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UMA CONDENAÇÃO INJUSTA

Agenda 09/02/2021 às 17:26

O ARTIGO DISCUTE PONTOS NO CASO TRIPLEX ENVOLVENDO UM EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

UMA CONDENAÇÃO INJUSTA

Rogério Tadeu Romano

 

I – RESUMO PROCESSUAL

Trago em síntese aspectos da denúncia formulada contra o ex-presidente Lula no caso tríplex.

De acordo com o MPF, a OAS reservou à família do ex- presidente Lula um triplex no Condomínio Solaris, em frente à praia, em Guarujá. Antes de a empreiteira assumir a obra, o edifício era comercializado pela antiga cooperativa de crédito do Sindicato dos Bancários de São Paulo, a Bancoop, que registrou falência. A ex-primeira dama Marisa Letícia tinha uma cota do empreendimento. Segundo o MPF, o imóvel rendeu um montante de R$ 2,76 milhões ao ex-presidente. O valor é a diferença do que a família de Lula já havia pago pelo apartamento, somado a benfeitorias realizadas nele. O MPF utiliza como prova visitas que Lula e Marisa Letícia fizeram ao apartamento, entre 2013 e 2014, e sustenta que a família chegou a fixar obras a serem feitas no imóvel, como a instalação de um elevador privativo.

A sentença do então juiz federal Sérgio Moro se baseou no que segue:

Em julho de 2017, o juiz Sergio Moro condenou o ex-presidente a 9 anos e 6 meses de prisão no caso do triplex. De acordo com a sentença, Lula recebeu R$ 2,25 milhões em propina relacionada ao apartamento. O imóvel, segundo Moro, era resultado de propina acertada entre o PT e a OAS, sendo que a construtora pagou cerca de 3% do valor dos contratos e aditivos firmados. O preço do imóvel e as reformas foram descontadas desse percentual.

Ali se disse:

“O condenado ocultou e dissimulou vantagem indevida recebida em decorrência do cargo de presidente da República. A responsabilidade de um presidente é enorme e também sua culpabilidade quando pratica crimes. Isso sem olvidar que o crime de insere em um contexto mais amplo de um esquema de corrupção sistêmica na Petrobras e de uma relação espúria entre ele e o Grupo OAS. Agiu portanto, com culpabilidade extremada, o que também deve ser valorado negativamente.”

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve sua condenação confirmada no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região). O revisor Leandro Paulsen, o relator João Pedro Gebran e o juiz federal Victor Laus votaram por aumentar a pena do petista para 12 anos e um mês de prisão.

Em julho de 2017, o juiz Sergio Moro havia determinado nove anos e seis meses de prisão.

Por unanimidade, os ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitaram recurso da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que pedia a anulação do processo do triplex do Guarujá (SP).

Há alguns pontos que devem ser observado:

- Não há valores provenientes de contratos da Petrobras usados para pagar vantagem a Lula. Assim, Moro não tinha competência para ter seguido com o processo;

- Não há corrupção passiva sem um ato que o servidor tenha praticado ou deixado de praticar para ter uma vantagem. A sentença não indica ato de ofício que Lula tenha praticado ou deixado de praticar, nem vantagem recebida, já que ele não é dono do tríplex;

- A defesa do ex-Presidente afirmou que o apartamento 164-A, triplex, jamais lhe pertenceu e, embora tivesse sido a ele oferecido no ano de 2014, não houve interesse na aquisição e, portanto, não houve a compra.

II – A QUESTÃO DA PREVENÇÃO

A prevenção é a razão da reunião desses processos.

A prevenção se dá quando, tendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, venha um dele, antecipando-se aos outros praticar algum ato ou determinar alguma medida, mesmo antes de oferecida a denúncia (prisão preventiva, fiança) que o torne competente para o processo, excluídos os demais" (PAULO LÚCIO NOGUEIRA. Curso Completo de Processo Penal, 3ª ed., Saraiva. l987, pág. 66).

Preventa estará a jurisdictio de um juízo, quando este preceder, antecipar-se aos demais juízes igualmente competentes em algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anteriormente ao oferecimento da denúncia ou queixa.

Prevenção é critério de fixação da competência.

Prevenção é ato de prevenir, e prevenir (de prevenire) é vir antes, chegar antes, antecipar-se etc. Diz-se, então, prevenida ou preventa a competência de um juiz quando ele se antecipou a outro, também competente, na prática de ato do processo ou de que a este se relacione, como sucede com a prisão preventiva, a em flagrante, as buscas e apreensões, o reconhecimento de pessoas ou coisas etc.

Deflagrada em 17 de março de 2014 a chamada “operação Lava-Jato” desmontou um esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas que movimentou enorme quantia de dinheiro.

Informa-se que, de acordo com a Polícia Federal, as investigações identificaram um grupo especializado no mercado clandestino de câmbio.

Por certo, a sociedade de economia mista Petrobras está no centro das investigações, que apontam ex-dirigentes daquela empresa envolvidos no pagamento de propina a políticos e executivos de empresas que firmaram contratos com a petroleira.

Como já salientado foram diversos os ilícitos cometidos que estão sendo investigados: peculato; corrupção passiva e ativa(sendo que há uma vertente onde se argumenta pela existência de crime de concussão, forma de extorsão promovida por servidor público); frustrar ou fraudar licitação mediante ajuste ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório com intuito de obter para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação; organização criminosa, formação de cartel,  todos em concurso material(artigo 69 do Código Penal). Além deles, pode-se falar no cometimento, dentre outros, de delitos de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Sabe-se que essa operação levou à prisão de Alberto Youssef, que foi apontado como “chefe do esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas”.

Vem a pergunta: Que razões levam à competência da Justiça Federal de primeira instância(que se encerra quando houver investigação envolvendo parlamentar federal, quando então a competência será do Supremo Tribunal Federal), para investigar, instruir e julgar?

Dir-se-á que há outros crimes conexos, de competência da Justiça Estadual,   cometidos. Como definir a competência?

Sabe-se que a Petrobras é uma sociedade de economia mista e a competência para instruir e julgar crimes contra ela cometidos  é da Justiça Estadual. Como disse Eugênio Pacelli(Curso de processo penal, 16ª edição, pág. 222), tanto a competência da Justiça Federal quanto a da Estadual são fixadas constitucionalmente, daí porque se constituem ambas, no juiz natural para os crimes federais e para os crimes estaduais, respectivamente. A opção pela reunião dos processos pode ser explicada pela necessidade de preservar o princípio da unidade e coerência das decisões judiciais. 

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No concurso entre crimes conexos e ou continentes da competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, prevalecerá a da primeira, segundo entendimento já sumulado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a teor da Súmula 122. O motivo: a competência federal vem expressamente definida, ao contrário da estadual, que seria residual.

É dito na Súmula 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

Ora, se não há esse liame mínimo de conexão dos pagamentos de valores envolvendo as propinas da Petrobras então não seria hipótese de manter aquele juízo. Seria o caso julgado pela Justiça Comum do Estado de São Paulo.

III – A CORRUPÇÃO E O CHAMADO ATO DE OFICIO

Por outro lado, há a discussão com relação ao chamado ato de oficio.

 A falta do “ato de ofício” serviu, por exemplo, para que o Supremo Tribunal Federal absolvesse, criminalmente, o ex-presidente Fernando Collor das denúncias de corrupção do caso PC Farias em 1994. A punição política havia ocorrido dois anos antes, com o impeachment imposto pelo Congresso. 

Em 2012, o entendimento a respeito do “ato de ofício” começou a mudar no Supremo. Durante o julgamento do mensalão, a ministra Rosa Weber sustentou que não seria necessário comprovar o “ato de ofício” para condenar alguém por corrupção. Bastaria a perspectiva de que o ato pudesse ocorrer. Era o julgamento na AP 470, no caso “mensalão”.

“A indicação de ato de ofício não integra o tipo legal. Basta que o agente público tenha o poder de praticar atos de ofício. Se provar [o ato de ofício], aumenta a pena.”

É o chamado “ato de ofício determinado”.

O Ministro Gilmar Mendes já sustentou que é necessária a existência de um ato de ofício relacionado à função pública do réu, mas é “indiferente para a consumação do delito que o ato funcional venha a ser praticado ou não”.

Uma vez mais reafirmo que a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. E, conforme entendimento assentado pela Corte, no julgamento da AP 307 e ora reiterado, “sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, caput, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de ofício – ou sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais –, não se poderá, ausente a indispensável referência a determinado ato de ofício, atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva” (AP 307, excerto do voto do Ministro Celso de Mello).

A defesa do ex-presidente, aponta o que chama de graves falhas no processo do tríplex.

Essas falhas, segundo os advogados, aparecem tanto no que se refere à ligação de Lula com o imóvel quanto no que se refere à ligação do ex-presidente com os contratos da Petrobras. Ou seja, inexiste o “ato de ofício”.

Trata o artigo 317 do Código Penal do crime de corrupção passiva.

O núcleo do tipo é solicitar, receber ou aceitar vantagem indevida, mesmo fora da função ou antes de assumi-la, desde que em virtude da função.

O ato funcional, de natureza comissiva ou omissiva, sobre o qual versa a venalidade pode ser lícito ou ilícito.

Fala-se em corrupção própria ou imprópria. Necessário exemplificar.

Constitui corrupção própria receber numerário para conceder uma licença a que não se tem direito. A corrupção imprópria(simples) ocorrerá se o funcionário receber uma vantagem para consentir numa licença devida. Na corrupção própria a prática se refere a solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida para realização de um ato ilícito. Na corrupção própria tem-se a solicitação, recebimento ou aceitação de vantagem indevida para a realização de ato licito.

Fala-se em corrupção antecedente e consequente. Ocorrerá a primeira quando a recompensa for entregue ou prometida, visando a uma conduta futura. Na outra, ocorrerá a recompensa após a prática do ato. Na corrupção antecedente, a solicitação da vantagem ilícita e a aceitação da promessa se dão antes da realização do ato. Por sua vez, na corrupção consequente ou subsequente, a solicitação da vantagem ilícita ou a aceitação da promessa se darão após a prática do ato.

A corrupção passiva foi objeto da Consolidação das Leis Penais sob a forma de peita ou suborno. A peita, consoante o Código Penal de 1830, consistia quando recebesse o servidor dinheiro ou algum donativo. O suborno quando se deixasse corromper o funcionário por influência ou outro pedido de alguém, lembrando a atual corrupção privilegiada.

É indispensável para a caracterização do ilícito em estudo que a prática do ato tenha relação com a função do sujeito ativo. O ato ou a abstenção a que se refere a corrupção deve ser de competência em suas atribuições funcionais, porque somente nesse caso se pode deparar com o dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração. Além disso, o pagamento feito ou prometido deve ser a contraprestação de ato de atribuição do sujeito ativo(RF 201/297; JTJ 160/306). Assim não se tipifica a infração se a vantagem desejada pelo corruptor não é de atribuição e competência do funcionário(RT 505/296). Poderá assim a conduta ser enquadrada como crime de tráfico de influência(artigo 332) ou poderá haver a prática de coautoria de funcionário em crime de corrupção ativa se transferir o dinheiro ao colega que detém a competência.

O crime de corrupção passiva é bilateral nos casos de recebimento.

Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado por corrupção passiva mesmo sem a indicação exata de atos de ofício específicos praticados em favor da OAS, empresa que, de acordo com os julgadores, presenteou o ex-Presidente com um imóvel, em função de seu cargo. Em troca dessa vantagem indevida, a empresa teria sido beneficiada em contratos superfaturados com a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás.

Não há uma ligação direta do ex-Presidente com esses contratos, mas segundo os magistrados, como Presidente da República, ele tinha controle sobre as nomeações de diretores que fechavam os contratos, o que consubstanciariam atos de ofício indeterminados. Observando que a mercancia da função pública se dá de modo difuso, através de uma pluralidade de atos de difícil individualização, principalmente em casos de macrocorrupção envolvendo elevadas autoridades públicas.

Há necessidade de mencionar expressamente na denúncia o ato de ofício: não se pode aceitar denúncia oferecida contra funcionário público sem a indicação de qual é o ato funcional vinculado à suposta vantagem indevida. Nessa esteira: TJSP: HC 261.928, Nova Granada, 3.a C., Relator Gonçalves Nogueira,18.08.1998, v. u., JUBI 30/99.

Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal. Vol. IX. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958), membro da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1940, em seu livro Comentários ao Código Penal, esclareceu que foi exatamente no modelo suíço que se inspirou o legislador brasileiro. Para esse penalista, “o nosso legislador de 40 inspirou-se no Código suíço”.

E o Código suíço prevê em seus artigos 315 (corrupção própria) e 316 (corrupção imprópria) a prática de ato de ofício para consumação do crime. O que poderia sinalizar, devido sua influência, a presença desse elemento normativo também no tipo penal do caput do art. 317 do Código brasileiro, ainda que não mencionado, ou seja, de forma implícita.

O crime de corrupção passiva é formal e prescinde da efetiva prática do ato de ofício, sendo incabível a alegação de que o ato funcional deveria ser individualizado e indubitavelmente ligado à vantagem recebida, uma vez que a mercancia da função pública se dá de modo difuso, através de uma pluralidade de atos de difícil individualização. (...) (STJ - RHC 48400 Relator GURGEL DE FARIA QUINTA TURMA DJE DATA:30/03/2015).

Penso que fica a lição exposta pelo ministro Celso de Mello no chamado “caso Collor” quando ensinou:

Ministro Celso de Mello:

“Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, caput, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e um determinado ato de ofício pertencente à esfera de atribuições do intraneus.

(...)

Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo de suas atribuições funcionais –, revela-se inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caraterização típica do crime de corrupção passiva definido no caput do art. 317 do Código Penal.

(...)

Revela-se essencial, portanto, no caso em exame, sob pena de absoluta descaracterização típica da conduta imputada aos réus, a precisa identificação de um ato de ofício incluível na esfera das atribuições do Presidente da República e por este, direta ou indiretamente, prometido ou oferecido como resposta à indevida vantagem solicitada, recebida ou esperada”.

Em sendo assim não há falar em ato de ofício exercido por alguém que já estava fora da presidência da República e que não poderia influir com algum presente que lhe fosse dado.

IV – A SUSPEIÇÃO

Mas há uma preliminar que deve ser levada em conta para o caso. Diz respeito ao que a defesa aduz como suspeição do então juiz Moro para julgar o caso.

Em reportagem postada no site do O Globo, datada de 10 de junho de 2019, há preocupante informação:

“Mensagens atribuídas ao procurador Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal (MPF), e ao ministro da Justiça Sergio Moro, divulgadas ontem pelo site The Intercept Brasil, mostram os dois combinando atuações enquanto trabalharam na operação Lava-Jato. A reportagem ainda cita mensagens entre os procuradores nas quais eles teriam discutido no aplicativo Telegram uma maneira de barrar a entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizada por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) . Neste domingo, a força-tarefa de Curitiba divulgou nota para rebater a reportagem, dizendo que “seus membros foram vítimas de ação criminosa de um hacker que praticou os mais graves ataques à atividade do Ministério Público, à vida privada e à segurança de seus integrantes”.

Em nota, o ministro Sergio Moro lamentou “a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo.”

O site divulgou trocas de mensagens de Dallagnol e Moro que fazem referências ao processo em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi condenado no caso do tríplex de Guarujá. The Intercept Brasil informou que obteve o material de uma fonte anônima, que pediu sigilo. O pacote inclui mensagens privadas e de grupos da força-tarefa no aplicativo Telegram de 2015 a 2018.

Em uma das mensagens de texto, no dia 21 de fevereiro de 2016, Moro sugeriu alterações no calendário das operações da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, em decorrência de desdobramentos políticos. Dallagnol, de acordo com o site, disse ao magistrado que haveria problemas logísticos para acatar a sugestão.”

O fato revela a extensão das relações entre o juiz, responsável por julgar, e o procurador da República, órgão da acusação. Essas relações se engendram dentro de um dos momentos mais importantes dos fatos recentes da vida nacional.

O material divulgado no domingo, dia 9, pelo Intercept mostra, por exemplo, que Dallagnol tinha dúvidas sobre a solidez das provas que sustentaram a primeira denúncia apresentada pela força-tarefa de Curitiba contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2016, a ação que o levou à prisão no ano passado.

Dias antes de apontar o líder petista como chefe do esquema de corrupção na Petrobras, Dallagnol manifestava tamanha insegurança nas conversas com os colegas que em certo ponto uma reportagem de jornal pareceu a prova decisiva que precisava obter para vincular Lula ao tríplex em Guarujá no centro do caso.

Dois dias depois de protocolar a denúncia, o procurador admitiu a fragilidade das provas contra Lula e deixou claro para Moro que não pretendia discutir o assunto em público. “A denúncia é baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e na comunicação evitamos esse ponto”, disse ao juiz.

Segundo a reportagem do Intercept Brasil, Moro sugeriu ao MPF (Ministério Público Federal) trocar a ordem de fases da Lava Jato, cobrou a realização de novas operações, deu conselhos e pistas e antecipou ao menos uma decisão judicial.

Teria havido fato que encerra uma suspeição?

Na legislação brasileira, é o Código de Processo Penal que dita as regras das ações criminais e trata diretamente desta hipótese. Em seu artigo 254, a norma diz que o juiz deve declarar-se suspeito ou pode ser recusado pelos envolvidos no processo “se tiver aconselhado qualquer das partes” — defesa ou acusação. Mais adiante, o artigo 564 do CPP aponta os casos em que ocorrerá a nulidade, entre eles “por incompetência, suspeição ou suborno do juiz”.

Mas, será dito que se trata de prova ilícita.

Vedam-se provas obtidas por meios ilícitos (princípio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), algo inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a condenação obtida pelo Estado a qualquer preço.

A proibição da prova ilícita surgiu na Suprema Corte americana. Ao interpretar essa proibição, a Corte delimitou o sentido e o alcance da norma, para estabelecer exceções às regras de exclusão, como a da admissibilidade da prova ilicitamente obtida por particular, a da boa-fé do agente público e a da causalidade atenuada.

Na Alemanha essa proibição foi objeto de preocupação do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha. Ali fixou-se a chamada teoria das três esferas, que gradua a privacidade e qualifica juridicamente as investidas estatais contra elas para fins de produção da prova. Por ela, apenas a prova produzida com invasão das estruturas mais íntimas da vida privada, como o monólogo, seriam inaproveitáveis; as provas produzidas com invasão das camadas menos profundas da intimidade podem ser aproveitadas, se a intensidade da invasão for proporcional à gravidade do crime investigado.

No Brasil, a Constituição de 1988 prevê, entre as garantias fundamentais, que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Mas a inadmissibilidade da prova ilícita não exige que ela seja interpretada como garantia absoluta, nem afasta que seja submetida a testes de proporcionalidade. Aliás, a prova ilícita que favoreça o réu é admissível. A reforma processual de 2008, nessa linha de entendimento, permite o aproveitamento da prova ilicitamente obtida quando corroborada por fonte independente ou quando sua descoberta inevitavelmente ocorreria.

Há uma corrente de criminalistas que entende que as provas ilegais podem ser usadas para defender o réu. Se elas demonstram a parcialidade do julgador, podem ajudar a soltar o condenado, que é o que querem para o ex-presidente Lula.

A doutrina, na linha de Andrey Borges de Mendonça(Nova Reforma do Código de Processo Penal. Primeira Edição. Ed. Método, 2008. P. 172) abarca a possibilidade de utilização da prova ilícita em favor do acusado e, majoritariamente, aponta para a possibilidade de sua utilização, mesmo se obtida por meio de violação legal ou constitucional, na hipótese de ser ela o único meio de prova da ilegalidade cometida contra o acusado.

Antônio Scarance Fernandes(Processo Penal Constitucional. Sexta Edição. Editora RT. P. 83-84) defende a possibilidade da prova ilícita pro reo com fundamento no princípio da proporcionalidade. No mesmo sentido, se posicionam Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior, invocando a teoria do sacrifício, segundo qual, no conflito entre a garantia processual e o direito à liberdade, esse deveria prevalecer.

Como as mensagens divulgadas pelo The Intercept parecem ter sido obtidas ilegalmente pela fonte do material, é improvável que sejam aceitas pela Justiça como prova de que Moro e Dallagnoll tenham cometido alguma ilegalidade, a menos que haja o que se chama de encontro fortuito de provas, a proteger essas provas como instrumento de apuração. Os danos causados à credibilidade que eles construíram, porém, parecem significativos.

Que falar com relação ao caso do chamado Sítio de Atibaia, onde muitas das alegações de defesa ali se repetiram, que não foi objeto do julgamento por Moro? Mas, será dito que Moro presidiu a instrução.

Aplica-se o princípio da causalidade.

Porque os atos processuais se conexionam uns aos outros, a declaração de nulidade de um ato não atinge senão os que lhe forem posteriores e dele dependem. Já dizia o antigo artigo 249 do CPC de 1973, que deve ser considerado para a nova sistemática processual de 2015, que “o juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos ou retificados.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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