto da propriedade passa, assim, a ser questionado e relativizado.
Neste diapasão, durante os séculos XIX e XX, como efeito da Revolução Industrial e aumento das desigualdades em decorrência da concentração de riqueza na burguesia, passou-se a defender que o Estado deveria garantir um mínimo existencial a todos os indivíduos (saúde, educação, habitação, etc), surgindo, então, o Estado Social ou Socialdemocracia.
A proteção a estes direitos foi reforçada após a primeira Guerra Mundial e decorre do confronto entre liberalismo e socialismo. O titular destes direitos é toda a coletividade e pressupõem uma atuação positiva pelo Estado.
São classificados como direitos de segunda geração, sustentados na ideia de igualdade social, abrangem os direitos econômicos, sociais e culturais.
Dentro deste contexto, o caráter social do direito de propriedade passou a ser elevado.
As encíclicas Rerum novarum do Papa Leão XIII e Quadragésimo Ano de Pio XI contribuíram com esta socialização da propriedade. A primeira defendia o reconhecimento da utilidade comum de terras particulares, enquanto que a segunda apontava o lado social que a propriedade deveria desempenhar e os limites de seu uso baseados na honestidade e boa-fé.
Nesta época, diversas Constituições começaram a abordar no corpo de seu texto os direitos sociais.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves[64]:
Após a Revolução Francesa, a propriedade assumiu feição marcadamente individualista. No século passado, no entanto, foi acentuado o seu caráter social. Contribuindo para essa situação as encíclicas Rerum Novarum, do Papa leão XIII, e Quadragésimo Ano, de Pio XI. O sopro da socialização acabou, com efeito, impregnando o século XX, influenciando a concepção da propriedade e o direito das coisas.
Neste passo, a Constituição Mexicana, de 1917, e a de Weimar, de 1919, trataram do direito de propriedade sob outra perspectiva: seu detentor passou a ter a obrigação de preservá-la. Assim, a propriedade começa a ser vista como um direito-dever.
Além disso, estas Constituições foram as primeiras a tratarem da propriedade sob o aspecto social e elevar esta sua função social a princípio. Ambas determinavam que a propriedade atendesse ao bem coletivo.
Luiz Gustavo Bambini de Assis[65] ressalta que a partir de então se constata um novo tratamento do conceito de propriedade, conceito este que relativiza o direito à propriedade frente aos novos direitos sociais que começaram a ser constitucionalizados, e que, para a sua promoção, exigem do Estado uma ação positiva. Segundo o autor[66]:
Um novo modelo estatal é desenhado. Esse modelo pressupõe não mais a omissão do Estado na defesa dos direitos fundamentais, mas sua promoção por meio das políticas e serviços públicos. Nesse contexto, o direito de propriedade, embora ainda considerado uma garantia fundamental, adquire uma nova dimensão e necessita adequar-se à evolução social e política que leva à reformulação dos textos constitucionais.
Com a Revolução Industrial em 1988 o sistema capitalista, baseado na propriedade privada dos meios de produção (máquinas, instrumentos, fábricas, matérias-primas, etc), se consolidou.
A crise do Estado Liberal somada à primeira Guerra Mundial abriu espaço para pensamentos antiliberais, para os Estados Totalitários e a prática de atos repressores das liberdades individuais.
Então, apenas após a segunda Guerra Mundial e dos vastos atos violadores de direitos humanos praticados à época, foi firmada pelas Nações Unidas, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos com a finalidade de impedir a repetição de condutas desumanas como as praticadas em decorrência da guerra e garantir direitos mínimos individuais.
Dentre estes direitos mínimos individuais foi assegurado o direito de propriedade no artigo 17[67], abaixo transcrito in verbis:
Artigo 17
1. Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.
Esta proteção não só a propriedade, mas a toda esta grama de direitos mínimos individuais, aos poucos, passou a ser incorporada pelo texto das próprias Constituições de diversos países, dentre eles, o Brasil.
2.2 Panorama histórico nacional
No Brasil, logo após a colonização portuguesa, foi implantado por Pedro Álvares Cabral sistema de capitanias hereditárias.
Desta forma, as terras brasileiras foram divididas em quinze lotes que foram doados a pessoas renomadas da época para que as cultivassem e desbravassem em troca do pagamento de tributo à Coroa portuguesa.
Este regime ocasionou o surgimento de diversos latifúndios e a ocupação de terras de forma desordenada.
Luiz Gustavo Bambini de Assis aponta que[68]:
A questão da propriedade no Brasil sempre fora tratada de forma concentradora e desigual. Desde a instituição do regime das sesmarias, o seu processo de distribuição sempre foi aleatório e privilegiou os interesses da Coroa e daqueles a ela ligados por traços sociais e até mesmo de afetividade.
Em 1824 foi promulgada a primeira Constituição brasileira, a do Império, que já tratava do direito à propriedade em seu texto.
Nesta época o panorama mundial, principalmente europeu, era de luta pelo reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais.
Esta Constituição, consequentemente, tinha conteúdo liberal e é caracterizada pelo individualismo, reflexos do contexto mundial vivenciado à época.
O direito de propriedade, desta forma, foi garantido de forma plena no artigo 179, 22 desta Constituição.
Daniel Claro[69] ressalta que neste período “começava a se instalar na sociedade brasileira a tese da preponderância dos direitos sociais sobre os individuais, quando confrontados, bem como a utilização daqueles como parâmetro, para o balizamento do exercício destes”.
O sistema de capitanias hereditárias durou até 1850, quando foi adotada a Lei de Terras, n. 601. Com esta lei a foi proibido que a terra fosse obtida em decorrência de sua posse. Para que fosse adquirida era necessária a compra formal, de forma registrada.
Já no século XIX, em decorrência da abolição da escravatura e do plantio de café, a propriedade imóvel rural se tornou a principal forma de capital.
Com efeito, sobre influências norte-americanas, a Constituição de 1891, republicana, consagra direitos e garantias individuais representativos do liberalismo vivenciado na ocasião.
A propriedade foi garantida em seu artigo 72 e passou a ser prevista, no parágrafo 17 deste mesmo dispositivo, a possibilidade de desapropriação por utilidade pública com o pagamento de uma indenização justa e prévia.
Além disso, nos parágrafos 25, 26 e 27 passou também a ser tratada e protegida a propriedade aos inventos industriais, às obras literárias e às marcas.
Luiz Gustavo Bambini de Assis[70] ressalta que:
Tanto a Constituição de 1824, como a de 1891 deram tratamento semelhante ao direito de propriedade. Influenciadas pelas constituições liberais americana de 1787 e francesa, de 1789, tratando o direito de propriedade em toda a sua plenitude.
Em 1916, em meio a todo este contexto, foi instituído o Código Civil anterior ao atual vigente. Seguindo o Código Napoleônico de 1804, seu texto era conservador de caráter individualista e se distanciava da tendência mundial que atrelava a propriedade à utilidade social e coletiva oriunda da Social Democracia.
Em que pese isto, em seu artigo 524 assegurava o direito do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens, bem como de reavê-lo de quem quer que o possuísse de forma injusta.
Já a Constituição de 1934, tem características da Social Democracia mundialmente vivenciada. Foi influenciava pela Constituição Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919.
Em seu artigo 113,17 garantia o direito de propriedade, mas determinava que não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo de acordo com o disposto em lei.
Previa ainda a desapropriação por necessidade ou utilizada pública e a possibilidade de requisição administrativa.
E, manteve a proteção, originariamente dada pela Carta anterior, à propriedade intelectual, como inventos, obras literárias, artísticas e científicas e marcas.
Segundo Luiz Gustavo Bambini de Assis[71]:
Mudança radical de paradigma traz a Constituição de 1934, haja vista que o Governo oriundo da Revolução de 1930 rompia quase que totalmente com a visão de Estado mantida durante o período da República Velha. Assim, com o advento de um Estado social, também resultado das revoluções sociais do início do século, e seguindo uma tendência das constituições mexicana e de Weimar, surge a ideia de que o direito de propriedade não pode ser exercido contra o interesse social ou coletivo.
A Carta Maior de 1937 tinha caráter ditatorial e restringiu muitos direitos e garantias fundamentais, já que foi outorgada após o golpe de Estado de Getúlio Vargas e a instituição do Estado Novo.
Em que pese isto, previa o direito à propriedade em seu artigo 122, 14, bem como a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública em troca de indenização prévia.
Por outro lado, a Carta Política de 1946 consagra o fim do Estado Novo e resgata a democracia social.
Garantiu o direito de propriedade e a possibilidade de desapropriação por interesse social, no parágrafo 16 de seu artigo 141, dentro do capítulo reservado aos direitos e garantias individuais. E, ainda, em seu artigo 147, determinou que o uso da propriedade fosse condicionado ao bem-estar social.
Com o golpe militar de 1964 acabou sendo promulgada a Constituição de 1967, de caráter ditatorial e autoritário. Consequentemente, direitos e garantias individuais foram reduzidos.
Mas, apesar disto, foram assegurados, no caput e no parágrafo 22 de seu artigo 150, o direito à propriedade e a possibilidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social e sobre a requisição administrativa.
Além disso, foi a primeira a tratar de forma explícita da função social da propriedade em seu artigo 157, dentro do título da ordem econômica e social.
Nas palavras de Daniel Claro[72] tanto esta Constituição como a Emenda Constitucional de 1969, em que pese tenham sido elaboradas em durante o regime militar:
(...) trouxeram um significativo avanço no campo da propriedade privada, consagrando de forma expressa a função social da propriedade como um princípio constitucional, estabelecendo que a ordem socioeconômica deveria promover o desenvolvimento e a justiça social, baseando-se, entre outros princípios, na função social da propriedade.
Por derradeiro, em 1988, com o fim do regime militar e resgate da democracia, foi promulgada a atual Constituição Federal brasileira, fundada no Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa humana.
Esta Constituição trata da propriedade de forma muito mais profunda, como nunca antes feito. A propriedade compõe o rol dos direitos e garantias fundamentais, tem aplicação imediata e faz parte do rol imutável da Carta Maior.
Em 2002 o atual Código Civil, mais compatível, que o anterior de 1916, com os princípios e fundamentos constitucionais, em especial, no que se refere à sua utilidade social e coletiva.
2.3 Conceito
Sob um primeiro aspecto, pode-se dizer que o direito de propriedade é direito individual, exclusivo, pleno e absoluto no sentido de que o proprietário detém amplos poderes jurídicos sobre aquilo que lhe pertence, podendo usar, gozar e dispor da sua propriedade da forma que lhe convir, além de poder reavê-la de quem a detenha ou possua injustamente.
Para Orlando Gomes[73] o direito de propriedade define-se como “direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”. Afirma ainda o autor que a característica essencial de tal direito “é o poder jurídico de dominação da coisa, que fica ileso em sua substancialidade ainda quando sofre certa limitação”.
Já para Luis da Cunha Gonçalves[74], “o direito de propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar”.
Carlos Roberto Gonçalves[75] define o direito de propriedade como “o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar, e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.
Segundo Washington de Barros Monteiro[76] o direito de propriedade se constitui como “o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência, o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas”.
A definição de propriedade é dada pela doutrina, como as citadas acima, e pela jurisprudência, pois não existe no ordenamento jurídico pátrio uma definição legal do que é propriedade, mas tão somente a delimitação dos poderes do proprietário, conforme se depreende do texto do artigo 1.228 do Código Civil de 2002, abaixo transcrito in verbis:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Carlos Roberto Gonçalves[77] diz que a própria origem etimológica de propriedade é incerta, já que existem aqueles que defendam que sua origem estaria ligada a expressão latina proprietas, derivado de proprius, que indicaria o que pertence a uma pessoa, trazendo a ideia de apropriação de certo bem, corpóreo ou incorpóreo, por alguém. E aqueles que defendam que a palavra origina-se de domare, também de origem latina que significa senhor da casa, correspondendo à ideia de domínio.
Da primeira corrente, depreende-se uma noção de direito de propriedade mais ampla, que engloba tanto coisas corpóreas como incorpóreas[78]. Já da segunda, capta-se o ideia de domínio, que se limitaria aos bens corpóreos, sendo, portanto, espécie do gênero propriedade.
Entretanto, o conceito de propriedade é dinâmico e recebe influências dos regimes políticos e sistemas jurídicos em que é concebida, não existindo, consequentemente, um conceito único na história do referido instituto.
Mas, de acordo com essa análise, pode-se afirmar que o direito de propriedade estaria ligado à noção de poder que se exerce sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas, submetendo-as a sua vontade, o que demonstra a existência de uma ligação muito forte entre o proprietário e sua coisa de forma a originar uma obrigação passiva geral de que ninguém turbe o exercício deste direito pelo seu titular.
2.4 Legislação brasileira sobre o direito de propriedade
No Sistema Jurídico Brasileiro atual o direito de propriedade é garantido pela própria Constituição Federal - CF, no caput e inciso XXII do seu artigo 5º, abaixo transcritos in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
(...)
XXII. é garantido o direito de propriedade; (Grifos ausentes no original)
Devido à relevância que lhe é atribuída, o direito de propriedade, juntamente com os direitos à vida, intimidade, honra, liberdade, igualdade e segurança, goza do status de direito fundamental[79], ou seja, é um direito intimamente ligado à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação de poder, protegido no plano constitucional em decorrência de sua importância axiológica, fundamentando e legitimando todo o ordenamento jurídico.
O direito de propriedade faz parte do núcleo imutável da Constituição, ou seja, é cláusula pétrea (inciso IV do § 4º do artigo 60 da Carta Maior), direito irrevogável pelo poder constituinte derivado.
Como já mencionado anteriormente, doutrinariamente, classifica-se a propriedade, assim como os outros direitos fundamentais, como direito de primeira geração, assegurado originariamente nas Declarações de Direitos Francesa de 1879 (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) e Americana de 1948 (Declaração Universal dos Direitos Humanos)[80].
Os direitos de primeira geração possuem como características principais a titularidade individual e o caráter eminentemente negativo, a exigir um não - fazer por parte do Estado. Características estas que podem ser vistas de forma nítida no direito de propriedade, como já abordado anteriormente.
Todos os direitos de primeira geração, em destaque o direito de propriedade, são considerados símbolos do Estado Liberal e representam a essência da não intervenção do Estado na esfera privada dos cidadãos.
No plano infraconstitucional, o direito de propriedade é assegurado principalmente pelo artigo 1.228 do Código Civil - CC que, conforme já citado anteriormente, enuncia os poderes do proprietário sobre a coisa que lhe pertence.
2.5 Limites do direito de propriedade
O direito de propriedade assegurado no inciso XXII do artigo 5º da Carta Magna, como qualquer direito, sofre limitações que relativizam a sua ideia de direito absoluto e alteram os contornos individualistas do seu conceito.
Segundo o inciso XXIII do mesmo artigo 5º da Constituição, abaixo transcrito in verbis, a propriedade deverá observar sua função social:
Art. 5º. (...)
(...)
XXIII. a propriedade atenderá a sua função social;
Assim, para que o direito de propriedade seja protegido pelo direito brasileiro, impõe a própria Lei Maior o necessário cumprimento de sua função social, que, em linhas gerais, consiste na exigência de que o proprietário, quando da utilização do objeto de sua propriedade, observe não apenas seus interesses particulares.
A ideia de função social não está atrelada apenas à produtividade do bem, mas principalmente à noção de convívio social e aos direitos inerentes à coletividade, justificando-se na finalidade de inserir o indivíduo e sua família na sociedade.
Diferentemente, a propriedade individual, sem a ideia de função social, apenas visa à proteção do indivíduo e sua família das necessidades inerentes à própria sobrevivência, limitando-se a um direito individual.
Trata-se, pois, a função social, de uma reconstrução do conceito de propriedade, que passa a incluir a necessidade da observância de deveres extrapatrimoniais do proprietário, visando à harmonização do interesse individual com o coletivo-social.
Observa-se que a função social imposta ao direito de propriedade é uma limitação de ordem interna, inerente ao próprio direito.
Ressalte-se que referida limitação aplica-se desde a propriedade imobiliária até a propriedade intelectual, não se fazendo qualquer distinção.
Não bastasse tal limitação, a Constituição Federal - CF ainda incluiu a função social da propriedade no rol de princípios da ordem pública, que são destinados ao fim de assegurar existência digna a todos, nos termos da justiça social, o que enfatiza a importância e necessidade deste instituto.
O caput e o inciso III do artigo 170 da Constituição assim dispõem (in verbis):
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
III. função social da propriedade;
Nota-se que o direito de propriedade, com a Constituição Federal de 1988, passou de simples relação entre o indivíduo e sua coletividade, que tinha o dever de respeitá-la, para um direito complexo, regulamentado não mais por apenas normas privadas, mas também por públicas, em decorrência da grande carga social que sustenta.
Segundo José Afonso da Silva[81], a propriedade:
Embora prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Assim, como o direito de propriedade foi inserido pela Carta Maior como princípio fundamental da ordem econômica, seu objetivo acaba por refletir em toda a ordem econômica do país, e assim sobre todas as diversas propriedades, tais como, a pública, a privada, a dos bens de consumo, a agrícola, a industrial, a urbana, a rural, a literária, a artística, a científica, a dos bens de produção, a das marcas de indústria e comércio, etc.
Obviamente, o referido reflexo é diverso em cada uma dessas propriedades, visto que são muito diferenciadas possuindo, cada qual, uma regulamentação própria de acordo com suas especificidades.
Eros Roberto Grau[82] afirma nesse sentido que:
A propriedade, em verdade, examinada em seus distintos perfis – subjetivo, objetivo, estático e dinâmico –, compreende um conjunto de vários institutos. Temo-la, assim, em inúmeras formas, subjetivas e objetivas, conteúdos normativos diversos sendo desenhados para aplicação a cada uma delas, o que importa no reconhecimento, pelo direito positivo, da multiplicidade da propriedade.
Sob este aspecto, percebe-se que a propriedade não constitui uma instituição única, mas um conjunto de diversas instituições relacionadas a diversos tipos de bens. A propriedade, além de direito do indivíduo, é também um encargo contra ele, que fica constitucionalmente obrigado a retribuir ao grupo social um benefício pela manutenção e uso da propriedade. O que também deve ser observado na propriedade da empresa.
2.6 O direito de propriedade do empregador e sua função social
Em decorrência do advento da tecnologia e do avanço do processo produtivo oriundos da Revolução Industrial houve uma grande organização do capital e do trabalho constituindo-se as empresas, que, consequentemente, passaram a incorporar uma grande quantidade de técnicas de produção e empreendimento.
Tais técnicas foram integradas ao patrimônio do empresário, que hoje pode ser caracterizado, por exemplo, pelos seus meios de produção, que se materializam na empresa; o próprio estabelecimento, que se materializa no imóvel em que se localiza; os bens que compõem o estabelecimento, tais como o maquinário e todo o mobiliário; os modos de produção; invenções; estratégias de atuação no mercado; e o produto.
Cumpre ressaltar que no direito atual o conceito de empresa, sob o aspecto que se visa estudar no presente trabalho, seria o conjunto de bens reunidos pelo empresário para exploração de uma atividade econômica. Deste conceito se depreende a ideia de empresário, que seria aquele que explora a atividade econômica.
Todo o patrimônio do empresário é garantido e protegido pelo direito de propriedade previsto no caput e inciso XXII, do artigo 5º da Carta Magna.
Essa proteção constitucional do direito de propriedade, em específico a do direito de propriedade do empresário, evoluiu paralelamente às necessidades exigidas pelo desenvolvimento tecnológico sofrido no país e as próprias imposições do sistema capitalista. Assim, considera-se a propriedade como elemento que se insere no processo produtivo.
Contudo, o direito de propriedade do empresário, assim como qualquer outro direito de propriedade, não é absoluto e deve observar os limites dados pela sua função social, conforme inciso XXIII do mesmo artigo 5º da Constituição Federal - CF e artigo 170 que, conforme abordado anteriormente, coloca a função social da propriedade como princípio da ordem econômica nacional.
Eros Roberto Grau[83] analisando essa noção de direito de propriedade diz que:
A moderna legislação econômica considera a disciplina da propriedade como elemento que se insere no processo produtivo, ao qual converge um feixe de outros interesses que concorrem com aqueles do proprietário e, de modo diverso, o condicionam e por ele são condicionados.
Assim, para que a proteção constitucional à propriedade do empresário seja efetiva, é necessário que esta atenda a sua função social. Entretanto, esta função social não se limita à mera vinculação do destino produtivo do bem. Mais do que isso, a ideia de função social neste caso, estaria atrelada ao dever da empresa em exercer seu direito de propriedade em prol de outros e não apenas a vontade única e exclusiva de seu proprietário.
Sob este aspecto, o direito de propriedade do empresário, e consequentemente, da empresa, garantido no caput e inciso XXII do artigo 5º da Carta Maior, deve amoldar-se a sua função social, segundo o determinado pelo inciso XXIII do mesmo diploma legal e, sobretudo, aos ditames da atividade econômica nos termos do artigo 170 da Constituição.
Eros Roberto Grau[84] esclarece nesse sentido que:
O princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de inspiração de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.
Diante de tudo isso, pode-se entender que a empresa deve visar também atingir interesses diversos ao seu particular, como o dos trabalhadores, cumprindo assim sua função social, quesito obrigatório para que este direito do empresário seja protegido.
3 LIBERDADE DE TRABALHO
3.1 Panorama histórico internacional
Como exposto anteriormente, nos séculos XVII e XVIII o regime de corporações de ofício já não mais atendia aos anseios sociais. Estas corporações limitavam muito a liberdade dos indivíduos, em especial, de gerar seu próprio sustento e, por meio do seu esforço, alcançar o que se almejasse.
Os abusos praticados por mestres nas corporações de ofício, tendências oligárquicas, e a impossibilidade de adaptação do trabalho que era ali realizado à nova situação socioeconômica, em especial, diante da inovação tecnológica desencadeada pela Revolução Industrial, implicaram no desenvolvimento do regime liberal.
A Revolução Francesa ocorrida em 1789 foi a responsável pela difusão do liberalismo, doutrina político-econômica baseada, segundo Alice Monteiro de Barros[85], na doutrina de Rousseau, nas doutrinas econômicas de fisiocratas, de clássicos ingleses e também na Escola de Direito Natural das Gentes.
O regime liberal é fundado na razão humana e no direito do indivíduo de alcançar a sua realização de forma livre. O pensamento liberal pregava uma liberdade ampla do indivíduo que refletia em questões econômicas, políticas e jurídicas. E, o respeito à liberdade civil, econômica e da consciência do indivíduo, para este regime, eram fundamentais para a satisfação dos anseios da humanidade e para que ela progredisse.
Segundo Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorico[86]:
Surgidas com o Iluminismo e lançadas pelos fisiocratas franceses, as bases do liberalismo eram a propriedade privada, o individualismo econômico, a liberdade de comércio, de produção e de contrato de trabalho (salários e jornada) sem controle do Estado ou pressão dos sindicatos.
O pensamento liberal ganhou contornos definidos com Adam Smith (1723-1790). Em sua obra A riqueza das nações, mostrava a divisão do trabalho como elemento essencial para o crescimento da produção e do mercado, e cuja aplicação eficaz dependia da livre concorrência, que forçaria o empresário a ampliar a produção, buscando novas técnicas, aumentando a qualidade do produto e baixando ao máximo os custos de produção.
O consequente decréscimo do preço final favorecia a lei natural da oferta e da procura, viabilizando o sucesso econômico geral. Ao Estado competia somente zelar pela propriedade e pela ordem, não lhe cabendo intervir na economia, já que a harmonização dos interesses individuais ocorreria por uma “mão invisível” levando ao bem-estar social. (Destaques originais)
A liberdade de trabalho surge deste cenário propagado pela Revolução Francesa de proteção máxima às liberdades individuais em resposta a atual situação político-social da época.
Nas palavras de Regiane Teresinha de Mello[87]:
A liberdade de trabalho, enquanto direito individual pleno, decorre do liberalismo propagado pela Revolução Francesa (1789), a qual privilegia a liberdade individual, extinguindo as Corporações de Ofício, por entender serem estas limitadoras da liberdade do indivíduo de se estabelecer, produzir e viver do produto do próprio trabalho.
Já Catia Guimarães Raposo Novo[88] explica que:
O novo regime consagrou a liberdade para o exercício das profissões e, via de consequência, as livres contratações, consolidando, assim, o princípio da autonomia da vontade e suas decorrências, em que o trabalho não derivava mais de relação de subordinação e imposição, mas sim de contratação com ampla manifestação de vontade de ambas as partes, consagrando-se a liberdade de trabalho.
No próprio ano da Revolução Francesa foi celebrada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão definindo os direitos individuais e coletivos dos indivíduos tidos como universais.
Esta Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se tornou o preâmbulo da Constituição de 1791 da França que, segundo Alice Monteiro de Barros[89], exaltou a liberdade individual e acabou por consagrar a liberdade para o exercício das profissões, artes ou ofícios e, por consequência, a liberdade de contratação.
Neste diapasão, segundo a autora[90], “os indivíduos adquiriam com sua vontade o poder supremo para realizar toda a classe de atos jurídicos, os quais passavam a ter força de lei entre as partes, porque aceitos voluntariamente”.
Esta liberdade de trabalho, em princípio, não podia sofrer quaisquer restrições. No entanto, com o passar do tempo passou a ser limitada pelo próprio Estado.
Segundo Regiane Teresinha de Mello[91], inicialmente o Estado implantou limitações ao exercício de profissões atentatórias à saúde, á vida, à segurança e aos interesses do próprio Estado como, por exemplo, criação de monopólios e questões que envolviam a segurança nacional.
Lentamente, passou a restringir esta liberdade de trabalho por meio de regulamentações acerca da prática de profissões que precisavam de habilidades específicas ou uma habilitação técnica. E, posteriormente, passou-se também a restringir o exercício de determinadas atividades àqueles que são nacionais.
Conforme já tratado anteriormente, em 1948, após a segunda Guerra Mundial, foi firmada a Declaração Universal dos Direitos Humanos com a finalidade de impedir a repetição de condutas desumanas como as praticadas em decorrência da guerra e garantir direitos mínimos individuais.
Esta declaração consagra, em seu artigo 23º[92] abaixo transcrito in verbis, a liberdade de trabalho por meio da garantia da liberdade de escolha de emprego:
Artigo 23°
1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.
4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.
Portanto, a Revolução Francesa foi a alavanca de um conjunto de mudanças políticas e sociais que levaram à humanidade a enxergar à importância da garantia e proteção de liberdades e direitos básicos individuais para o progresso de toda a coletividade e, consequentemente, a repensar o papel desempenhado pelo trabalho e a sua importância para a manutenção da própria vida e o alcance das condições mínimas de sobrevivência.
3.2 Panorama histórico nacional
A extinção das corporações de ofício, conforme já abordado acima, foi reflexo da Revolução Francesa e atingiu todo o mundo na época, já que era conflitante com a liberdade de trabalho e a concorrência que se passou a objetivar.
No Brasil, sob as influências liberais oriundas desta Revolução, logo no primeiro texto constitucional, a Constituição do Império de 1824, a liberdade de trabalho foi objeto de proteção.
Alice Monteiro de Barros[93] aponta que o inciso XXIV do artigo 179 desta Constituição assegurava expressamente que nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria, ou comércio fosse proibido, uma vez que não se opusesse aos costumes públicos, à segurança, e a saúde dos cidadãos.
Como se vê, no Brasil, a liberdade de trabalho começou a ser assegurada, mas já com a imposição de algumas restrições pelo Estado.
Com efeito, no inciso seguinte deste mesmo dispositivo constitucional foram extintas as corporações de ofícios como forma de eliminar a barreira ao exercício livre de profissões, artes ou ofícios e, por corolário, da contratação.
Já a Constituição de 1981, segundo Alice Monteiro de Barros[94], passou a proteger expressamente a liberdade de exercício de profissões ao dispor, em seu artigo 72, que o livre exercício de qualquer profissão, moral, intelectual e industrial, era garantido.
Não obstante, a Carta Magna de 1934, além de garantir, no seu artigo 113, expressamente a liberdade de exercício de profissões, impôs restrições a esta garantia de nível técnico e legal, inclusive, o próprio interesse público e, ainda foi a primeira a prever, segundo Regiane Teresinha de Mello[95] a regulamentação do exercício de todas as profissões (parágrafo 1º de seu artigo 121).
A Constituição de 1937 assegurava a liberdade de exercício de profissão e tratava do trabalho como dever social. Garantia o direito à subsistência por meio do trabalho que deveria ser protegido pelo Estado. No entanto, restringia, de acordo com a nacionalidade, a liberdade de exercício de profissão liberal e de estabelecimento.
Por outro lado, a Carta Política de 1946, segundo Regiane Teresinha de Mello[96], tratava da liberdade de exercício de profissões ao abordar as garantias individuais e do trabalho ao abordar a ordem econômica. No primeiro caso, a liberdade de exercício de profissões era garantida desde que observadas às condições de capacidade estabelecidas por lei. Já no segundo, a liberdade de trabalho era assegurada a todos e o trabalho posto como dever social.
Neste passo, a Constituição de 1967, além de manter o texto da Constituição anterior acerca da liberdade de exercício de profissões, passou a também garantir a liberdade de trabalho e ofício. Além disso, Regiane Teresinha de Mello[97] aponta que esta Constituição, no capítulo sobre a ordem econômica, passou a garantir, dentre outros valores, a liberdade de iniciativa, a valorização do trabalho como condição da dignidade humana e a função social do trabalho.
Por derradeiro, a atual Constituição Federal, promulgada em 1988, assegura expressamente, no inciso XIII do seu artigo 5º, a liberdade de trabalho, ofício ou profissão sendo devida apenas a observância da qualificação estabelecida pela lei.
No capítulo sobre a ordem econômica e política, manteve a garantia da liberdade de iniciativa, da valorização do trabalho como condição da dignidade humana e da função social do trabalho. O caput do artigo 170 desta Constituição deixa claro que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa e amplia os princípios que devem ser observados, enumerados em seus incisos.
Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, como nunca antes feito no país, foram elevados ao patamar de fundamento do próprio Estado Democrático de Direito no inciso IV do artigo 1º.
Passou a assegura ainda, no parágrafo único de seu artigo 170, a liberdade de exercício de qualquer atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos, com exceção das hipóteses expressamente discriminadas em lei.
Por corolário, no artigo 193 o trabalho foi colocado como base da ordem social e como seu objetivo o bem estar e a justiça social.
Regiane Teresinha de Mello[98] aponta que a liberdade de trabalho jamais foi tratada como princípio constitucional absoluto e irrestrito pelas Constituições brasileiras, com exceção das duas primeiras Cartas Políticas, de 1824 e 1891. As diferentes formas que a liberdade de trabalho foi garantida e restrita em cada texto constitucional aponta o momento sócio-político vivenciado.
3.3 Conceito
O trabalho é um meio pelo qual o indivíduo converte a sua própria atividade, física ou intelectual, naquilo que precisa para subsistir. Está relacionado à própria vida e à sua manutenção.
É por meio do trabalho que o indivíduo obtém educação, alimentação, moradia, lazer, vestuário, etc.
Portanto, o trabalho se configura como um direito social, capaz de prover dignidade ao ser humano, já que permite que ele alcance as condições mínimas de vida.
Segundo Antônio Ferreira Cesarino Júnior[99]:
Todo homem tem direito aos meios necessários para a satisfação conveniente de todas as necessidades vitais próprias e de sua família: alimentação vestuário, habitação, higiene (tanto preventiva como curativa), transporte, recreação, educação e previdência. A quase totalidade dos homens, entretanto, deve procurar os meios de subsistência no trabalho, ou seja, na aplicação de sua atividade à produção de bens ou serviços em proveito de alguém que os retribua. (...). Daí decorre ser o direto do trabalho corolário imediato do próprio direito à existência e, portanto, como este, também um direito primordial.
Consequentemente, a escolha da atividade profissional que se queira exercer para prover sua subsistência deve ser exercida pelo indivíduo sem quaisquer imposições, seja ela: intelectual ou artística, agropecuária, industrial ou comercial.
A liberdade de trabalho diz respeito exatamente a esta independência de um indivíduo em optar pela atividade profissional que quer exercer.
Para Antônio Ferreira Cesarino Júnior[100] “liberdade de trabalho é a faculdade de escolher e exercer a profissão nas condições que convenham ao interessado”.
Já nas palavras de José de Campos Amaral[101], “a liberdade de trabalho significa o direito que a pessoa tem de escolher a atividade produtiva que lhe aprouver, sem que o Estado possa interferir nessa opção”.
3.4 Legislação brasileira sobre a liberdade de trabalho
No atual ordenamento jurídico brasileiro a liberdade de trabalho é garantida constitucionalmente, no inciso XXIII do artigo 5º da Carta Magna, abaixo transcrito in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XIII. é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
O trabalho, como já tratado acima, é meio de manutenção das condições mínimas de vida e, exatamente em decorrência da sua relevância goza do status de direito fundamental, isto é, está intimamente ligado à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação de poder, protegido no plano constitucional em decorrência de sua importância axiológica, fundamentando e legitimando todo o ordenamento jurídico.
A liberdade de trabalho, assim como o direito de propriedade já tratado anteriormente, faz parte do núcleo imutável da Constituição, ou seja, é cláusula pétrea (inciso IV do § 4º do artigo 60 da Carta Maior), direito irrevogável pelo poder constituinte derivado.
É também como o direito de propriedade, doutrinariamente, classificado como direito de primeira geração, assegurado originariamente nas Declarações de Direitos Francesa de 1879 (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) e Americana de 1948 (Declaração Universal dos Direitos Humanos).
Dentre suas características, as principais são: a titularidade individual e a exigência de que o Estado não intervenha na esfera privada dos indivíduos.
Em que pese isto tudo, a própria Constituição no inciso XIII de seu artigo 5º, acima transcrito, impõe que sejam observados os requisitos de capacitação e habilitação impostos por lei para que a profissão possa ser exercida.
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira[102] profissão é a “atividade ou ocupação especializada, da qual se podem tirar os meios de subsistência”.
Tendo isto em vista, José de Campos Amaral[103] aponta que, em regra, é para o exercício de profissões liberais que se exige qualificações atestadas em diplomas de caráter científico expedido por faculdade após a conclusão do curso.
Estes requisitos são entendidos como uma restrição à liberdade de trabalho necessária para que a profissão seja adequadamente desempenhada e o seu exercício não ponha em risco outros direitos.
Não obstante, a Carta Maior, no inciso I de seu artigo 37 e no parágrafo 3º de seu artigo 39, abaixo transcritos in verbis, determina que a ocupação de cargos, empregos e funções públicas por brasileiro se submeta ao preenchimento dos requisitos estabelecidos por lei:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I. os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (Vide ADIN nº 2.135-4)
(...)
§ 3º. Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Esta exigência também se figura como restrição à liberdade de trabalho necessária, para que o cargo se exercido de forma adequada.
4 CONTRATO DE EMPREGO
4.1 Conceito
O contrato de emprego é o pacto celebrado por empregado (pessoa física) e empregador (pessoa física, jurídica ou entidade) que tem como objeto a relação de emprego, isto é, a prestação de serviços de forma pessoal, não eventual e subordinada ao tomador destes serviços mediante contraprestação.
Com efeito, Renato Saraiva[104] explica que a finalidade da relação de emprego, objeto do contrato em análise, é a criação de uma obrigação. Para o empregado, uma obrigação de fazer: trabalhar. Já para o empregador, uma obrigação de dar: pagar o salário.
Portanto, o contato de emprego é um negócio jurídico inter vivos, bilateral, comutativo e oneroso.
Segundo Renato Saraiva[105]:
(...) é o acordo de vontades, tácito ou expresso, pelo qual uma pessoa física, denominada empregado, compromete-se, mediante o pagamento de uma contraprestação salarial, a prestar trabalho não eventual e subordinado em proveito de outra pessoa, física ou jurídica, denominada empregador.
Alice Monteiro de Barros[106] conceitua referido contrato como:
(...) o acordo expresso (escrito ou verbal) ou tácito firmado entre uma pessoa física (empregado) e outra pessoa física, jurídica ou entidade (empregador), por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em favor do segundo um serviço de natureza não eventual, mediante salário e subordinação jurídica.
Referida conceituação é retirada da norma insculpida no caput do artigo 442 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT analisada conjuntamente com a do artigo 2º e caput do artigo 3º deste mesmo diploma legal que tratam da relação de emprego, abaixo transcritos in verbis:
Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Art. 442. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego.
Esta modalidade contratual é classificada como espécie do gênero contrato de trabalho, que engloba não apenas o contrato que tem como objeto a relação de emprego, mas também qualquer outra forma de trabalho como, por exemplo, a autônoma, eventual e avulsa.
4.2 Efeitos do contrato de emprego
Segundo Maurício Godinho Delgado[107], o contrato de emprego é um ato jurídico de conteúdo complexo, quando celebrado implica em uma grama muito grande de direitos e obrigações (de fazer ou de não fazer) às partes contratantes.
São obrigações fundamentais do contrato de emprego: a do empregado de trabalhar e a do empregador de pagar a retribuição pelo trabalho, como o salário.
Consequentemente, estas duas obrigações implicam em dois direitos fundamentais do contrato de emprego: o do empregador de que o trabalho para o qual o empregado foi contratado seja devidamente realizado e a do empregado de receber a retribuição pelo labor realizado.
Portanto, o contrato de emprego gera direitos e obrigações equivalentes para os pactuantes, empregado e empregador.
Destes direitos e obrigações fundamentais decorrem diversos outros direitos e obrigações complementares.
Não obstante, alguns autores, como Regiane Teresinha de Mello João[108], utilizam as palavras dever e obrigação como sinônimas.
No entanto, outros autores, como José Augusto Rodrigues Pinto[109], distinguem o significado destas duas palavras. Para eles, dever estaria relacionado ao estado de sujeição que autoriza qualquer pessoa exigir de outra uma determinada forma de agir ou se comportar, enquanto obrigação seria um estado de sujeição que decorre de lei ou de um contato e, portanto, permite que um indivíduo determinado exija de outro indivíduo também determinado certa forma de se comportar ou agir em decorrência da relação jurídica que possuem.
Em relação aos efeitos obrigacionais decorrentes do contato de emprego, alguns podem ter uma maior ou menor relação ao conteúdo trabalhista do contrato do que outros e, em decorrência disto, são classificados em: efeitos próprios do contrato de emprego e efeitos conexos ao contrato de emprego.
Classificam-se como efeitos próprios do contrato de emprego os que decorrem do próprio objeto do pacto laboral, têm natureza trabalhista, como, por exemplo, a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, o pagamento do salário, a prestação de serviços, etc.
Por outro lado, são conexos aqueles efeitos que resultam da celebração do contrato, mas não decorrem de seu objeto, não têm natureza trabalhista. São acessórios, têm conexão ao contrato.
Não gerar concorrência ao empregador se constitui como um efeito obrigacional do contrato de emprego (obrigação de não fazer) que deve ser observado pelo empregado. Seu descumprimento inclusive permite a despedida por justa causa, conforme já tratado acima.
Este efeito obrigacional de não gerar concorrência ao empregador está relacionado a outros efeitos obrigacional do contrato de emprego: o de boa-fé, o de lealdade ou fidelidade, o de confiança, o de obediência e o de sigilo.
4.2.1 Boa-fé contratual
O contrato de trabalho, como já tratado anteriormente, baseia-se em uma relação de fidúcia, em que há confiança recíproca entre empregado e empregador. Assim, a boa-fé pressupõe o caráter fiduciário da relação contratual, ou seja, o empregador espera do trabalhador qualidade de serviço, honestidade, etc., e o trabalhador, um tratamento condigno e o pagamento do salário combinado, por exemplo.
A boa-fé, portanto, é uma obrigação geral dos pactuantes. É caracterizada por impor às partes do contrato a obrigação de agirem sempre de maneira correta, com retidão e honestidade, em conformidade com os usos e costumes.
Segundo Regiane Teresinha de Mello João[110]:
Conquanto a boa-fé seja ingrediente básico a todos os contratos indistintamente, no contrato de trabalho assume um caráter especial, já que este cria direitos e obrigações não apenas patrimoniais, mas também de ordem pessoal.
O atual Código Civil – CC prevê em seu artigo 113, abaixo transcrito in verbis, que os negócios jurídicos em geral devem ser norteados pela boa-fé:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Prevê ainda em seu artigo 422, abaixo transcrito in verbis, que as partes contratantes devem agir de forma honesta, isto é, com probidade, pautadas na boa-fé, durante a execução do contrato e em sua conclusão:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Referidos dispositivos legais são aplicáveis no âmbito trabalhista por força do parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Neste passo, Catia Guimarães Raposo Novo[111] explica que a boa-fé se manifesta com mais intensidade no contrato de emprego do que em qualquer outro tipo contratual, pois “apesar de envolver direitos patrimoniais, mais que tudo, envolve um relacionamento contínuo entre empregado e empregador, que é revestido de todo um caráter ético, abrangendo deveres pessoais e morais”.
Para Célio Neto[112], este comportamento deve ser adotado inclusive, após o término do contrato, tendo em vista que mesmo findado existem questões decorrentes da sua execução que podem gerar efeitos transcendentes ao termo final.
Nas palavras de Márcio Granconato[113], “a boa-fé objetiva impõe obrigações no campo das relações de trabalho, durante sua execução e nas fases pré e pós-contratuais (art. 422 do CC)”.
Portanto, os contratantes desde a fase pré-contratual não devem se utilizar de meios ardis ou agir de má-fé para se beneficiar e, consequentemente, prejudicar a parte contraria.
4.2.2 Lealdade ou fidelidade contratual
Maurício Godinho Delgado[114] explica que a obrigação de lealdade ou fidelidade do empregado está relacionada a manifestações positivas (obrigações de fazer) e manifestações negativas (obrigação de não fazer) do empregado.
As primeiras caracterizadas por manter o empregador ciente de tudo que ocorre durante a prestação de serviços, como, por exemplo, a maneira que está o andamento da atividade realizada, a existência de perigos no local de trabalho, falta de instrumentos para o serviço, etc.
Já as segundas são caracterizadas pela não realização pelo empregado de atitudes que causem prejuízos ao empregador, tais como: não se deixar subornar, não divulgar informações sigilosas, não praticar concorrência ilícita, etc.
Dentre estas diversas obrigações do empregado de fazer e não fazer inerentes à lealdade e à fidelidade contratual se destacam: a de manter sigilo das informações confidenciais como por exemplo, quanto ao uso de determinadas fórmulas, procedimentos ou estratégias empresariais que teve conhecimento na empresa em que trabalhava; e, a de abster-se de práticas de concorrência ilícita.
Regiane Teresinha de Mello João[115], acerca desta questão, explica que:
A relação que decorre do contrato de trabalho confere ao trabalhador acesso ao sistema organizacional e produtivo da empresa, sendo essencial que se estabeleça uma base de confiança.
A obrigação de lealdade, contudo, não decorre exatamente do contrato de trabalho, mas de uma obrigação comunitária, fundada na inserção do trabalhador na empresa enquanto instituição.
Se despido o empregado do dever de lealdade, seria este presa fácil de terceiros interessados em usufruir de seus conhecimentos e acesso livre ao estabelecimento do empregador para a prática de atos de concorrência ilícita.
Desta forma, a obrigação de lealdade ou fidelidade do empregado diz respeito a não realização de atos que prejudiquem a empregadora, seja dentro da própria empresa ou fora dela, por todo o contrato de emprego e mesmo após seu término.
Para Célio Neto[116], a obrigação de lealdade ou fidelidade do empregado “implica que, mesmo após extinto o pacto laboral, permanece o dever das partes de não atuarem de modo a diminuir as vantagens ou causar danos ao antigo contratante”.
Catia Guimarães Raposo Novo[117] aponta que esta obrigação diz respeito à “conduta humana honrada, que pressupõe o agir com retidão, em virtude não só do interesse do empregado, como também da harmonia que deverá existir na organização de trabalho que ele integra”.
Não obstante, o empregado que deixa de cumprir com sua obrigação de lealdade ou fidelidade e recebe dinheiro ou qualquer outra utilidade, ou aceita promessa de paga ou recompensa para proporcionar vantagem a concorrente do empregador responde por crime de concorrência desleal, assim como aquele que lhe dá ou promete dinheiro ou outra utilidade, nos termos dos incisos IX e X do artigo 195 da Lei n. 9.279/96, Lei de Propriedade Industrial.
Além disso, esta prática, independentemente de estar ou não vinculada à concorrência, é caracterizada como falta grave do empregado e autoriza a ruptura do contrato de emprego por justa causa por prática de ato de improbidade, nos termos da alínea a do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Não bastasse, quando realizada pelo empregado negociação habitual por conta própria ou alheia sem autorização do empregador, representando ato de concorrência à empregadora ou ato prejudicial ao serviço, também é autorizada a ruptura do contrato de emprego por justa causa, nos termos da alínea c do artigo 482 do diploma celetista.
4.2.3 Confiança contratual
Está claro, por todo o exposto até aqui, que o contrato de emprego implica em um conjunto de direitos e obrigações, mas estes não são apenas de ordem patrimonial. São também de caráter pessoal, dizem respeito ao aspecto ético.
Esta modalidade contratual é construída com base na fidúcia recíproca entre os pactuantes, empregado e empregador. A obrigação de confiança diz respeito exatamente a esta fidúcia recíproca que deve existir entre aqueles que celebram o contrato de emprego.
Segundo Catia Guimarães Raposo Novo[118]:
O contrato de trabalho é alicerçado na confiança recíproca entre as partes, de modo que o dever de fidelidade, lealdade e colaboração estão nele implícitos, sendo certo que, quebrada a confiança entre as partes, o contrato de trabalho pode ser rescindido, por cometimento de falta grave.
Nas palavras de Sérgio Pinto Martins[119] “o contrato de trabalho tem por pressuposto a confiança entre as partes, a fidúcia. Se a confiança deixa de existir, o contrato de trabalho pode cessar, inclusive por justa causa”.
Inclusive, após o encerramento do pacto, empregado e empregador não devem praticados atos que traiam toda a fidúcia depositada durante a sua celebração e execução.
A preservação da confiança mesmo após o encerramento do contrato de emprego é fundamental para que uma parte não acabe por causar prejuízos à outra.
4.2.4 Obediência contratual
A obrigação de obediência do empregado está relacionada ao acatamento e cumprimento das ordens e comandos emitidos pelo empregador sobre a forma que deve ser realizada a prestação de serviços.
Esta obrigação é oriunda da subordinação, característica fundamental da relação de emprego, e está diretamente relacionada ao poder diretivo do empregador.
Em regra a obrigação de obediência deve ser observada pelo empregado no local e no momento de prestação de serviços. Todavia, quando o comportamento do empregado puder causar prejuízos ao crédito ou à reputação do empregador, sua observância também poderá ser exigida além destes limites.
O não cumprimento da obrigação de obediência pelo empregado poderá ensejar dois tipos de faltas graves, justificadoras da despedida por justa causa: insubordinação e indisciplina, previstas na alínea h do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
Em que pese isto, esta obrigação está restrita àquilo que seja lícito, respeite os bons costumes, à ordem pública, os direitos humanos e ao próprio empregado individualmente.
Portanto, o empregado pode opor direito de resistência quando as ordens emitidas pelo empregador transcenderem estes limites.
4.2.5 Sigilo contratual
A obrigação de sigilo do empregado diz respeito à postura ética de guardar segredo das informações confidenciais que saiba em decorrência do exercício de suas atividades laborais como, por exemplo, dados técnicos, mercadológicos e administrativos. Esta obrigação decorre da própria boa-fé e lealdade que regem o contrato de emprego.
Nas palavras de Sérgio Pinto Martins[120] “o empregado deve guardar sigilo em relação às informações que recebe do empregador ou pelo desenvolvimento do seu trabalho, não podendo divulga-las, principalmente a terceiros, notadamente quando sejam concorrentes do empregador”.
Regiane Teresinha de Mello João[121] aponta que “o dever de sigilo decorre diretamente do dever de lealdade enquanto obrigação inserida no contrato de trabalho”.
A autora[122] explica ainda que:
A conceituação do objeto dessa obrigação, denominado genericamente segredo, tem sentido amplo, estendendo-se a tudo que se relacione ao modo de produção, organização, dados, informações ou características internas da empresa que a diferencie das demais, tornando seu negócio viável e lucrativo e que, levando ao conhecimento de terceiros, poderia trazer prejuízo ao empregador. (Destaque original)
Esta obrigação de sigilo está prevista na própria Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, na alínea g de seu artigo 482, e na Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/96), como hipótese de crime de concorrência desleal, no inciso IX do seu artigo 195.
A legislação trabalhista trata apenas do sigilo durante a vigência do contrato de emprego. A Lei de Propriedade Industrial, no entanto, prevê como crime de concorrência desleal a quebra da obrigação de sigilo durante a vigência do contrato de emprego e mesmo após seu término.
Todavia, existe uma linha tênue entre estas informações confidenciais sobre as quais o empregado deve manter segredo (conhecimento objetivo) e o conhecimento adquirido durante a prestação de serviços que compõe suas qualificações profissionais (conhecimento subjetivo), que podem e devem ser utilizadas no caso de prestar serviços a outro empregador.
4.3 Função social do contrato
Todo contrato que é celebrado surte efeitos além das partes contratantes, tem impacto social. Em decorrência disto, os interesses individuais dos pactuantes devem estar em consonância com os sociais, de toda a coletividade.
A função social do contrato exige, segundo Paulo Luiz Netto Lobo[123], que:
Os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sem que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê expressamente no artigo 421 do Código Civil – CC que os contratos devem observar a sua função social, conforme se verifica da transcrição feita abaixo in verbis:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Este dispositivo legal deve ser aplicado em conjunto: com o artigo 112 deste mesmo diploma legal, segundo o qual “nas declarações de vontade das partes se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem”; com o artigo 113 do CC, que determina que os negócios jurídicos sejam interpretados de acordo com a boa-fé e os usos do local de sua celebração; e, com o próprio artigo 422 também do CC, que impõe aos contratantes à observância da boa-fé e honestidade durante a execução e mesmo na conclusão do pacto.
Com efeito, estas disposições legais são aplicáveis ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
A função social, portanto, funciona como limitador da liberdade das partes contratantes e norteia, juntamente com outros elementos, a melhor interpretação que deve ser aplicada às manifestações de vontade inseridas no contrato e a extensão que pode ser dada a seus efeitos, durante a vigência do pacto ou mesmo após o seu encerramento.
Nas palavras de Célio Neto[124], “a função social do contrato prevista pelo art. 421 do CC limita a autonomia privada, e tem por objeto a busca de comportamento ético, com exata comutatividade e boa-fé, mesmo após a extinção do contrato”.
Desta forma, empregado e empregador, mais do que apenas cumprir com os deveres contratuais e legais trabalhistas, devem agir pautados na função social que detêm por força do contrato de emprego, nos termos do e artigo 421 do CC.
5 INSERÇÃO DA CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA NO CONTRATO DE EMPREGO BRASILEIRO
5.1 Colisão entre direitos fundamentais
Conforme já abordado alhures, a cláusula de não concorrência visa evitar que os conhecimentos adquiridos ao longo da prestação de serviço (Know how) pelo empregado durante o contrato de trabalho seja utilizado em prejuízo dos interesses da ex-empregadora.
Para isto, impede que o empregado, após a rescisão do contrato de trabalho, exerça uma atividade que se assemelhe à exercida ao longo da prestação de serviços, seja como empregado de uma concorrente, seja de forma independente, em local e durante o período de tempo em que estes atos possam ensejar danos à ex-empregadora.
O grande bem jurídico que se visa assegurar por meio da cláusula de não concorrência é a propriedade do empregador (inventos, segredos comerciais, industriais, métodos e processos de produção, projetos, etc).
Segundo Regiane Teresinha de Mello João[125], “mais que a propriedade de máquinas e bens de produção, as empresas têm na propriedade intelectual seu maior patrimônio e o bem maior a ser protegido em face dos concorrentes”.
Ocorre que na mesma medida em que esta cláusula dá proteção à propriedade do empregador, restringe a liberdade de trabalho do empregado, já que o impede de exercer determinada atividade, por certo tempo em local específico.
Nesta situação há, portanto, dois direitos fundamentais em colisão: o direito de propriedade do empregador e o direito à liberdade de trabalho do empregado.
Estes dois direitos têm as mesmas raízes históricas, se consolidaram como frutos das Revoluções Francesa e Industrial e da evolução do sistema capitalista. São elementos essenciais ao sistema produtivo.
Em decorrência disto, no ordenamento jurídico atual brasileiro, permanecem lado a lado como fundamentos da ordem econômica.
Ao mesmo tempo, são direitos intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, pertencem exclusivamente ao indivíduo e devem ser observados, cumpridos e respeitados pelo Estado.
Conforme também já tratado anteriormente, Tanto o direito de propriedade quanto o direito à liberdade de trabalho estão assegurados na própria Constituição Federal - CF: o direito de propriedade no inciso XXII de seu artigo 5º e o direito de liberdade de trabalho do empregado no inciso XIII do mesmo artigo 5º.
Ambos fazem parte do núcleo imutável da Carta Maior, isto é, são cláusulas pétreas nos termos do inciso IV do § 4º do artigo 60 da Carta Maior e, portanto, direitos irrevogáveis pelo poder constituinte derivado.
Não bastasse, neste conflito estão ainda envolvidas diversas outras garantias constitucionais.
Ao lado do direito de propriedade do empregador, somam-se as garantidas: da livre iniciativa, assegurada no inciso IV do artigo 1º da CF e caput do artigo 170 da CF (abaixo transcritos in verbis); da livre concorrência, prevista no inciso IV do artigo 170 da CF (in verbis abaixo transcrito); e, própria propriedade privada, tratada no inciso II do artigo 170 da CF (também transcrito in verbis abaixo):
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Destaque ausente no original)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
II. propriedade privada;
(...)
IV. livre concorrência; (Grifos ausentes no original)
Já ao direito de liberdade de trabalho do empregado agregam-se às garantias: do valor social do trabalho, previsto no inciso IV do artigo 1º da CF (abaixo transcrito in verbis); do trabalho como direito social capaz de prover a existência digna, nos termos do artigo 6º da CF (abaixo também transcrito in verbis); da valorização do trabalho humano, tratada no caput do artigo 170 da CF (in verbis abaixo transcrito); e, da busca do pleno emprego, assegurada no inciso VIII do artigo 170 da CF (abaixo transcrito in verbis):
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Grifo ausente no original)
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Destaque ausente no original)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VIII. busca do pleno emprego; (Grifos ausentes no original)
Acerca desta questão Alice Monteiro de Barros[126] afirma que:
A inserção da cláusula de não concorrência nos contratos de trabalho é polêmica, pois se de um lado ela é necessária à proteção dos legítimos interesses da empresa, numa época em que o capital intelectual importa mais do que o segredo de fabricação, dada a intensa concorrência a que são submetidas as empresas, de outro lado ela poderá infringir a liberdade de trabalho, ofício ou profissão assegurada em preceito constitucional.
Para agravar esta situação, não existe previsão expressa na legislação trabalhista acerca da cláusula de não concorrência, restando dúvidas sobre sua legalidade, requisitos e limites.
Nas palavras de Estêvão Mallet[127]:
A omissão da legislação trabalhista na disciplina da cláusula de não-concorrência, voltada a impedir ou limitar o exercício de certas atividades pelo empregado após a extinção de seu contrato de trabalho, faz com que se ponha até mesmo em dúvida a licitude da pactuação.
E, em decorrência disto, há grande discussão acerca da possibilidade ou não de ser utilizada esta cláusula nos contratos de emprego brasileiros, se seria ou não válida à luz do ordenamento jurídico pátrio e tendo em vista que nenhum direito é tido como de caráter absoluto.
Para se alcançar uma conclusão dentro desta discussão é necessário se fazer uso das regras de hermenêutica[128], utilizar de meio de solução de colisão entre direitos fundamentais, das normas gerais do direito brasileiro e realizar análise sistemática[129] e teleológica[130] do ordenamento jurídico nacional.
5.1.1 Aplicação do princípio da proporcionalidade
Quando dois direitos tutelados da mesma forma pela Constituição Federal se confrontam em uma determinada situação concreta se diz ocorrer uma colisão entre direitos fundamentais.
Bruno Moraes Faria Monteiro Belém[131] explica que a moderna dogmática jurídica conduzida pelos ensinamentos de Ronald Dworkin concluiu que as normas se classificam em normas-princípios, que são princípios propriamente ditos, e normas-disposição, que são regras. Princípios e regras, assim, são espécies do gênero norma.
Nas palavras de Nádia de Castro Alves[132] os princípios “são as normas jurídicas de natureza lógica anterior e superior às regras e que servem de base para a criação, aplicação e interpretação do direito”, enquanto que as regas “são normas jurídicas destinadas a dar concreção aos princípios”.
Com efeito, a autora[133] aponta que, na teoria de Ronald Dworkin, a distinção entre estes princípios e regras é feita com base em dois critérios.
O primeiro critério, de ordem lógica, distingue as regras e princípios tendo em vista que as regras fixam previamente uma solução e, por isso, são de aplicação automática, ou seja, são ou não aplicáveis por completo, enquanto que os princípios não são automaticamente aplicáveis, têm conteúdo valorativo, dão a direção a ser seguida.
Já o segundo critério, de natureza axiológica, aponta ser possível que em um caso concreto ocorra colisão entre princípios e, nesta hipótese, não é admissível que a incidência de um deles seja totalmente excluída ou totalmente aplicada. A prevalência de um princípio sobre outro deve ser adotada sempre de forma fundamentada, tendo em vista a importância e o peso de cada um deles, ou seja, de maneira ponderada.
Essa prevalência de um princípio sobre outro é determinada para um caso concreto e, portanto, na colisão entre os mesmo princípios podem ser obtidas diversas soluções de caso para caso. Em decorrência disto, diz-se que os princípios têm precedência prima facie, isto é, condicionada à análise do caso prático.
Leonardo A. de Andrade Barbosa[134] explica que, segundo a teoria de Robert Alexy, os princípios são mandados de otimização, isto é, podem ser efetivados em graus diversos e a medida de seu cumprimento depende das possibilidades fáticas e jurídicas.
Acerca desta questão, Nádia de Castro Alves[135] expõe que de acordo com esta teoria os princípios “poderão ser cumpridos em diferentes graus, estabelecendo um dever prima facie”, já as regas “contêm determinações no âmbito fático e juridicamente possível, por isso elas são cumpridas ou não”.
Neste passo, Bruno Moraes Faria Monteiro Belém[136] expõe que:
Os princípios cumprem o papel de orientação das soluções jurídicas a serem buscadas diante dos casos submetidos à apreciação do intérprete. Constituem verdadeiros vetores de sentido para as demais normas, exercendo uma função argumentativa. Por conseguinte, revelam pontos de vista que devem ser considerados no equacionamento dos casos de colisão de direitos fundamentais.
No entanto, quando existente um conflito entre regras não é possível ser utilizado este método de ponderação. A regra não é flexível como os princípios e, por isso, incidirá ou não no caso concreto. Deixará de nele incidir se for inválida, se não tiver mais em vigor ou se houver uma mais específica. A aplicação das regras, portanto, não ocorre por meio de ponderação como os princípios, mas mediante subsunção (aplicação do conteúdo de uma norma em um caso concreto).
Acerca desta questão, Leonardo A. de Andrade Barbosa[137] ressalta que “o conflito entre regras remete a um problema de validade: regas antinômicas não podem valer simultaneamente no âmbito de um mesmo sistema jurídico. Ou se exclui uma das regas em conflito ou se constrói uma cláusula de exceção”.
Bruno Moraes Faria Monteiro Belém[138] explica que a teoria dos princípios formulada por Robert Alexy aponta que a colisão entre direitos fundamentais é uma colisão em concreto entre normas-princípios, pois os direitos fundamentais apresentam caráter normativo principal.
Esta constatação é fundamental para se determinar o método de solução de conflito que deve ser empregado.
Como meio de solução da colisão entre direitos fundamentais quando a aplicação de um ocasiona a restrição de outro e inexiste hierarquia abstrata entre eles é aplicado o princípio da proporcionalidade ou princípio de proibição de excesso.
Este princípio funciona como critério norteador do alcance e da extensão da restrição de um direito fundamental. Tem como finalidade a restrição de um direito da melhor maneira e com os menores prejuízos à coletividade possíveis.
Bruno Moraes Faria Monteiro Belém[139] aponta que:
O princípio da proporcionalidade visa à restrição do arbítrio e à moderação do exercício do poder com vistas à proteção dos direitos dos cidadãos. Esse princípio apresenta-se como ferramenta para a solução dos casos de colisão de direitos, de forma a tutelar uma multiplicidade de interesses coexistentes, reforçando o papel da jurisdição constitucional como garantidora de uma ordem jurídica justa.
Este princípio se divide em três subprincípios: da adequação, da necessidade (ou da exigibilidade ou da menor ingerência possível ou da intervenção mínima) e da proporcionalidade em sentido estrito.
O primeiro determina que a medida restritiva de um direito fundamental seja precisa e adequada à garantia de outro direito constitucionalmente garantido, ou seja, a medida restritiva deve permitir que a finalidade almejada seja atingida; o segundo determina que a medida adotada para limitar o direito fundamental deve ser necessária para se atingir o objetivo pretendido tendo em vista a inexistência de outra medida menos gravosa. E, o terceiro, determina que a medida adotada implique em mais benefícios ao interesse social que prejuízos ao direito restrito.
Segundo Célio Neto[140]:
Cabe ao aplicador do direito o uso do princípio da proporcionalidade, a fim de buscar a limitação de determinado direito atingido em relação com o bem, valor ou direito que se busca proteger. Assim, o caso concreto deverá ser resolvido à luz do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios da adequação, necessidade, e proporcionalidade em sentido estrito. (Destaques originais)
Nas palavras de Márcio Granconato[141]:
Esse princípio serve como critério orientador para a resolução de conflitos entre os direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos nas mais variadas espécies de relações jurídicas, inclusive naquele vínculo mantido entre empregado e empregador.
Logo, na colisão entre o direito fundamental de propriedade do empregador e direito fundamental à liberdade de trabalho do empregado ocasionada por cláusula de não concorrência, deve ser utilizada, como meio de solução, a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Deve-se analisar se a restrição proporcionada por cláusula de não concorrência ao direito de liberdade do trabalhador para a proteção do direito de propriedade do empregador (inventos, segredos comerciais, industriais, métodos e processos de produção, projetos, etc) realmente proporciona a proteção pretendida e o faz de maneira adequada, eficaz, da forma menos prejudicial possível ao empregado e implique em mais benefícios ao interesse coletivo do que prejuízos à liberdade de trabalho do empregado que foi restrita.
Neste diapasão, Márcio Granconato[142] esclarece que “justamente a finalidade em concreto da empresa e a necessidade de assegurar o seu bom funcionamento é que podem levar a se admitirem restrições aos direitos fundamentais do trabalhador”. Desta forma, os prejuízos que podem ser ocasionados pela prática de atos concorrenciais por parte do ex-empregado podem ir além do patrimônio empresarial, e atingir a função que desempenha perante toda a coletividade, como, por exemplo, gerar empregos.
Em que pese isto, Regiane Teresinha de Mello João[143] aponta que “o pacto de não concorrência deve estar delimitado de forma a assegurar que seu cumprimento não implique ônus excessivo e injustificado ao empregado através de uma interdição absoluta e geral”. A restrição imposta por esta cláusula ao trabalhador, portanto, não pode ser total, deve ser a mínima possível e apenas na medida necessária a se assegurar o patrimônio empresarial e o interesse social refletido na função social desempenhada pela empregadora e na do próprio contrato firmado (inciso XXIII do artigo 5º e inciso III do artigo 170 da Constituição Federal – CF e artigo 421 do Código Civil – CC, aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
Esta análise baseada na teoria pós-positivista dos princípios, no entanto, deve ser realizada caso a caso e de acordo com as disposições contidas no ordenamento jurídico brasileiro.
5.1.2 Análise do ordenamento jurídico nacional e aplicação de normas gerais do direito brasileiro
Conforme já tratado anteriormente, não há disposição legal no ordenamento jurídico brasileiro dispondo sobre cláusula de não concorrência inserida em contratos de emprego.
Portanto, para se avaliar a possibilidade ou não de sua celebração é necessário se analisar as normais gerais do direito brasileiro e a direção para a qual tende o ordenamento jurídico nacional acerca desta questão quando avaliado como um todo, de maneira sistemática e teleológica.
A Constituição Federal - CF determina no inciso II do seu artigo 5º, transcrito in verbis abaixo, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão por força de lei:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II. ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Assim, em decorrência desta determinação constitucional, pode ser objeto de estipulação entre particulares tudo aquilo que não contravenha a lei.
Inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, proibição legal expressa de que seja pactuada cláusula de não concorrência em contratos de emprego. Tal fato representa um passo favorável à possibilidade de sua celebração.
Neste mesmo sentido, o artigo 122 do Código Civil - CC, abaixo também transcrito in verbis, autoriza que os particulares pactuem condições que não sejam contrárias à lei, à ordem pública e aos bons costumes:
Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. (Destaque ausente no original)
Sérgio Pinto Martins[144] explica que, de acordo com a primeira parte deste artigo as cláusulas contratuais celebradas são lícitas em princípio. São coibidas, de acordo com a segunda parte, apenas aquelas disposições puramente potestativas, isto é, que deixam a eficácia do contrato ao arbítrio livre de um dos pactuantes.
Referido dispositivo legal pode ser aplicado ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. Além disso, também pode ser entendido como favorável à possibilidade de celebração da cláusula de não concorrência desde que ela não se apresente contrária a alguma disposição legal, à ordem pública e aos bons costumes, tampouco tenha sua eficácia condicionada apenas à vontade de uma das partes.
Com efeito, o próprio diploma celetista prestigia a autonomia da vontade[145] e autoriza os pactuantes da relação de trabalho estipularem livremente entre si condições que não contrariem as disposições de proteção ao trabalho (inseridas no Capítulo II da Carta Maior, em destaque, em seu artigo 7º), as normas coletivas aplicáveis e às decisões de autoridades competentes conforme se verifica do texto de seu artigo 444, in verbis abaixo transcrito:
Art. 444. As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Neste diapasão, não há, em uma primeira análise, impossibilidade de ser celebrada cláusula de não concorrência com base neste dispositivo legal, já que ela não contraria as disposições de proteção ao trabalho, mas, tão somente, oferece restrição parcial à liberdade de trabalho garantida no inciso XIII do artigo 5º da Carta Magna que pode ser solucionada pela aplicação do princípio da proporcionalidade.
Não obstante, o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, abaixo transcrito in verbis, aponta que a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito devem ser utilizados para a adoção de uma decisão quando a lei for omissa:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
A LINDB determina ainda, em seu artigo 5º, também transcrito in verbis abaixo, que sejam observados os fins sociais e as exigências do bem comum na aplicação da lei:
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Por derradeiro, o caput do artigo 8º da CLT, in verbis abaixo transcrito, autoriza que na ausência de disposição legal o caso concreto seja decidido por analogia, equidade, de acordo com os usos e costumes e, em especial, em consonância com os princípios e normas gerais de direito, o direito comparado, a jurisprudência, e observado o interesse público:
Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (Destaque ausente no original)
Logo, estes dispositivos legais autorizam a aplicação do princípio da proporcionalidade como meio de solução do conflito entre direitos fundamentais ocasionado pela cláusula de não concorrência, e ainda determina que nesta decisão seja levado em consideração o interesse social.
Ora, conforme já exposto anteriormente, os prejuízos que podem ser ocasionados pela prática de atos concorrenciais por parte do ex-empregado podem ir além do patrimônio empresarial, e atingir a função que desempenha perante toda a coletividade, como, por exemplo, gerar empregos.
Segundo Célio Neto[146]:
(...) os fundamentos para a aplicação da cláusula não concorrência após o encerramento do contrato de trabalho podem ser encontrados nos seguintes dispositivos da legislação celetária: a) Art. 8º da CLT que permite a aplicação, dentre outros, da equidade, dos princípios de direito, do direito comparado e do direito civil como fontes subsidiárias de aplicação do direito do trabalho; b) Art. 444 da CLT, que enuncia a liberdade para estipulação das condições contratuais, se não contrárias às disposições de proteção ao trabalho.
Por outro lado, conforme já abordado alhures, o diploma celetista trata, tão somente, da prática de atos concorrências durante a vigência do pacto laboral: permite que o empregado seja despedido por justa causa se praticar ato de concorrência à empresa para a qual trabalha ou se violar segredo da empresa (alíneas c e g do artigo 482 da CLT, respectivamente).
Além disso, a lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/96) tipifica como crime de concorrência desleal a prática pelo empregado de atos concorrenciais à empregadora, deixando claro que o trabalhador tem dever de sigilo do conhecimento e informações obtidas em decorrência da função laboral desempenhada na empresa, bem como o dever de lealdade para com o empregador ao longo do pacto laboral e mesmo após o seu término (incisos IX, X e XI do artigo 195).
Tal disposição legal está em consonância com o atual texto da Convenção da União de Paris – CUP, revisado pela última vez em 1967 em Estocolmo e aderida pelo Brasil em 1992, que tem a finalidade de proteger a propriedade industrial e que coibir a prática de atos de concorrência desleal (artigos 1º, 2 e 10 bis)[147].
Desta forma, em que pese não exista no ordenamento jurídico nacional disposição expressa tratando da inserção de cláusula de não concorrência em contratos de trabalho, tampouco regulamentação acerca de seus limites, daquilo que pode ser objeto de restrição, esta disposição da Lei de Propriedade Industrial, sem dúvidas, indica a direção para a qual tende o direito brasileiro.
Segundo Regiane Teresinha de Mello João[148]:
Os pactos de exclusão de concorrência após a ruptura do contrato de trabalho se caracterizam como convenção entre empregado e empregador para expandir os efeitos do art. 482, c e g, bem como se encontram em harmonia com o disposto no art. 195, IX, X e XI, da Lei 9.279/96.
Para corroborar, mesmo após o encerramento do contrato de emprego às partes contratantes devem continuar agindo de boa-fé (artigo 113 e 422 do CC, aplicáveis ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT) e em observância às obrigações de lealdade, confiança, obediência e sigilo, especificamente já abordados.
Logo, não gerar concorrência ao empregador mesmo após o término do contrato de emprego é uma obrigação implícita do próprio contrato, decorrente desta postura ética que deve permear os negócios jurídicos.
Alice Monteiro de Barros[149] explica que “a concorrência desleal traduz violação ao deve de fidelidade, constituído por obrigação de não fazer, sendo uma consequência do princípio da boa-fé”.
Por derradeiro, a própria Organização Internacional do Trabalho – OIT, da qual o Brasil é membro, segundo Estêvão Mallet[150], adota resolução favorável desde 1928 à validade da cláusula de não concorrência inserida em contrato individual de trabalho desde que respeitados determinados limites.
Em projetos de criação de um Código do Trabalho foi acrescida disposição expressa, dentre as normas referentes ao contrato de emprego, autorizando a criação de cláusulas de não concorrência desde que observados os requisitos e limites ali impostos. Como exemplo, podem ser citados os anteprojetos de Código de Trabalho de 1963 e de 1965 (artigo 381 de ambos os anteprojetos) e o anteprojeto de Consolidação das Leis do Trabalho de 1979 (artigo 26).[151]
Atualmente, tramita perante o Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 986/2011 do deputado Carlos Bezerra que visa acrescer à CLT o artigo 444-A que autoriza a celebração de cláusula de não concorrência para empregados que tenham conhecimentos estratégicos da empresa em razão das atividades por ele exercidas, cuja divulgação possa causar prejuízos à empregadora desde que observados uma série de requisitos.[152]
Logo, fazendo-se uma análise do ordenamento jurídico brasileiro como um todo, é possível se concluir que a inserção de cláusula de não concorrência em contratos de trabalho é possível, por não existir proibição expressa legal; pela própria legislação pender a sua legalidade e, em uma primeira análise, não ser contrária aos usos e costumes, à ordem pública e ao próprio interesse coletivo.
5.1.3 Aplicação do direito comparado
Por todo o já exposto alhures, é possível se depreender que para se chegar à conclusão acerca da possibilidade ou não de inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego é permitida a utilização do direito comparado[153] nos termos do caput do artigo 8º da CLT, abaixo novamente transcrito in verbis:
Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (Destaque ausente no original)
Segundo Sérgio Pinto Martins[154] “havendo omissão sobre o assunto na nossa legislação, é o caso de se aplicar o direito comparado, por expressa previsão do art. 8º da CLT, desde que o interesse particular não prevaleça sobre o interesse público”.
Nesta toada, a legislação estrangeira tem autorizado a inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego, a exemplo da Itália, Espanha e Portugal. Em outros países, em que pese não exista legislação específica, a cláusula tem sido admitida pelos tribunais e tratada em instrumentos coletivos, como, por exemplo, na França. Há ainda países que a cláusula de não concorrência é admitida pela legislação e regulada por meio de instrumentos coletivos como, por exemplo, na Bélgica.
Nos Estados Unidos da América, a cláusula de não concorrência (non-compete clause), na maioria dos estados, é admitida. Foi neste país que esta cláusula foi fixada pela primeira vez.
Regiane Teresinha de Mello João[155] explica que, por cada estado ter sua legislação específica, este país tem um sistema misto: de previsão legal em alguns estados e de aplicação dos usos e costumes em outros, ficando a cargo do judiciário a delimitar os critérios de aplicação e exequibilidade deste tipo de cláusula podendo, inclusive, acontecer de ela não ser reconhecida.
Segundo a autora[156] nos estados do Texas, Flórida e Wisconsin existe legislação tratando sobre cláusula de não concorrência e ela tem sido admitida desde que observados os requisitos impostos por lei. Já nos estados da Pensilvânia, Maryland e New York não há disposição legal sobre o tema, mas os tribunais têm entendido pela possibilidade de sua celebração quando pactuada com razoabilidade.
No estado do Texas, ela deve decorrer de acordo entre as partes, a restrição deve ser necessária à proteção dos interesses do empregador e deve decorrer dos conhecimentos fornecidos pela empresa ao empregado para a execução de suas atividades e que a restrição imposta seja razoável[157].
Na Flórida, a legislação determina que sejam estabelecidos critérios acerca da duração e do objeto da restrição.
E, no estado de Wisconsin, é exigido que seja fixada limitação temporal e geográfica para a restrição, que ela seja imprescindível a proteção dos interesses do empregador, além de fixada de forma razoável.
Não obstante, no estado da Pensilvânia os tribunais exigem que a cláusula de não concorrência atenda ao critério da razoabilidade e, em decorrência disto, acontece, por exemplo, de validarem cláusula que aplique restrição por período temporal longo, mas em pequena região geográfica, assim como que aplique restrição por um período temporal curto, mas em uma região geográfica mais vasta.
No estado de Maryland, estes requisitos também são exigidos em regra, mas já ocorreu de ser validada cláusula de não concorrência sem delimitação geográfica sob o fundamento de que a atuação da empresa era sujeita a uma concorrência não delimitada e, portanto, a imposição deste requisito tornaria inócua a finalidade da cláusula.
E, no estado de New York é exigido que a cláusula aplique restrição na medida necessária à proteção dos interesses do empregador e que não seja contrária aos interesses coletivos.
Na França, como já citado, não há lei que trate sobre cláusula de não concorrência (clause de non réembauchage). O tema, geralmente, é tratado em instrumentos coletivos.
Em que pese isto, a cláusula de não concorrência foi admitida na decisão da Corte de Cassação de 12 de janeiro de 2000 e permitida a restrição do desempenho de atividades de ex-empregado em empresa que seja concorrente, mas desde que indispensável para a proteção de interesses do ex-empregador e não impeça o trabalhador de obter novo emprego com base em sua formação e experiência profissional.
Célio Neto[158] explica que a avaliação deste risco empresarial que autoriza a celebração da cláusula de não concorrência na França leva em conta a função que foi exercida pelo trabalhador na empresa e se ele tinha contato com clientela, acesso a informações relevantes sobre a empresa e se adquiriu know how; a existência de concorrentes que possam admitir este trabalhador e oferecer risco a atividade empresarial da ex-empregadora.
Alice Monteiro de Barros[159], por seu turno, aponta que autores franceses criticam esta decisão por não impor limitação temporal e geográfica à cláusula de não concorrência.
Em que pese isto, Sérgio Pinto Martins[160] aponta que a maioria das normas coletivas que instituem cláusula de não concorrência a estabelecem por um prazo máximo de dois anos. Além disso, explica que o pagamento de compensação financeira pela restrição não é obrigatória e nem se constitui como requisito de validade da cláusula, mas, geralmente, os instrumentos coletivos estabelecem o pagamento de uma retribuição ao ex-empregado que tem sua liberdade de trabalho restrita e, esta retribuição, para os tribunais Franceses, é tida como de natureza salarial e não indenizatória.
Na Alemanha, não existe uma proibição legal expressa de que o então ex-empregado não deve concorrer com a antiga empregadora.
No entanto, é admitido que as partes firmem cláusula de não concorrência (Konkurrenzklausel) entre si. Em regra, este tipo de cláusula é estabelecida para empregados de comércio.
Para que seja válida, deve ser fixada pelo prazo máximo de dois anos, deve ser paga uma indenização financeira para compensar a restrição sofrida pelo ex-trabalhador.
Já na Suíça, segundo Sérgio Pinto Martins[161], é admitida a cláusula de não concorrência desde que exista risco real de o ex-empregado causar prejuízos a ex-empregadora. O Código suíço de obrigações limita a restrição imposta pela cláusula de não concorrência no prazo máximo de três anos, sendo possível, em situações excepcionais, não pré-fixados pelo legislador, que é possível o elastecimento deste prazo.
Com efeito, na Bélgica, a cláusula de não concorrência é admitida expressamente na legislação e é definida como impedimento a um trabalhador de exercer atividades similares às exercidas na antiga empregadora em outra empresa se existente risco de prejuízos à antiga empregadora em decorrência do conhecimento adquirido durante o pacto laboral.
Esta cláusula, geralmente é regulada em instrumentos coletivos. Deve ser escrita, não pode ser fixada por período superior a doze meses, deve ter limitado o local onde a restrição é válida, deve ser paga indenização compensatória de forma única no valor de metade da remuneração bruta do empregado quando da aplicação da cláusula e, ainda, a cláusula deixa de ter validade se o contrato de emprego é encerrado no período de experiência.
Segundo Regiane Teresinha de Mello João[162], a legislação belga determina os trabalhadores que podem sofrer restrição por meio de cláusula de não concorrência de acordo com a remuneração anual percebida. Se o empregado recebe menos que um valor fixado por lei, não pode sofrer a restrição. Se o empregado recebe remuneração anual que ultrapassa um valor fixado em lei, ele poderá sofrer a restrição por meio de cláusula fixada no próprio contrato de emprego, salvo exclusões feitas em instrumento coletivo. E, se o empregado recebe uma remuneração intermediária a cláusula poderá ser aplicada apenas aos trabalhadores de funções específicas delimitadas em instrumento coletivo.
Além disso, a autora explica[163] que para empregados que exerçam função que lhes proporcione conhecimentos estratégicos da empregadora e, ou desempenhem atividade internacional ou tenham interesse econômico, técnico e financeiro em mercado internacional, é possível se estender os efeitos da restrição imposta por cláusula de não concorrência para além do território nacional e por período superior a doze meses.
A Bélgica, portanto, tem um sistema misto acerca da cláusula de não concorrência: é prevista na legislação e em normas coletivas.
Na Itália a liberdade de trabalho é assegurada constitucionalmente. Em que pese isto, Célio Neto[164] aponta que o Código Civil Italiano, em seu artigo 2.125 permite que seja celebrada cláusula de não concorrência (patto di non concorrenza) quando o empregado conhece segredos da empresa como fórmulas e métodos de fabricação. No entanto, ela deve ser, necessariamente, escrita, limitar de forma detalhada as atividades que não podem ser realizadas pelo então ex-empregado, o local e por quanto tempo e, ainda, pagar uma indenização adequada ao trabalhador pela restrição sofrida sob pena de nulidade.
Além disso, a própria legislação determina que esta cláusula não pode celebrar restrição por tempo superior a cinco anos no caso de dirigente e superior a três anos nas demais hipóteses, sob pena de ser reduzida nos termos da própria legislação.
Sérgio Pinto Martins[165], acerca da cláusula de não concorrência na Itália, expõe que:
A jurisprudência italiana estabeleceu alguns limites: permitir ao trabalhador, em sua próxima atividade, um ganho idôneo e compatível com as exigências e os padrões de vida que levava (Corte de Cassação, Sez. Civ. Lav. Sent. nº 5477/2000); não se admite que o pacto abranja toda e qualquer atividade ou que o objeto seja muito amplo e a correlata compensação seja simbólica (tribunal de Modena, 2000); se a compensação financeira do pacto, objeto do art. 2.125 não é adequada e proporcional, o pacto é nulo.
Não obstante, na Espanha, a liberdade de trabalho é tida como direito fundamental de todo cidadão e é garantida na Constituição Federal do país.
Alice Monteiro de Barros[166] explica que, em que pese isto, a cláusula de não concorrência (pacto de no competencia) é autorizada no artigo 21 do Estatuto do Trabalhador desde que haja realmente interesse do empregador, que não seja aplicada restrição superior a dois anos para técnicos e a seis meses nos outros casos e, ainda, seja paga uma adequada compensação financeira ao ex-trabalhador (mas, a lei não estabelece qualquer critério ou valor para a sua fixação).
Além disso, Regiane Teresinha de Mello João[167] aponta que a legislação espanhola não obriga que esta cláusula estabeleça limitação geográfica da restrição aplicada ao ex-empregado.
É admitido, no entanto, que o ex-empregado rescinda a cláusula por meio de pré-aviso de trinta dias feito de forma escrita à empresa. Consequentemente, a indenização pactuada não precisará ser paga. E, em que pese isto, inexiste previsão acerca da possibilidade de o empregador rescindir esta cláusula.
Por outro lado, em Portugal há vedação constitucional à restrição da liberdade de trabalho no artigo 47º da Constituição do país e, em especial, quando há efeitos após o término do contrato, já esta transcendência temporal não é a regra autorizada pelo Código do Trabalho português.
Mas, em decorrência da importância da cláusula de não concorrência na gestão empresarial, esta cláusula é admitida pelo Código do Trabalho português desde que seja firmada por escrito; a restrição imposta à liberdade de trabalho do empregado seja devidamente justificada, não seja genérica e seja imprescindível para evitar efetivo prejuízo ao então ex-empregador; tenha limitação temporal não superior a dois anos ou a três anos nos casos de empregado que exercia cargo de confiança ou atividade com acesso à informações estratégicas para concorrência; tenha limitação geográfica, isto é, seja limitada a região na qual o empregado terá que respeitar a restrição; e, deverá ser paga ao ex-empregado indenização compensativa (compensação financeira) adequada, pactuada pelas partes.
Sérgio Pinto Martins[168] aponta que desta compensação financeira é autorizada a dedução da importância auferida pelo ex-trabalhador no exercício de outra atividade profissional iniciada após o término do contrato de emprego, até o valor máximo fixado em lei.
Márcio Granconato[169] explica que:
(...) a norma em questão autoriza a ocorrência de um ajuste que impede o trabalhador de exercer de forma irrestrita sua liberdade de trabalho, compensando-o financeiramente por isso. A cláusula visa comprometer o empregado a não praticar ação que acarrete desvio de clientela do empregador, ficando limitado em sua atuação por conta própria ou alheia, sendo que os motivos que podem ensejar a limitação são os conhecimentos técnicos, segredos de fabricação ou relações com a clientela obtidos no transcurso do contrato de trabalho.
O autor[170] expõe ainda que a doutrina portuguesa majoritária entende que a cláusula de não concorrência não contraria o artigo 47º da Constituição do país, já que apenas cria uma restrição transitória, relativa e justificada à liberdade de trabalho do empregado, pois não há impedimento ao exercício da profissão em empresa que não seja concorrente do ex-empregador ou se desvincule do pacto por meio da devida compensação pelos prejuízos que causar. Além disso, entende que a validade desta cláusula no caso concreto deve ser avaliada de acordo com a legislação e a razoabilidade.
Por todo o exposto, se depreende que a tendência do direito estrangeiro é a admissão da inserção da cláusula de não concorrência em contratos de emprego em decorrência da sua grande importância para a proteção dos bens do empregador e do próprio interesse público, mas desde que o empregado não seja totalmente afastado da atividade laboral, apenas sofra uma restrição a atividades determinadas que ofereçam risco efetivo.
Além disso, a validade desta cláusula fica condicionada ao cumpridos de diversos requisitos, em destaque: a expressa delimitação e descrição das atividades que o trabalhador não poderá desempenhar após o encerramento do contato de trabalho; a demonstração da existência de prejuízos iminentes aos interesses do empregador e ao interesse de toda a coletividade; a delimitação da região geográfica em que se aplica a restrição e do período de tempo pelo qual ela perdurará; e, pagamento de uma compensação financeira adequada pela restrição sofrida.
Este estudo da tendência do direito estrangeiro, sem sobra de dúvidas, é utilizado como um fundamento para se defender a possibilidade da inserção de cláusula de não concorrência no direito brasileiro com base no já citado caput do artigo 8º da CLT e, em especial, influencia a adoção de critérios para nortear sua validade.
5.2 Requisitos de validade da cláusula de não concorrência
Com base no todo o abordado até aqui, é possível se afirmar que, em princípio, a omissão da legislação brasileira não torna nula cláusula de não concorrência que seja inserida em contrato de emprego.
Em que pese isto, para que esta cláusula não seja considerada inválida é preciso que sejam estabelecidos requisitos a serem cumpridos quando de sua estipulação para que a restrição ao direito de trabalho do empregado seja, de fato, adequada, isto é, a mínima possível necessária à proteção dos interesses do empregador e da coletividade e jamais absoluta e geral.
Acerca desta questão, Estêvão Mallet[171] afirma que “admitido o cabimento, em tese, da cláusula de não-concorrência em contrato de trabalho, torna-se imperioso determinar os parâmetros a observar para que o ajuste não seja havido por exorbitante, diante dos termos da pactuação”.
Regiane Teresinha de Mello João[172] aponta que “a estipulação de cláusula de não concorrência não pode constituir uma situação de desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo empregado e os interesses legítimos do empregador que se pretenda proteger”.
A fixação destes requisitos é, em regra, baseada no direito comparado e no próprio ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, é pautada na observância, imprescindível, do princípio da razoabilidade, segundo o qual tudo deve ser feito de acordo com o bom sendo, o razoável, jamais de maneira arbitrária ou tendenciosa.
A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, no caput do seu artigo 442, abaixo transcrito in verbis, deixa claro que o contrato de emprego não precisa ser escrito, pode ser firmado de forma verbal:
Art. 442. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego.
Além disso, não há, no texto celetista, qualquer exceção a esta regra.
Com efeito, o artigo 107 do Código Civil – CC, abaixo transcrito in verbis, e que pode ser aplicado ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT, determina que a exigência de forma especial para a validade das manifestações de vontade depende de previsão expressa no ordenamento jurídico:
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
Portanto, é sustentável que a cláusula de não concorrência possa ser celebrada de forma verbal, já que não existe determinação legal em sentido contrário.
Em que pese isto, admitir a possibilidade de ser celebrada cláusula de não concorrência de forma verbal é muito ariscado, já que a prova da sua existência e das condições estabelecidas fica muito comprometida.
Nas palavras de Célio Neto[173], “esta hipótese, contudo, se revela muito temerária dada às dificuldades de se provar a existência da cláusula na hipótese de demanda judicial”.
Assim, o ideal é que a cláusula de não concorrência seja formal, firmada por escrito, conforme tem sido feito em diversos outros países.
Segundo Estêvão Mallet[174], “a cláusula de não-concorrência é estabelecida normalmente por escrito. Trata-se, inclusive, de forma ideal, porque mais simples a comprovação do ajuste e mais fácil a identificação dos seus limites e contornos”.
Esta exigência, assim, pode ser sustentada pela aplicação do princípio da razoabilidade que deve permear a celebração deste tipo de cláusula, bem como a aplicação do próprio direito comparado por força do caput do artigo 8º do diploma celetista.
Com efeito, a cláusula de não concorrência deve ser expressa. Não há como se admitir que ela seja implícita, tendo em vista que inexiste previsão no ordenamento jurídico brasileiro de limites ao exercício pelo empregado da sua liberdade de trabalho que permita se concluir de forma diversa.
Para Estêvão Mallet[175], “a ausência de previsão de limite à liberdade de trabalho implica, portanto, inexistência de restrição específica”.
Já Sérgio Pinto Martins[176] afirma que “não se pode admitir cláusula implícita ou tácita, visando a evitar problemas para o empregado, justamente de não poder trabalhar, pois daria margem para incertezas e dúvidas, trazendo insegurança jurídica”.
Não obstante, a cláusula de não concorrência deve ser firmada pela vontade de ambas as partes pactuantes: empregado e empregador. Deve, obrigatoriamente, ser bilateral.
Esta manifestação de vontade deve ser efetivamente livre para que a cláusula seja válida. A existência de erro (artigo 138 do CC, aplicável por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT), dolo (artigo 145 do CC, aplicável por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT) ou coação (artigo 151 do CC, também aplicável por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT) na celebração do pacto implicam na invalidade da cláusula (mas, logicamente, dependem de prova de sua ocorrência).
Portanto, a cláusula de não concorrência não pode ser imposta pelo empregador, não pode se constituir como cláusula potestativa. A concordância expressa do empregado é imprescindível à validade da cláusula nos termos do artigo 122 do CC (aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT) e artigo 444 do diploma celetista, abaixo transcritos in verbis:
Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. (Destaque ausente no original)
Art. 444. As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes. (Grifo ausente no original)
Obviamente, o objeto da cláusula de não concorrência deve ser uma obrigação de não fazer (obrigação negativa) do empregado: abster-se do desenvolvimento de determinada atividade laboral (iguais ou semelhantes a então praticada), por conta própria ou alheia, após o término do contrato de emprego que implica em concorrência à empregadora.
Estas atividades das quais o empregado deverá se abster devem ser discriminadas de forma objetiva na cláusula, para que não pairem dúvidas que possam levar a futuras discussões e dificuldade de interpretação. E, como já exaustivamente exposto, deve ser a mínima possível. A cláusula não pode ser genérica ou abstrata.
Nesta toada, o empregado deve poder trabalhar e exercer qualquer outra atividade profissional, exceto aquela discriminada na cláusula. Não pode ser realizada renúncia à liberdade de trabalho assegurada no inciso XIII do artigo 5º da CF. A liberdade de trabalho é direito irrenunciável em seu todo.
Sérgio Pinto Martins[177] ressalta que “não pode haver a proibição total do trabalho do empregado, apenas para certa atividade. Se ocorrer a primeira hipótese, a cláusula será considerada abusiva e ilícita, porque o empregado não pode renunciar à sua liberdade de trabalho”.
Não bastasse, a cláusula de não concorrência tem a finalidade de proteger a propriedade do empregador (inventos, segredos comerciais, industriais, métodos e processos de produção, projetos, etc) que é posta em risco em decorrência do know how adquirido pelo empregado ao longo da prestação de serviços e da possibilidade de após o término do contrato de emprego exercer atividade concorrencial por conta própria ou alheia.
Por isto, deve também ser justificado de forma objetiva, na cláusula de não concorrência, o porquê da restrição, quais os bens e interesses que se visa proteger com a restrição. Deve ser feita demonstração da sua necessidade.
Bata que haja efetivo risco de prejuízo. Não é necessário que o dano se caracterize.
Por consequência, não pode ser objeto de restrição atividade laboral que não represente concorrência para a empregadora e implique em risco potencial.
Para Estêvão Mallet[178], “a restrição à liberdade de trabalho tem de satisfazer legítimo interesse do empregador e não se apresentar de forma desarrazoada”.
Portanto, a cláusula de não concorrência deve considerar: a natureza da atividade que é exercida pelo empregado, o conhecimento que ele absorve em decorrência do trabalho exercido e a forma que poderá utilizar este conhecimento quando encerrado o contrato de emprego.
É importante, ainda, que seja observado o interesse social quando da celebração da cláusula de não concorrência e se esta atende à função social desempenhada pela própria empresa e a do contrato de trabalho, nos termos do inciso XXIII do artigo 5º da Carta Maior, inciso do artigo 170 também da Carta Magna e artigo 421 do CC (aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT), abaixo transcritos in verbis:
Art. 5º. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXIII. a propriedade atenderá a sua função social;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
III. função social da propriedade;
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Além disso, a restrição à liberdade de trabalho do empregado não pode perdurar por tempo indefinido ou mesmo ser perpétua. Deve ser mantida apenas pelo tempo necessário para que seja afastado o risco de prejuízos aos interesses da empregadora e da própria coletividade.
Por analogia, nos termos do caput do artigo 8º da CLT, pode se sustentar a aplicação do artigo 1.147 do CC, in verbis abaixo transcrito, segundo o qual aquele que aliena estabelecimento fica proibido de concorrer com o adquirente durante os cinco anos subsequentes à transferência:
Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência.
É, assim, possível se sustentar que a cláusula de não concorrência não deve impor restrição por prazo superior a cinco anos.
Mas, em que pese isto, é possível ainda se sustentar que a cláusula de não concorrência não pode impor restrição ao exercício de determinada atividade pelo empregado por prazo superior a dois anos com base caput do artigo 445 da CLT, in verbis abaixo transcrito:
Art. 445. O contrato de trabalho por prazo determinado não poderá ser estipulado por mais de 2 (dois) anos, observada a regra do art. 451. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
Embora a aplicação analógica do artigo 1.147 do CC seja sustentável, o estabelecimento do limite máximo para a restrição ao exercício de certa atividade laboral pelo empregado imposta pela cláusula de não concorrência aparenta ser mais razoável e atender melhor a necessidade de a restrição ser a mínima possível.
Além disso, este limite temporal pode ser tido como o mais adequado por ser baseado em dispositivo celetista.
Para Célio Neto[179] “o tempo de 2 anos deve ser tomado, em regra, como limite de tempo a ser fixado para a quarentena”.
Já Estêvão Mallet[180] entende que o artigo 445 da CLT não pode ser utilizado como base para o estabelecimento de limite temporal para a cláusula de não concorrência sob o fundamento de que ele não tem pertinência com o tema.
Sérgio Pinto Martins[181], por sua vez, aponta que:
Deve a limitação estar balizada dentro do princípio da razoabilidade, de acordo com o que for pactuado entre as partes. O ideal é que fosse estabelecida por um prazo máximo de dois anos, que é o período máximo de vigência do contrato de trabalho por tempo determinado, e não seria um prazo muito longo. Certas atividades não precisam de um prazo muito longo de abstenção, como de produtos de bancos e na área de informática, em que, em algumas semanais ou em seis meses, os demais concorrentes já absorveram o novo produto e a nova tecnologia. O tempo, portanto, em que o empregado não poderá exercer a atividade não poderá ser muito longo. Deve, portanto, o período ser razoável e justificável.
O ideal é que o prazo seja o menor possível, mas adequado à efetiva garantia dos bens e interesses que a cláusula visa proteger. Não pode existir desproporção.
Neste sentido, Regiane Teresinha de Mello João[182] afirma que:
A abstenção que se pactua nas cláusulas de não concorrência tem caráter transitório, perdurando apenas o tempo necessário para que as informações consideradas protegidas percam o impacto de novidade, tornem-se obsoletas ou, ainda, que determinado projeto seja implementado.
Não obstante, esta restrição ao exercício de certa atividade pelo empregado determinada pela cláusula de não concorrência deve estar restrita a uma área geográfica específica.
Isto porque não se justifica a extensão dos efeitos desta cláusula para locais em que a empregadora não atue ou não concorra com outras empresas. A restrição da qual trata a cláusula de não concorrência deve ser limitada, portanto, aos locais de atuação da empregadora e que exista empresas concorrentes.
Segundo Sérgio Pinto Martins[183] “não terá valor cláusula em locais em que a empresa não venha a competir com outas no mesmo mercado”.
Para Estêvão Mallet[184], “a restrição à atividade do empregado, em harmonia com o requisito da necessidade, antes indicado, há de ser limitada espacialmente, segundo as reais exigências do caso, salvo circunstâncias excepcionais, nas quais tal limitação revela-se inviável”.
Por outro lado, é necessário que o empregador se comprometa a pagar ao empregado indenização compensatória adequada e proporcional à restrição ao exercício de determinada atividade laboral que sofrerá quando do encerramento do contrato de emprego.
Quanto maior a restrição, a área geográfica e o tempo pelo qual se aplica maior deve ser a indenização.
Em regra esta indenização compensatória é financeira. O montante tem a finalidade de compensar a restrição imposta e ainda o intuito de não permitir que o trabalhador tenha perda efetiva em seus rendimentos em decorrência da restrição pactuada na cláusula de não concorrência.
O valor deve ser estipulado pelas partes e pode ser vinculado à remuneração percebida pelo trabalhador ao longo da relação de emprego ou definido de forma livre. O importante que é que o montante seja fixado de maneira razoável.
Para Márcio Granconato[185]:
(...) o valor da compensação deve guardar proporção entre o período de inatividade previsto no ajuste e o salário recebido durante a vigência do contrato de trabalho, ou seja, deve haver harmonia entre as obrigações das partes e o necessário resguardo da dignidade do trabalhador.
O pagamento desta indenização compensatória é um dos requisitos mais importantes e contribui para a autorização da restrição imposta à liberdade de trabalho por cláusulas de não concorrência. Sem ele o conjunto de direitos e obrigações impostos pela cláusula de não concorrência não fica equilibrado e sua validade, por isso, insustentável.
Para ilustrar esta importância, o Projeto de Lei n. 986/2011 do deputado Carlos Bezerra, que visa acrescer à CLT o artigo 444-A autorizando a celebração de cláusula de não concorrência, foi rejeitado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio sob o fundamento de que que o projeto pretende autorizar a restrição à liberdade de trabalho do empregado em troca de uma indenização compensatória de, no mínimo, o valor do último salário do empregado, o que não seria suficiente para ressarcir os prejuízos que podem ser sofridos pelo empregado em decorrência da restrição, como, por exemplo, a impossibilidade de aceitar novas propostas de emprego com salário mais atrativo.[186]
Com efeito, esta compensação tem natureza indenizatória[187], já que tem a finalidade de compensar os prejuízos causados ao trabalhador em decorrência da restrição à determinada atividade laboral imposta pela cláusula de não concorrência.
No entanto, Regiane Teresinha de Mello João[188] aponta que existe entendimento em sentido contrário, de que esta compensação teria natureza salarial a exemplo do direito francês. O principal fundamento desde entendimento é de que se estaria pagando o salário pelo período em que o então ex-empregado estaria trabalhando normalmente.
Ocorre que salário é a retribuição pelo serviço prestado e, portanto, fica difícil pensar-se em pagamento de salário após o encerramento do contrato de emprego e, consequentemente, da cessação da prestação de serviços e da sujeição ao poder diretivo do empregador. O trabalhador não mais permanece a disposição da empresa nos termos do artigo 4º da CLT para se justificar a classificação deste valor pago como salário.
Neste diapasão, Sérgio Pinto Martins[189], Célio Neto[190] e Estêvão Mallet[191] apontam ser possível o pagamento desta indenização em utilidades, como, por exemplo, o custeio de uma bolsa de estudos. O importante é sempre existir equilíbrio entre a restrição que será aplicada e a compensação a ser paga.
Não obstante, esta indenização compensatória pode se paga de uma vez só ou em parcelas.
Entretanto, este pagamento deve ser feito dentro do período em que o trabalhador permanece com determinada atividade laboral restrita. Não é admissível que seja realizado apenas após o esgotamento do período de restrição, já que se estaria impondo ao trabalhador um ônus demasiado, tampouco durante a vigência do contrato de emprego, pois sua finalidade ficaria comprometida e aberta à possibilidade de práticas fraudulentas.
No caso de parcelamento, é necessária ainda a aplicação de índices de atualização monetária para que a finalidade da compensação financeira não fique comprometida.
Além disso, a compensação financeira firmada na cláusula de não concorrência e o cumprimento da obrigação de não concorrer são devidos independentemente da forma pela qual ocorreu o desligamento do empregado da empresa (despedida por justa causa, sem justa causa, rescisão indireta, pedido de demissão ou mesmo aposentadoria).
Exceção a isto ocorre, entretanto, no caso de o contrato de emprego ser encerrado em decorrência da extinção do estabelecimento nos termos dos artigos 497 e 502 da CLT, já que deixa de existir a necessidade de restrição para que não ocorra concorrência.
A indenização compensatória é direito do trabalhador, tem caráter personalíssimo. E, por isso, em caso de falecimento, a obrigação se extingue.
Em que pese isto, Sérgio Pinto Martins[192] ressalta que se a restrição imposta pela cláusula de não concorrência dizer respeito à, por exemplo, fórmulas e plantas deixadas pelo de cujos, é possível que os herdeiros permaneçam obrigados a não concorrência, se esta for a vontade do ex-empregado, mediante a continuidade do pagamento da indenização compensatória.
Sob outra ótica, a cláusula de não concorrência pode ser firmada: no próprio contrato de emprego, no ato da contratação; por aditamento, durante a vigência do contrato de emprego; na rescisão contratual; ou, ainda, em instrumento coletivo.
Para a cláusula de não concorrência ser firmada durante a vigência do contrato de emprego, por meio de aditamento, é preciso: que o empregado concorde com ela; e, tenha tido alteração em suas atividades e passado a desempenhar papel estratégico ou a ter conhecimentos sigilosos, tais como: segredos de fabricação, técnicas de produção e projetos a serem implantados, nos termos do caput do artigo 468 da CLT, abaixo transcrito in verbis:
Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Será dita como alteração unilateral do contrato de emprego prejudicial ao empregado a cláusula estabelecida sem a concordância do empregado ou sem que haja alteração de suas atividades para novas que lhe proporcionem conhecimentos estratégicos e sigilosos.
Há, no entanto, entendimento de que não é possível a celebração de cláusula de não concorrência durante a vigência do contrato de emprego nos termos do próprio caput do artigo 468 da CLT por esta cláusula trazer prejuízos ao empregado em decorrência da restrição ao exercício de certa atividade laboral.
Ocorre que, como já tratado anteriormente, os prejuízos que esta cláusula pode causar ao trabalhador devem ser devidamente compensados por meio do pagamento de indenização financeira e, por isso, a celebração deste tipo de cláusula durante a vigência do contrato de emprego, em uma primeira análise, não deve ser entendida como inválida por trazer prejuízos ao trabalhador.
Acerca desta questão, Estêvão Mallet[193] afirma que:
Promovido o empregado, porém, a necessidade pode surgir. Não faz sentido vedar-se terminantemente a pactuação, que se deve considerar admissível. O art. 468 da CLT, não constitui obstáculo ao ajuste, porque não impede a promoção do empregado, com atribuição de novas responsabilidades, as quais são acompanhadas, no mais das vezes, de novas condições de trabalho, e entre elas se admite esteja a obrigação de não-concorrência após a extinção do vínculo.
Não obstante, é possível que sejam estabelecidos padrões mínimos da cláusula de não concorrência em instrumento coletivo, como, por exemplo, o tipo de restrição, a área geográfica que se aplica e o período de tempo pelo qual perdura.
Mas, em todo caso, é necessário que os empregados, individualmente e de forma expressa, anuam a estas condições.
Portanto, não é possível se estabelecer, por meio de instrumento coletivo, cláusula geral de não concorrência.
Segundo Célio Neto[194]:
Não parece razoável pressupor que um instrumento coletivo tenha o condão de regular com a cautela e especificidade necessárias todo um pacto de não concorrência, dadas as condições especiais que circundam cada uma das diferentes situações em concreto – daí o porquê da necessidade de ajuste individual.
Por derradeiro, o instrumento coletivo pode também proibir que seja celebrada cláusula de não concorrência.
Em qualquer destas hipóteses, tanto empregado como empregador se sujeitam às condições pactuadas nos termos do artigo 444 e 619 da CLT.
Consequentemente, são sujeitos da cláusula de não concorrência aqueles que estão ligados entre si por força de um contrato de emprego. Pode ser aqueles que estão prestes a celebrar o contrato de emprego (quando a cláusula será inserida no próprio pacto laboral ou já faz parte de instrumento coletivo), empregado e empregador (quando a cláusula é celebrada já na vigência do contrato de emprego) ou ex-empregado e ex-empregador (quando a cláusula é firmada após o término do contrato de emprego).
O futuro empregador não é sujeito da cláusula de não concorrência. No entanto, seus efeitos recaem sobre ele.
Neste passo, segundo Sérgio Pinto Martins[195], é ideal que as partes pactuem na própria cláusula de não concorrência multa cominatória pelo descumprimento das obrigações assumidas, nunca excedentes do valor total da obrigação em observância ao artigo 412 do CC (aplicável o Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
Todavia, a legislação brasileira não prevê a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias ao empregado, com exceção do parágrafo 1º do artigo 462 da CLT que autoriza a realização de desconto salarial no caso de dano causado pelo trabalhador ao empregador se existir acordo entre eles neste sentido ou o dano seja decorrente de dolo.
Regiane Teresinha de Mello João[196] aponta que, em decorrência disto, a maioria dos doutrinadores brasileiros sustenta que a aplicação de multa pecuniária ao empregado não poderia ser pactuada em cláusula de não concorrência por se configurar como desconto (artigo 462 da CLT) ou redução salarial (inciso VI do artigo 7º da CF).
Segundo a autora[197] há também quem entenda que esta sanção pecuniária pelo descumprimento da obrigação assumida em cláusula de não concorrência se configuraria como cláusula penal[198] (nos termos dos artigos 409 a 416 do CC). E, em que pese possa se argumentar que nada impede a utilização de cláusula penal em cláusula de não concorrência porque ela não é regulada pela legislação e não decorre direta ou indiretamente do contrato de emprego, a verdade é que a cláusula de não concorrência apenas se origina por causa da relação de emprego e eventuais prejuízos causados pelo trabalhador podem ser ressarcidos por meio do quanto previsto no § 1º do artigo 462 da CLT.
Ocorre que a cláusula de não concorrência vigora somente após o término da relação de emprego e eventual multa cominatória ou cláusula penal terá aplicação apenas neste período. Portanto, fica estranho se falar em salário após a ruptura do pacto laboral. Não existindo mais salário, não há como se sustentar a ilicitude da sanção pecuniária que seja prevista neste tipo de cláusula.
Por fim, é possível que eventuais excessos que desequilibrem o conjunto de direitos e obrigações impostas por esta cláusula sejam adequados pela própria Justiça do Trabalho (inciso I do artigo 114 da CF e artigo 651 da CLT), isto é, por meio judicial, desde que respeitada a vontade das partes, nos termos do princípio da conservação dos atos jurídicos e com base nos artigos 157, 184 e 478 do CC (aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT), abaixo transcritos in verbis:
Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
§ 1º. Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2º. Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Com a observância de todos estes requisitos a liberdade de trabalho do empregado não é violada, pois o empregado fica apenas restrito ao exercício de atividade determinada, em local e período certos na medida dos bens e interesses que precisam de proteção e, ainda, recebe em troca uma compensação proporcional à restrição sofrida.
Além disso, não é violado o direito ao trabalho garantido no artigo 6º da Cata Maior, a busca do pleno emprego, a valorização do trabalho e a existência digna proporcionada pelo labor. Todas estas garantias são mantidas, já que o trabalhador não fica impedido de laborar, de exercer outro trabalho, mas somente de executar atividade específica, em local certo e por tempo determinado.
5.3 Posicionamento doutrinário e jurisprudencial sobre a inserção de cláusula de não concorrência em contrato de emprego
Em 1970, quando ainda vigente a Constituição de 1967, o Supremo Tribunal Federal – STF chegou a decidir questão muito similar à ocasionada pela cláusula de não concorrência ora em discussão durante o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 67.653, de relatoria do ministro Aliomar Baleeiro.
Naquela época o § 23 do artigo 153 da Carta Maior previa ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”.
No entanto, firmada cláusula entre empregado e empregador de que, em decorrência do pagamento de curso ao trabalhador pela empresa, ele não poderia laborar para empresa concorrente durante os cinco anos seguintes após o encerramento do contrato de emprego.
O excelso STF não conheceu o recurso extraordinário e manteve o acórdão que invalidou a cláusula, conforme se verifica da ementa abaixo transcrita in verbis:
EMENTA: LIBERDADE DE TRABALHO. Cláusula pela qual o empregado, que fez cursos técnicos às expensas do empregador, obrigou-se a não servir a qualquer empresa concorrente nos 5 anos seguintes, ao fim do contrato. Não viola o art. 150, § 23, da Constituição o acórdão que declarou inválida tal avença.[199]
Com efeito, atualmente o entendimento majoritário tanto da jurisprudência quanto da doutrina brasileira caminha no sentido de ser possível a inserção de cláusula de não concorrência em contrato de emprego, mas desde que observados uma série de requisitos. Este entendimento está fundamentado:
a) na ausência de proibição legal expressa no ordenamento jurídico (segundo o inciso II do artigo 5º da Constituição Federal - CF, artigo 122 do Código Civil - CC e o artigo 444 da Consolidação das leis do Trabalho - CLT pode ser objeto de estipulação entre as partes tudo que não contravenha a lei, os bons costumes, à ordem pública, as disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos aplicáveis e decisões das autoridades competentes);
b) na própria tendência do direito brasileiro, (ao se analisar todo o ordenamento jurídico evidencia-se uma inclinação a repudia da prática de atos concorrências pelo ex-empregado que possam causar danos a sua ex-empregadora);
c) no princípio da proporcionalidade (busca da preservação da essência de cada direito fundamental de forma que um não se concretize em detrimento do outro);
d) na responsabilidade pós contratual (pautada na boa-fé e na observância das obrigações de lealdade, confiança, obediência e sigilo que rege as relações negociais e contratuais, conforme artigos 113 e 422 do CC, aplicáveis por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT);
e) no direito comparado (por meio do caput do artigo 8º da CLT – solução adotada por diversos países para que a cláusula de não concorrência possa ser inserida em contratos de emprego).
Neste passo, os requisitos que devem ser observados, segundo esta corrente, para que a cláusula de não concorrência seja válida são:
a) ser firmada por escrito;
b) não proibir o empregado de trabalhar, mas apenas de exercer atividade determinada (especificada de forma detalhada) que implique em concorrência com a ex-empregadora;
c) deve vigorar por prazo determinado, mas necessário para que as informações protegidas deixem de ser “novidade” (para parte o prazo máximo é de dois anos nos termos do artigo 445 da CLT e para outra parte de cinco com base no artigo 1.147 do CC);
d) deve delimitar a área geográfica na qual tem validade o acordo, que deve ser a mesma em que a empregadora desempenhe atividade e, portanto, esteja sujeita a concorrência;
e) deve prever o pagamento ao empregado de indenização compensatória pela restrição imposta (para parte este pagamento tem natureza salarial, por entender que seria retribuição pelo tempo à disposição da ex-empregadora e para outra parte, indenizatória, por ser uma compensação pelos prejuízos causados em decorrência da restrição imposta);
f) atender o interesse social (observância da função social da própria empresa e do contrato de emprego, nos termos do inciso XXIII do artigo 5º da CF, inciso III do artigo 170 da Carta Maior e artigo 421 do CC, aplicável por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
Por derradeiro, para esta corrente a cláusula de não concorrência pode ser celebrada:
a) na admissão (o contrato de emprego é celebrado com a ciência e concordância do empregado acerca da cláusula de não concorrência);
b) no curso do contrato (por meio de aditamento, no caso de as atividades exercidas serem alteradas para outras que proporcionam conhecimentos estratégicos ou sigilosos da empresa, para por vontade de ambas as partes nos termos do artigo 468 da CLT);
c) no término do contrato;
d) por instrumento coletivo (que deve prever as condições gerais da cláusula de não concorrência e ser anuído individualmente pelos empregados para ter validade).
Portanto, os fundamentos adotados por esta corrente para entender como possível a inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego e para delimitar critérios de validade são os já detalhadamente abordados neste trabalho.
Segundo Alice Monteiro de Barros[200]:
Percebe-se que a doutrina brasileira, a cujo ponto de vista aderimos, tende a aceitar a aplicação da cláusula de não concorrência no contrato de trabalho, por aplicação subsidiária da legislação estrangeira, como autoriza o art. 8º da CLT, em situações excepcionais, sendo ideal a previsão em convenção coletiva, com limitações relativa ao objeto, tempo e espaço. A inserção dessa cláusula nos contratos de trabalho deverá ser analisada dentro de um contexto de razoabilidade, em face dos interesses e liberdade que estão em jogo.
São, por exemplo, favoráveis a esta corrente Estêvão Mallet[201], Regiane Teresinha de Mello João[202], Sérgio Pinto Martins[203] e Alice Monteiro de Barros[204].
Neste diapasão, o colendo Tribunal Superior do Trabalho – TST proferiu recentemente decisão acerca deste tema que ilustra de maneira detalhada os fundamentos adotados pela corrente em análise.
No caso concreto, foi celebrada cláusula de não concorrência por meio de termo aditivo ao contrato de emprego dois meses após a contratação do empregado para exercer a função de diretor de tecnologia. Quando da celebração do termo aditivo não houve qualquer alteração nas atividades desempenhadas por este trabalhador para justificar a alteração contratual. Além disso, não foi fixada a área geográfica na qual o empregado teria o exercício de determinadas atividades laborais restritas após o encerramento do contrato de emprego, tampouco foi fixada indenização compensatória adequada com a restrição imposta.
Em decorrência disto, a Corte Superior do Trabalho entendeu pela invalidade da cláusula, conforme se verifica da transcrição feita abaixo in verbis:
EMENTA: RECURSO DE REVISTA. NULIDADE. ACÓRDÃO REGIONAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. QUESTÃO JURÍDICA. O Colegiado de origem consignou expressamente as razões do seu convencimento, restando expedidos fundamentos suficientes à compreensão da lide, não havendo falar, portanto, em negativa de prestação jurisdicional. Registre-se, de qualquer sorte, que eventual omissão relativa a questões jurídicas trazidas no recurso ordinário e nos embargos de declaração não ensejaria a nulidade da decisão recorrida, a teor do item III da Súmula 297 do TST. Ilesos os arts. 93, IX, da Constituição da República, 832 da CLT e 458 do CPC. Recurso de revista não conhecido, no tema. TERMO DE CONFIDENCIALIDADE E NÃO CONCORRÊNCIA. NULIDADE. ALTERAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO DE TRABALHO. CONDIÇÃO POTESTATIVA. ASSINATURA APENAS DO TRABALHADOR. 1. Hipótese em que consignado pelo TRT que - as partes pactuaram cláusulas especiais mediante Termo de Confidencialidade e Não Concorrência (fls.47/50) dois meses após a admissão do réu, na forma de adendo, tendo a relação empregatícia vigorado de 21 de agosto de 2006 a 27 de abril de 2010, ou seja, o Termo foi ajustado ainda no início da vigência contratual, sendo certo que nenhum vício de consentimento restou comprovado pelo recorrente, a fim de infirmar a validade do pacto -. 2. A teor do art. 444 da CLT, as relações contratuais podem ser objeto de livre estipulação entre as partes, desde que observadas as disposições de proteção ao trabalho, as normas coletivas aplicáveis e as decisões das autoridades competentes. 3. Por sua vez, prescreve o art. 468 da CLT que, - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições, por mútuo consentimento, e, ainda assim, desse que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia -. 4. No caso, o TRT concluiu pela validade da alteração do contrato de trabalho, haja vista que não restou comprovado o vício de consentimento, tampouco caracterizado prejuízo, de modo a invalidar a avença. 5. Todavia, a estipulação de cláusula de confidencialidade e não concorrência, a par de cingir-se à esfera dos interesses meramente privados, somente pode ser reputada válida mediante juízo de ponderação, ante a colisão de direitos fundamentais tais como o livre exercício de trabalho ou profissão, a proteção da propriedade privada e o primado da livre iniciativa, dentre outros princípios. 6. Imprescindível, por sinal, a concessão de vantagens recíprocas, de modo a justificar a restrição temporária convencionada. 7. Por certo, a contrapartida oferecida pela empresa, consistente no pagamento mensal equivalente ao último salário do réu, que o TRT considerou proporcional à obrigação imposta, não possui o condão, por si só, de revestir de validade a restrição imposta no curso do contrato de trabalho. 8. É incontroverso, no caso, que em 21.8.2006, o reclamante foi contratado para desempenhar a função de Diretor de Tecnologia e Serviços da Autora, e que, nessa qualidade, exerceu atividades que o TRT entende justificar a celebração do Termo de Confidencialidade. Registrado, por sua vez, que somente após o interstício de dois meses, ou seja, com o contrato já em curso, foi celebrado aditivo ao contrato de trabalho, em que avençada referida - quarentena -. Não há, por sua vez, notícia acerca de qualquer alteração nas condições de trabalho do réu, pela qual se tenha agregado alguma vantagem ao trabalhador. 9. Não há como se depreender, em tal contexto, que restrição de tamanha importância decorra de livre estipulação, em que as partes se encontram em pé de igualdade, ainda que o réu ostente a qualidade de alto empregado, pois tal situação não afasta a condição de hipossuficiência do réu. Aliás, a impossibilidade de o réu desempenhar atividades análogas a que exercia, durante o período de um ano, pode inclusive resultar em significativo entrave à reinserção do réu em um mercado de trabalho que se sabe muito competitivo, mormente considerando a ausência de limitação territorial na cláusula de confidencialidade e não concorrência, o que leva concluir pela sua abrangência em todo o territorial nacional. 10. Soma-se a isso a evidente desproporção entre a contraprestação oferecida pela empresa - pagamento de salário mensal pelo período da restrição - e a multa em caso de descumprimento da obrigação pelo ex-empregado (multa não compensatória correspondente ao valor resultante da multiplicação do último salário do réu por 25), sem prejuízo da indenização decorrente da responsabilidade civil. Além disso, conquanto a empresa, em caso de descumprimento de sua obrigação, estivesse também sujeita a multa, tal seria calculada no importe de 12 vezes o salário do reclamante, ou seja, em montante inferior àquele devido pelo réu. Soma-se a isso, que a empresa poderia, a seu critério exclusivo, dispensar o reclamante de sua obrigação e, por conseguinte, a autora ficaria desobrigada do pagamento dos salários e da própria multa. 11. Não se olvida, por sua vez, que a contraprestação eventualmente paga pela empresa equivale ao último salário, o que, por sinal, não se confunde com remuneração. Desse modo, consabido que a cláusula de confidencialidade e não concorrência não estava definida no momento da contratação, como uma condição para a admissão do réu no cargo de Diretor de Tecnologia, conclui-se pela alteração prejudicial das condições de trabalho, pela submissão do réu aos termos do pacto. Recurso de revista conhecido e provido.[205] (Destaques ausentes no original)
Outras decisões similares a esta já foram proferidas atualmente pelo colendo TST, conforme ilustra a ementa abaixo colacionada in verbis, o que deixa claro que a Corte Superior do Trabalho brasileira vem se posicionando a favor da inserção da cláusula de não concorrência em contrato de emprego, mas desde que observados diversos os requisitos acima citados de forma que o conjunto de direitos e obrigações impostos pela cláusula ao empregado e ao empregador fique equilibrado:
EMENTA: RECURSO DE REVISTA - ARGUIÇÃO DE NULIDADE POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL A Reclamada apenas insiste que não foram apreciadas as questões suscitadas, sem especificar quais questões nem por que seriam essenciais ao deslinde da controvérsia, estando desfundamentado o recurso, no particular. TERMO DE CONFIDENCIALIDADE E NÃO CONCORRÊNCIA – INVALIDADE. 1. O Eg. Tribunal Regional considerou inválido o termo de confidencialidade e não concorrência, ante a desproporcionalidade das obrigações e penalidades impostas às partes, dificultando excessivamente o retorno do empregado ao mercado de trabalho após a extinção do contrato com a Reclamada. Nos termos em que consignados os fatos, não se divisa violação aos dispositivos invocados, porquanto a livre estipulação sobre o contrato de trabalho encontra limites no próprio art. 444 da CLT, que obsta disposições eventualmente contrárias aos princípios de proteção ao trabalho. 2. O acórdão registra, ademais, que o termo foi celebrado no curso do contrato de trabalho, ou seja, constituiu alteração contratual prejudicial, considerando os ônus impostos ao empregado, o que contraria o art. 468 da CLT. HONORÁRIOS ASSISTENCIAIS - REQUISITOS - ASSISTÊNCIA SINDICAL E JUSTIÇA GRATUITA Na Justiça do Trabalho, em lides derivadas da relação de trabalho, são indevidos honorários advocatícios, se não preenchidos concomitantemente os requisitos da assistência sindical e justiça gratuita. Inteligência da Orientação Jurisprudencial nº 305 da SBDI-1 e das Súmulas nos 219 e 329, todas do TST. Recurso de Revista conhecido parcialmente e provido.[206] (Destaques ausentes no original)
Não obstante, os Tribunais Regionais do Trabalho – TRT da 2ª, 3ª, 4ª, 7ª, 9ª, 15ª e 16ª Região, recentemente, manifestaram entendimento favorável à possibilidade de inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego, mas também desde que observada a série de requisitos acima já discutida para que a cláusula não enseje obrigação demasiada para uma das partes, conforme demonstram os arestos abaixo colacionados in verbis:
EMENTA: CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA. INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA. VALIDADE. Embora a legislação trabalhista seja omissa quanto ao tema ventilado. O artigo 444 da CLT prevê, como regra, pactuação livre das cláusulas contratuais, desde que não haja violação às disposições legais, coletivas, e, às decisões das autoridades competentes. A cláusula de não-concorrência é a obrigação pela qual o empregado se compromete a não praticar pessoalmente ou por meio de terceiro ato de concorrência para com o (a) empregador (a). Trata-se de uma obrigação de natureza moral e de lealdade. Não há de se falar em ofensa ao Princípio da Liberdade de Trabalho, quando o pacto de não-concorrência foi livremente pactuado e há previsão do limite temporal da restrição, mediante justa retribuição, como é o caso vertente. Revelado o descumprimento da referida avença, cabe ao obreiro restituir à empregadora o valor proporcional ao tempo que falta para completar os 12 meses de restrição.[207]
EMENTA: CLÁUSULA DE NAO CONCORRÊNCIA. VALIDADE. É válida a inserção de cláusula de não concorrência no contrato de trabalho, desde que restrita a determinado segmento de mercado e estabelecida por tempo razoável, além de prever indenização compensatória. Não há que se falar em alteração contratual lesiva (CLT, art. 468) na medida em que as normas contratuais decorreram de mútuo consentimento e não acarretaram prejuízo ao Reclamante, observando os princípios e normas legais. Referida cláusula tem como justo objetivo proteger segredos industriais entre empresas concorrentes, procurando evitar a quebra de sigilo. Na verdade, tal dispositivo contratual visa preservar os princípios da lealdade e da boa-fé (art. 422 do Código Civil), inexistindo mácula a respaldar a pretendida nulidade.[208]
EMENTA: CLÁUSULA DE SIGILO E NÃO CONCORRÊNCIA. LIBERDADE DE TRABALHO. A condição imposta através de um pacto de sigilo e não concorrência para não se revelar as informações confidenciais, mesmo após o término da relação empregatícia, deve ser estabelecida dentro dos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade. Isto porque a regulação de tais pactos não pode ser considerada como restritiva, de forma inconstitucional, a ponto de afetar o princípio fundamental do valor social do trabalho.[209]
EMENTA: INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL. CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO AO TRABALHADOR. Não havendo demonstração de que a observância de cláusula de não concorrência existente no contrato de trabalho prévio tenha impossibilitado a contratação do trabalhador por outra empresa ou impedido, de qualquer forma, o posterior desempenho de suas atividades profissionais, inexiste prejuízo capaz de ensejar o deferimento da indenização reparatória pretendida. Negado provimento ao recurso do reclamante.[210]
EMENTA: CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA. CUMPRIMENTO APÓS A EXTINÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. POSSIBILIDADE - Sem prova de que tenha havido vício de vontade na celebração do contrato de trabalho, de se reputar válida cláusula de não-concorrência livremente estipulada pelas partes, quando da contratação da obreira. Recurso ordinário conhecido, mas não provido.[211]
EMENTA: I - CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA - PACTUAÇÃO APÓS O INÍCIO DO CONTRATO DE TRABALHO - VALIDADE - A estipulação de cláusula de sigilo, confidencialidade e não-concorrência, durante o curso do contrato de trabalho, não se traduz em alteração ilícita e unilateral. Isto porque o art. 482, nas alíneas c e g, da CLT, prevê que constituem motivos para a ruptura contratual por justa causa a prática de concorrência e o violação de segredo da empresa. Destarte, tem-se que tais deveres estão ínsitos no próprio contrato de trabalho, sobretudo diante do princípio da boa-fé, que deve nortear a relação de trabalho. Portanto, é plenamente válida a estipulação de cláusula de não-concorrência mesmo após o início da vigência do contrato de trabalho, não havendo afronta ao art. 468 da CLT. II - CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA - VIGÊNCIA APÓS O TÉRMINO DO CONTRATO DE TRABALHO - VALIDADE - É válida a cláusula de não-concorrência que tenha vigência mesmo após a extinção do contrato de trabalho, embora tal modalidade não encontre disciplina jurídica no Direito do Trabalho. Assim, constatada a lacuna, possibilita-se, por força do art. 8º da CLT, a aplicação do art. 122 do Código Civil Brasileiro, que dispõe que "São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.". Desse modo, seria lícita, em tese, a pactuação de cláusula de não-concorrência após a cessação do contrato de trabalho.[212]
EMENTA: CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA. PACTUAÇÃO APÓS A RESILIÇÃO CONTRATUAL. VALIDADE. A pactuação de cláusula prevendo a não concorrência após a extinção do contrato de trabalho não ofende o princípio do livre acesso ao trabalho previsto no inciso XIII do artigo 5º constitucional, porque inexiste direito absoluto. Ao lado do direito de o trabalhador dispor de sua força de trabalho como bem entender, o empregador tem o direito de resguardar sua propriedade, os seus produtos, os seus inventos. Entretanto, para que não se torne “condição leonina”, vale dizer, a sua implementação não ser concentrada na vontade e poder de uma só das partes, ela deve corresponder à integral recomposição da subsistência profissional, diante dessa paralisação forçada. Se assim não é, não se pode exigir a completa observância. Além disso, a instalação de uma empresa própria no término da quarentena imposta, aliado ao fato do que comumente acontece e do que se entende por potencialidade de mercado jamais poderá traduzir em concorrente de uma multinacional.[213]
EMENTA: ALTERAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE TRABALHO DO EMPREGADO. INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA. A estipulação, em termo de aditamento contratual, de cláusula que proíba o empregado, pelo prazo de 24 meses da data do eventual término de seu contrato de trabalho, independentemente do motivo da rescisão, exercer suas atividades profissionais para quaisquer empresas (ou suas subsidiárias, controladoras, coligadas ou associadas), que comercializem artigos de vestuário em geral e seus acessórios, inclusive calçados, nas Regiões Metropolitanas em que a reclamada mantiver operando quaisquer de suas lojas, praticamente inviabiliza o seu retorno ao mercado de trabalho uma vez que o obreiro fica proibido de atuar no setor onde tem conhecimento amplo, devendo, em consequência, ser compensado financeiramente, sob pena de comprometer diretamente a sua própria subsistência e ferir o tratamento isonômico que deve existir entre as partes contratantes, diante do caráter comutativo do pacto laboral, que exige equivalência nas prestações executadas. INTEGRAÇÃO DAS GRATIFICAÇÕES AO SALÁRIO - No caso dos autos, merece ser dado parcial provimento ao recurso do reclamante para deferir a repercussão das parcelas pagas a título de participação nos resultados comerciais e de gratificação de seu desempenho por seu duodécimo no 13º salário. RO e RA conhecidos e, no mérito, parcialmente provido o recurso adesivo do reclamante.[214]
Não obstante, há parte da doutrina e jurisprudência, minoritária, que entende que não pode ser pactuada cláusula de não concorrência, pois seria atentatória à liberdade de trabalho assegurada no inciso XIII do artigo 5º da CF e às garantias a ela relacionadas: do valor social do trabalho (inciso IV do artigo 1º da CF), do trabalho como direito social capaz de prover a existência digna (artigo 6º da CF), da valorização do trabalho humano (caput do artigo 170 da CF), da busca do pleno emprego (inciso VII do artigo 170 da CF). Desta forma, a cláusula de não concorrência seria nula nos termos do artigo 9º da CLT e incompatível com o artigo 444 da CLT diante da presunção de hipossuficiência do empregado[215] e incapacidade de pactuar livremente condições do contrato de trabalho.
Cibele Andrade Pessoa de Freitas[216] acrescenta que:
Os defensores da tese de invalidade da quarentena após o término do contrato de trabalho advogam que o seu simples término poria fim à relação jurídica celebrada entre empregado e empregador, sendo, na concepção deste grupo, impossível atribuir validade de uma cláusula quando o substrato que lhe dá fundamento – o contrato – já se encontra encerrado.
A autora[217] aponta que Egon Felix Gottschalk é um defensor desta corrente.
Neste sentido, já entendeu o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, conforme demonstra o aresto abaixo transcrito in verbis:
EMENTA: CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA. CUMPRIMENTO APÓS A RESCISÃO CONTRATUAL. ILEGALIDADE. A ordem econômica é fundada, também, na valorização do trabalho, tendo por fim assegurar a todos existência digna, observando dentre outros princípios a busca do pleno emprego. Pelo menos, assim está escrito no art. 170, inciso VIII, da Constituição. O art. 6º do diploma deu ao trabalho grandeza fundamental. A força de trabalho é o bem retribuído com o salário e assim meio indispensável ao sustento próprio e familiar, tanto que a ordem social tem nele o primado para alcançar o bem-estar e a justiça sociais. Finalmente, o contrato de trabalho contempla direitos e obrigações que se encerram com sua extinção. Por tudo, cláusula de não concorrência que se projeta para após a rescisão contratual é nula de pleno direito, a teor do que estabelece o artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho.[218] (Destaques ausentes no original)
Por todo o exposto, há de se concluir que para a maioria da doutrina e jurisprudência atuais é válida a instituição de cláusula de não concorrência no contrato de trabalho desde que respeitados diversas condições e limites que impliquem em um conjunto de direito e obrigações equilibrada entre as partes, com restrição apenas parcial e temporária à liberdade de trabalho do empregado, proporcional à propriedade do empregador que se pretende proteger e desde que atendido o interesse coletivo. A inobservância destes critérios pode ocasionar a invalidade da cláusula.
6 DESCUMPRIMENTO DA CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA
Não é possível que uma das partes, após a celebração da cláusula de não concorrência, renuncie ao acordado se não ocorreu nenhuma das hipóteses legais de nulidade ou invalidade do pacto (artigos 138, 145, 151, 166, 167 e 171 do Código Civil – CC, todos aplicáveis ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
Isto porque a cláusula de não concorrência, uma vez firmada, gera expectativas entre os contratantes e a renúncia ao acordado fere estas expectativas criadas, além de não coadunar com a razoabilidade e a boa-fé que norteiam os atos praticados antes, durante e após a celebração do pacto (nos termos do artigo 122 e 422 do CC, também aplicáveis ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT).
Nas palavras de Célio Neto[219]:
O pacto de não concorrência gera para as partes uma expectativa de indenização, de sorte que o empregador não possui o direito de renunciar ao acordado, pois, de modo contrário, estaria agindo em desacordo com a boa-fé objetiva que se espera dos contratantes (art. 422, CC), bem como em desconformidade com o art. 122 do Código Civil.
A ementa abaixo colacionada in verbis ilustra situação em que a renúncia por parte do empregador da cláusula de não concorrência não foi considerada válida pela Justiça do Trabalho exatamente em decorrência da boa-fé que rege as relações negociais e o próprio princípio da razoabilidade:
EMENTA: CLÁUSULA DE NAO-CONCORRÊNCIA. Considerando que o pacto de não-concorrência cria para o trabalhador não só a expectativa de uma indenização, senão a necessidade de se preparar para uma futura e nova atividade, com expectativas e incertezas, não é razoável que a segurança desse negócio jurídico possa ser frustrada unilateralmente pela empresa contratante, mediante simples renúncia ao pactuado. Inteligência do artigo 122 do Código Civil, bem como dos princípios da justiça contratual e da boa-fé objetiva (artigo 422, Código Civil). Devida a indenização pactuada.[220] (Destaques ausentes no original)
No entanto, mesmo que a cláusula de não concorrência seja corretamente celebrada, em observância a todos os requisitos exigidos pela doutrina e jurisprudência majoritária, pode acontecer de uma das partes deixar de cumpri-la.
Nesta hipótese, se o ex-empregado deixar de cumprir a obrigação por ele assumida em cláusula de não concorrência, o ex-empregador poderá deixar de pagar a indenização compensatória combinada ou as parcelas dela que restarem. Além disso, se tiver sido pactuada multa cominatória pelo descumprimento da obrigação acordada, o ex-empregador também poderá exigi-la.
Não bastasse, o ex-empregador poderá entrar com ação judicial requerendo: que o ex-empregado seja compelido a cumprir o acordado (suspenda a prática do ato concorrencial); indenização pelas eventuais perdas e danos que forem causados pelo ex-empregado em decorrência do descumprimento da obrigação acordada; bem como exigir a restituição do valor que já tiver sido pago a título de indenização compensatória devidamente corrigida. Tudo nos termos do artigo 475 do CC, abaixo transcrito in verbis, aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT:
Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
No, entanto, nos termos do artigo 413 do Código Civil – CC (aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT), abaixo também transcrito in verbis, é possível que judicialmente seja diminuída eventual multa cominatória aplicada por força do pacto caso a obrigação tenha passado a ser cumprida:
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
Por outro lado, caso o ex-empregador deixe de cumprir a obrigação por ele assumida na cláusula de não concorrência, o ex-empregado poderá não cumprir a restrição acordada na cláusula.
Com efeito, é possível ainda o ex-empregado pleitear a exoneração da obrigação judicialmente, de forma a se precaver de eventual alegação da ex-empregadora de que ele que descumpriu o acordado, ou, ainda que o ex-empregador seja compelido a pagar a compensação indenizatória acordada.
Além disso, o ex-empregado poderá exigir judicialmente a reparação de eventuais perdas e danos que sofrer.
Segundo Márcio Granconato[221]:
Nada impede, ainda, que o empregado exija uma reparação alternativa em razão dos prejuízos sofridos durante o contrato de emprego. Explica-se: em função de tal cláusula, o trabalhador muitas vezes se vê tolhido na liberdade de escolha de um novo e melhor posto de trabalho durante a vigência do contrato de trabalho, de tal sorte que o descumprimento do pacto de não concorrência ao final frustraria uma ampla gama de expectativas, deixando para trás prejuízos que devem ser reparados.
Sob outra ótica, conforme já tratado anteriormente, o futuro empregador não é sujeito da cláusula de não concorrência.
Mas, em que pese isto, é possível vinculá-lo ao respeito da restrição ali pactuada ao trabalhador.
Para isto, é ideal que o ex-empregador dê ao novo empregador ciência inequívoca da existência da cláusula de não concorrência. Isto pode ser feito, por exemplo, por meio de notificação extrajudicial.
Com a ciência do novo empregador, ele fica solidariamente responsável ao trabalhador no caso de descumprimento da cláusula de não concorrência, nos termos do caput do artigo 942 do CC, in verbis abaixo transcrito, também aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT:
Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.
Neste passo, caso ex-empregado e novo empregador descumpram a cláusula de não concorrência será possível que o ex-empregador exija de ambos o cumprimento da restrição assumida pelo trabalhador mesmo que para isso seja necessária à ruptura do contrato de emprego celebrado entre eles, sem prejuízo da responsabilização por eventuais perdas e danos (artigos 186, 187 e caput do artigo 927 do CC) e pagamento de multa cominatória que tenha sido acordada.
Por derradeiro, o trabalhador que possui cláusula de não concorrência em vigor deve agir pautado na boa-fé que rege todas as relações negociais e informar, na própria fase pré-contratual, as atividades que não pode exercer em decorrência da restrição que possui.
A omissão deste tipo de informação por parte do trabalhador pode, inclusive, ensejar a ruptura do contratual de emprego por justa causa na hipótese de ter sido contratado para executar a atividade na qual está restrito de exercer em decorrência de cláusula de não concorrência.
Acerca desta questão, Estêvão Mallet[222] afirma que:
Tomando o novo empregador ciência da limitação, seja por conta de comunicação proveniente do antigo empregador, seja por outro meio, poderá rescindir com justa causa o contrato de trabalho. O mesmo ocorre caso tenha sido falsamente informada a inexistência de restrição.
Portanto, o descumprimento de cláusula de não concorrência legal e válida inserida em contrato de emprego por uma das partes permite à outra exigir o cumprimento da obrigação por ela assumida ou a exoneração da sua, sem prejuízo do recebimento de eventual multa cominatória que tenha sido acordada e, ainda, de eventuais perdas e danos que sofrer.
CONCLUSÃO
Em conformidade com toda a pesquisa, análise e estudo realizado acerca do tema do presente trabalho monográfico, conclui-se que a cláusula de não concorrência inserida em contratos de emprego é uma disposição com o objetivo de restringir a atuação, após o término da relação de trabalho, do então ex-empregado e, com isso, impedir que ele se utilize do conhecimento adquirido durante a prestação de serviços (dados confidenciais, informações privilegiadas, estratégias, técnicas, etc) de maneira prejudicial aos interesses da ex-empregadora (seja em benefício de seu próprio negócio, seja em benefício de nova empregadora concorrente), durante determinado período de tempo, em certa área geográfica e em troca de uma adequada indenização pecuniária, de forma a não gerar concorrência desleal.
Originou-se no direito norte-americano e passou a ser disseminada e aplicada em praticamente todo o mundo, inclusive no Brasil. Surgiu em virtude da própria concorrência (disputa de mercado), e, esta, assim como o próprio Direito do Trabalho, teve origem com o desenvolvimento do sistema de produção industrializado, eclodido no século XVIII, com a Revolução Industrial. Anteriormente a isto, a competição industrial praticamente não existia.
O grande bem jurídico que se visa assegurar por meio da cláusula de não concorrência é a propriedade do empregador (inventos, segredos comerciais, industriais, métodos e processos de produção, projetos, etc).
O direito de propriedade é entendido como aquele direito individual, pleno e absoluto no sentido de que o proprietário detém amplos poderes jurídicos sobre o que lhe pertence. É assegurado a todos os indivíduos, inclusive àquele na qualidade de empregador, enquanto empresário, a fim de proteger todo o seu patrimônio de eventuais turbações.
Ocorre que na mesma medida em que a cláusula de não concorrência dá proteção à propriedade do empregador, restringe a liberdade de trabalho do empregado, já que o impede de exercer determinada atividade, por certo tempo e em local específico.
A liberdade de trabalho diz respeito à independência de um indivíduo em optar pela atividade profissional (intelectual ou artística, agropecuária, industrial ou comercial) que quer exercer para prover sua subsistência (converter a sua própria atividade, física ou intelectual, naquilo que precisa, como: educação, alimentação, moradia, lazer, vestuário, etc).
Este direito à liberdade de trabalho tem as mesmas raízes históricas que o direito de propriedade. Ambos se consolidaram como frutos das Revoluções Francesa e Industrial e da evolução do sistema capitalista. São elementos essenciais ao sistema produtivo.
Em decorrência disto, no ordenamento jurídico atual brasileiro, permanecem lado a lado como fundamentos da ordem econômica.
Ao mesmo tempo, são direitos intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, pertencem exclusivamente ao indivíduo e devem ser observados, cumpridos e respeitados pelo Estado.
Tanto o direito de propriedade quanto o direito à liberdade de trabalho estão assegurados na própria Constituição Federal - CF: o direito de propriedade no inciso XXII de seu artigo 5º e o direito de liberdade de trabalho do empregado no inciso XIII do mesmo artigo 5º.
Ambos fazem parte do núcleo imutável da Carta Maior, isto é, são cláusulas pétreas nos termos do inciso IV do § 4º do artigo 60 da Carta Maior e, portanto, direitos irrevogáveis pelo poder constituinte derivado.
Assim, a cláusula de não concorrência inserida em contratos de emprego ocasiona a colisão de dois direitos fundamentais: o direito de propriedade do empregador e o direito à liberdade de trabalho do empregado.
E, neste conflito estão ainda envolvidas diversas outras garantias constitucionais.
Ao lado do direito de propriedade do empregador, somam-se as garantidas: da livre iniciativa, assegurada no inciso IV do artigo 1º da Constituição Federal - CF e caput do artigo 170 da CF; da livre concorrência, prevista no inciso IV do artigo 170 da CF; e, própria propriedade privada, tratada no inciso II do artigo 170 da CF.
Já ao direito de liberdade de trabalho do empregado agregam-se às garantias: do valor social do trabalho, previsto no inciso IV do artigo 1º da CF; do trabalho como direito social capaz de prover a existência digna, nos termos do artigo 6º da CF; da valorização do trabalho humano, tratada no caput do artigo 170 da CF; e, da busca do pleno emprego, assegurada no inciso VIII do artigo 170 da CF.
Para agravar esta situação, não existe previsão expressa na legislação acerca da inserção de cláusula de não concorrência em contratos de emprego, restando dúvidas sobre sua legalidade e validade.
E, em decorrência disto, há grande discussão: quanto à possibilidade ou não desta cláusula ser utilizada nos contratos de emprego brasileiros; e, se ela seria ou não válida à luz do ordenamento jurídico pátrio e tendo em vista que nenhum direito é tido como de caráter absoluto.
Atualmente o entendimento majoritário tanto da jurisprudência quanto da doutrina brasileira caminha no sentido de ser possível a inserção de cláusula de não concorrência em contrato de emprego, mas desde que observados uma série de requisitos.
Este entendimento está fundamentado na ausência de proibição legal expressa no ordenamento jurídico nacional. Segundo o inciso II do artigo 5º da CF, o artigo 122 do Código Civil - CC e o artigo 444 da Consolidação das leis do Trabalho – CLT, pode ser objeto de estipulação entre as partes tudo que não contravenha a lei, os bons costumes, à ordem pública, as disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Segue ainda a própria tendência do direito brasileiro, já que ao se analisar todo o ordenamento jurídico evidencia-se uma inclinação legal a repudia da prática de atos concorrências pelo ex-empregado que possam causar danos a sua ex-empregadora.
Há previsão expressa no diploma celetista, alíneas c e g do seu artigo 482, que possibilita a despedida por justa causa no caso de o empregado praticar ato de concorrência à empresa para a qual trabalha durante o pacto laboral ou que viole segredo da empresa.
E, o artigo 195 da Lei n. 9.279/96, que regula obrigações e direitos relativos à propriedade industrial, prevê diversas situações que se caracterizam como crime de concorrência desleal, e, dentre elas, as tratadas nos incisos IX, X e XI, envolvem a relação de trabalho.
Com efeito, este entendimento majoritário também está fundamentado na aplicação do princípio da proporcionalidade, que busca a preservação da essência de cada direito fundamental de forma que um não se concretize em detrimento do outro.
Está ainda baseado na responsabilidade pós contratual do empregado e do empregador, pautada na boa-fé e na observância das obrigações de lealdade, confiança, obediência e sigilo que regem as relações negociais e contratuais, conforme artigos 113 e 422 do CC, aplicáveis por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT.
Por derradeiro, este entendimento faz uso da solução adotada por diversos países para que a cláusula de não concorrência possa ser inserida em contratos de emprego e, para tanto, aplica o direito comparado, conforme caput do artigo 8º da CLT.
Não obstante, segundo esta corrente, para que a cláusula de não concorrência seja válida é preciso que seja firmada por escrito e não proíba o empregado de trabalhar, mas apenas de exercer atividade determinada (especificada de forma detalhada) que implique em concorrência com a ex-empregadora.
Além disso, é exigido que a cláusula tenha prazo determinado, isto é, seja válida apenas pelo tempo necessário para que as informações protegidas deixem de ser “novidade” (para parte o prazo máximo é de dois anos nos termos do artigo 445 da CLT e para outra parte de cinco com base no artigo 1.147 do CC).
Com efeito, deve ser delimitada a área geográfica na qual a cláusula tem validade. E, esta área geográfica deve ser a mesma em que a empregadora desempenhe atividade e, portanto, esteja sujeita a concorrência.
Deve, ainda, prever o pagamento ao empregado de indenização compensatória pela restrição imposta (para parte este pagamento tem natureza salarial, por entender que seria retribuição pelo tempo à disposição da ex-empregadora e para outra parte, indenizatória, por ser uma compensação pelos prejuízos causados em decorrência da restrição imposta).
Por derradeiro, este tipo de cláusula deve atender o interesse social, representado pela função social da própria empresa e do contrato de emprego, nos termos do inciso XXIII do artigo 5º da CF, inciso III do artigo 170 da Carta Maior e artigo 421 do CC, aplicável por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT.
Sob outra ótica, a cláusula de não concorrência pode ser celebrada: na admissão (o contrato de emprego é celebrado com a ciência e concordância do empregado acerca da cláusula de não concorrência); no curso do contrato (por meio de aditamento, no caso de as atividades exercidas serem alteradas para outras que proporcionem conhecimentos estratégicos ou sigilosos da empresa, por vontade de ambas as partes nos termos do artigo 468 da CLT); no término do contrato; e, por instrumento coletivo (que deve prever as condições gerais da cláusula de não concorrência e ser anuído individualmente pelos empregados para ter validade).
Uma vez acordada não é admissível às partes renunciarem ao acordado com base na boa-fé e própria razoabilidade (nos termos do artigo 122 e 422 do CC) que regem as relações negociais, com exceção das hipóteses legais de nulidade ou invalidade do pacto (artigos 138, 145, 151, 166, 167 e 171 do CC, todos aplicáveis ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
A ciência do novo empregador acerca da existência de cláusula de não concorrência faz com que ele fique solidariamente ao trabalhador responsável no caso de descumprimento da cláusula de não concorrência, nos termos do caput do artigo 942 do CC (Também aplicável ao Direito do Trabalho por força do parágrafo único do artigo 8º da CLT).
O descumprimento de cláusula de não concorrência legal e válida inserida em contrato de emprego por uma das partes permite à outra exigir o cumprimento da obrigação por ela assumida ou a exoneração da sua, sem prejuízo do recebimento de eventual multa cominatória que tenha sido acordada e, ainda, de eventuais perdas e danos que sofrer.
Para se alcançar a solução ofertada por esta corrente é feito uso das regras de hermenêutica, de meio de solução de colisão entre direitos fundamentais, das normas gerais do direito brasileiro e realizada análise sistemática e teleológica do ordenamento jurídico nacional. Além disso, é seguida, sem sombra de dúvidas, a tendência do direito estrangeiro.
ANEXO
PROJETO DE LEI Nº , DE 2011
(Do Sr. CARLOS BEZERRA)
Acrescenta artigo à Consolidação das Leis do Trabalho para dispor sobre a cláusula de não concorrência.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 444-A:
“Art. 444-A. É permitida a instituição de cláusula de não concorrência quando, em razão da natureza do serviço prestado, o trabalhador tiver conhecimento de informações estratégicas da empresa, cuja divulgação possa causar prejuízo ao empregador, observado o disposto nos parágrafos seguintes.
§ 1º A cláusula será estabelecida por escrito e sua vigência não excederá o prazo de dois anos, a contar da rescisão do contrato de trabalho.
§ 2º A cláusula pode ser instituída durante a vigência do contrato de trabalho, caso haja mudança nas atribuições do trabalhador, desde que configurada a hipótese prevista no caput deste artigo.
§ 3º Constará da cláusula, de forma expressa, a descrição das atividades e do ramo econômico em que o trabalhador está impedido de atuar em outra empresa.
§ 4º O trabalhador pode celebrar novo contrato de trabalho para atuar em atividade e ramo econômico distintos daqueles estabelecidos no contrato de trabalho anterior.
§ 5º O trabalhador fará jus ao pagamento de indenização mensal correspondente a, no mínimo, o valor do último salário recebido, pelo prazo que durar a cláusula de não concorrência, salvo se celebrar novo contrato de trabalho, nos termos estabelecidos no parágrafo anterior.
§ 6º A falta de pagamento da indenização por parte do empregador implica a resolução do ajuste, com o pagamento em dobro dos meses restantes, além de multa contratual.
§ 7º A violação da cláusula pelo trabalhador acarreta a restituição das parcelas pagas, além de indenização por perdas e danos.”
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT já possui regra vedando a concorrência do empregado durante a relação de emprego. Trata-se do art. 482 que considera como hipóteses que justificam a aplicação da justa causa a negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado ou for prejudicial ao serviço (alínea “c”) e a violação de segredo da empresa (alínea “g”).
Ocorre que verificamos algumas situações em que esse impedimento se deva dar após a extinção da relação empregatícia. São aqueles casos em que o ex-empregado detém informações estratégicas, ou mesmo secretas, da empresa e cuja divulgação possa trazer prejuízos financeiros consideráveis.
É nesse ponto que surge a figura da “cláusula de não concorrência”, matéria tratada neste projeto e que já tem recebido acolhimento da doutrina e da jurisprudência nacionais. Por intermédio dela, o empregado compromete-se a não trabalhar em um concorrente direto do antigo empregador por um período predeterminado de tempo. Ressalte-se que a regra não é dirigida a qualquer empregado, mas tão somente àqueles que, em razão das suas atribuições, tiveram acesso a determinadas informações estratégicas as quais, em sendo transferidas aos concorrentes, poderiam acarretar grande prejuízo ao ex-empregador.
Outrossim, a proposta estabelece que o empregado receberá uma indenização correspondente ao valor do último salário pelo período que durar a cláusula, que é justamente para que a medida não seja caracterizada como uma pena. Recente decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) é bem ilustrativa acerca do tema suscitado. O Regional considerou nula cláusula de não concorrência pelo fato de não ter sido estipulada compensação financeira em favor do ex-empregado durante a sua vigência
.
Além do mais, é de se observar que a limitação prevista no projeto estará restrita à mesma área de atuação, ou seja, se o empregado exercia uma atribuição estratégica no setor de petroquímica na empresa precedente, por exemplo, ele não poderá ser impedido de atuar no setor têxtil em uma nova empresa.
Consideramos essa uma medida justa, até porque a celebração da cláusula não é colocada como uma imposição, mas como liberalidade das partes (“é permitida”). Além disso, o projeto resguarda os requisitos que a doutrina e a jurisprudência consideram essenciais à validade da cláusula, a saber: limitação temporal, espacial e quanto à atividade; legítimo interesse das partes; compensação financeira ao empregado pelo prazo de não concorrência estipulado e penalidade em face do seu descumprimento.
Se o tema pode ser visto como inovação na esfera trabalhista, o mesmo não podemos dizer em relação ao serviço público. O art.6º da Medida Provisória nº 2.225-45, de 4 de setembro de 2001, estabelece que “os titulares de cargos de Ministro de Estado, de Natureza Especial e do Grupo- Direção e Assessoramento Superiores - DAS, nível 6, bem assim as autoridades equivalentes, que tenham tido acesso a informações que possam ter repercussão econômica, na forma definida em regulamento, ficam impedidos de exercer atividades ou de prestar qualquer serviço no setor de sua atuação, por um período de quatro meses, contados da exoneração”, enquanto o art. 7º da Medida prevê o pagamento de remuneração compensatória pelo período em que durar a quarentena. Ou ainda em legislações específicas de Processo TRT-SP Nº 025702003045020054 agências reguladoras, a exemplo da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, em cujo art. 9º está previsto que “o ex-dirigente da ANEEL continuará vinculado à autarquia nos doze meses seguintes ao exercício do cargo, durante os quais estará impedido de prestar, direta ou indiretamente, independentemente da forma ou natureza do contrato, qualquer tipo de serviço às empresas sob sua regulamentação ou fiscalização, inclusive controladas, coligadas ou subsidiárias”.
Diante de todo o exposto, entendemos que a matéria contemplada no projeto é justa, está em conformidade com os princípios constitucionais e atende os requisitos de interesse público e, sendo assim, merece o apoio de nossos Pares para a sua aprovação.
Sala das Sessões, em de de 2011.
Deputado CARLOS BEZERRA
REFERÊNCIAS
ALVES. Nádia de Castro. Colisão de direitos fundamentais e ponderação. Meritum: revista de direito da FCH/FUMEC. V. 05, n. 01, janeiro/junho de 2010, Belo Horizonte: Universidade FUMEC, 2010, p. 25 - 48;
AMARAL, José de Campos. Direitos e garantias fundamentais: doutrina e jurisprudência. Brasília: Brasília Jurídica, 2007;
ASSIS, Luiz Gustavo Bambini de. A evolução do direito de propriedade ao longo dos textos constitucionais. Revista da Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo. V. 103, janeiro/dezembro de 2008, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008;
BARBOSA, Leonardo A. de Andrade. Notas sobre colisão de direitos fundamentais e argumentação jurídica: um diálogo entre Roberto Alexy e Klaus Günther. Novos estudos jurídicos. V. 13, n. 02, julho/dezembro de 2008, Santa Catarina: Univale, 2008, p. 23 - 37;
BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 8ª ed., São Paulo: Ltr, 2012;
BELÉM. Bruno Moraes Faria Monteiro. Colisão de direitos fundamentais no contexto da interpretação constitucional contemporânea. Fórum Administrativo – Direito Público – FA. Ano 08, n. 94, dezembro de 2008, Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 21 - 34;
BENASSE, Paulo Roberto. Dicionário jurídico de bolso. 2ª ed., São Paulo: Bookseller, 2002;
BERCOVICI. Gilberto; ANDRADE. José Maria Arruda de; BITTAR. João Maurício Adeodato Eduardo C. B. (org.). A concorrência livre na Constituição de 1998. Filosofia e Teoria Geral do Direito: homenagem a Tércio Sampaio Ferraz Júnior. São Paulo: QuartierLatin, 2011;
CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5º ed., São Paulo: Livraria Almedina, 2002;
CECCHIN, Airton José. A dignidade humana nas relações de trabalho. Paraná: Revistas Ciências Jurídicas Sociais da Unipar, 2007;
CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito Social. São Paulo: Ltr, 1980;
CLARO, Daniel. A evolução histórica do princípio da função social da propriedade (urbana). Revista Forense. V. 01, maio/junho de 2009, Rio de Janeiro: Forense, 2009;
DELGADO. Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13ª ed., São Paulo: LTR, 2014;
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio. Minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000;
FREITAS. Cibele Andrade Pessoa de. Cláusula de não-concorrência no contrato individual de trabalho brasileiro. Revista de Direito do Trabalho. Ano 34, n. 132, outubro/dezembro de 2008, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 09 - 21;
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. V. 05, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009;
GRANCONATO. Márcio. ALMEIDA. Renato Rua de (coord.); OLMOS. Cristina Paranhos (org.). Direitos fundamentais aplicados ao direito do trabalho. V. 02, São Paulo: Ltr, 2002;
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998. 12ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 2008;
JOÃO. Regiane de Mello. Cláusula de não concorrência inserida no contrato de trabalho a visão do judiciário – uma análise crítica de duas ementas de acórdãos do tribunal regional do trabalho da 2ª região. Revista Ltr. V. 71, n. 06, junho de 2007, São Paulo: Ltr, 2007, p. 720 - 723;
JOÃO, Regiane Teresinha de Mello. Cláusula de não concorrência no contrato de trabalho. São Paulo: Saraiva, 2003;
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no código de defesa do consumidor e no novo código civil. Revista de Direito do Consumidor, V. 42, abril/junho de 2002, p. 187-195.
MALLET. Estêvão. Cláusula de não-concorrência em contrato individual de trabalho. Revista Ltr. V. 69 n. 10, outubro de 2005, São Paulo: Ltr, 2005, p. 1.159 - 1.169;
MANKIW. Nicholas Gregory. Introdução à economia – Tradução da 6ª edição norte-americana. São Paulo: Cengage Learning, 2014;
MARTINS. Sérgio Pinto. Cláusula de não concorrência inserida no contrato de trabalho. Revista Síntese trabalhista e previdenciária. Ano 23, n. 274, abril de 2012, São Paulo: Síntese, 2012, p. 43 - 63;
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. V. 03, 37ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003;
NETO, Célio. Liberdade de trabalho e a cláusula de não concorrência. Newsletter. 18ª ed., ano 03, agosto de 2012. Disponível em: <http://www.celioneto.adv.br/news/08.2012/liberdade_de_trabalho_e_a_clausula_de_nao_concorrencia.pdf>, acesso em: 02-06-2014;
NOVO, Catia Guimarães Raposo. Da cláusula de não concorrência no contrato individual de trabalho. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2007;
NUNES, Rizzato. Manual da monografia jurídica. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011;
PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho – noções fundamentais de direito do trabalho: sujeitos e institutos do direito individual. São Paulo: Ltr, 2003;
SARAIVA, Renato. Direito do Trabalho versão universitária. 5ª edição, São Paulo: Método, 2012;
SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTR, 2002;
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil parte geral. V. 01, 7ªed., São Paulo: Atlas, 2007;
VICENTINO, Cláudio. GIANPAOLO. Dorigo. História para o ensino médio – história geral e do Brasil. V. único, 1ª ed., São Paulo: Scipione, 2001.
SITES VISITADOS
http://www.planalto.gov.br/;
http://nacoesunidas.org/;
http://www.dudh.org.br;
http://www.inpi.gov.br/;
http://www.camara.gov.br/;
http://www.tst.jus.br/;
http://www.trtsp.jus.br/;
http://www.trt4.jus.br/;
http://www.trt7.gov.br/;
http://portal.trt15.jus.br/;
http://www.jusbrasil.com.br/.