A Psicologia é a ciência que estuda o comportamento humano e seus processos mentais, ou seja, ela estuda o que motiva o comportamento humano, o que o sustenta e seus processos mentais, que estão atrelados a sensação, percepção, emoção, aprendizagem.Ela atua em duas áreas principais, a psicologia acadêmica e a psicologia aplicada que busca soluções e entendimento para os problemas do mundo real, onde se incluem a psicologia forense ou jurídica como exemplo.
A Psicologia Jurídica é denominada como uma área, um recorte da Psicologia e Jesus (2010) a define como um “campo especializado de investigação psicológica, que estuda o comportamento dos atores jurídicos no âmbito do direito, da lei e da justiça.” (JESUS, 2010 p.52). E conforme a Resolução CFP nº 013/2007, o psicólogo especialista em psicologia jurídica atua no âmbito da Justiça colaborando no planejamento e execução de políticas de cidadania, direitos humanos e prevenção da violência ;avaliando as condições intelectuais e emocionais de crianças, adolescentes e adultos em conexão com processos jurídicos, etc. Portanto, podemos afirmar que a Psicologia se aproxima do Direto devido à preocupação com a conduta humana e nesses termos, a psicologia jurídica auxilia as questões relacionadas à saúde mental dos envolvidos em um processo jurídico
Nesse contexto, o trabalho abordará a interface entre as violências e abusos sexuais sofridos pela criança e o adolecente, buscando tecer as sequelas psicológicas do abuso sexual praticado contra menores de idade, enfatizando o papel do psicólogo jurídico, de maneira que a discussão do tema possa colaborar no entendimento da prevenção da ocorrência desses casos.
Inicialmente quero colocar aqui, o que trata alguns dispositivos legais sobre o cuidado e aproteção à criança e ao adolescente.O documento da “Declaração de Genebra” reconhece o dever da criança ser protegida independentemente da sua raça, nacionalidade ou crença, o dever de ser auxiliada, respeitando a integridade da família, bem como o dever de ser “colocada em condições de se desenvolver de maneira normal, quer material, quer moral, quer espiritualmente”. Como forma de corroborar com esse pensamento, a Declaração dos Direitos da Criança pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, no seu Princípio 2.º está elencado:
A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança.
Estas declarações, apesar de não implicar obrigações jurídicas, contempla, deveres morais, e nela pode ler-se que “a Humanidade deve dar o melhor de si mesma à criança”.
Importante destacar que o abuso sexual de crianças e adolescentes é um crime perverso que pode afetar de forma significativa a vida e o desenvolvimento deles e de suas famílias. O abuso sexual pode ser classificado em duas categorias: intrafamiliar ( quando ocorre no ambiente da família e é praticado por um membro desta, ou seja, pelo pai, mãe, tio, irmão, avô, padrasto ou madrasta) e o extrafamiliar (quando ocorre fora do âmbito familiar, mas geralmente é praticado por pessoas próximas, que tenha vínculo com a criança, seja um vizinho, uma babá, um amigo da família, um professor, etc.).
Nos casos de abuso sexual contra a criança e ao adolescente, a denúncia é um requisito essencial para apuração dos fatos e tomada de decisões necessárias. Lembrando que esses riscos são formalizados também com as ameaças de agressão, violências físicas e emocionais ou risco de morte. É necessário compreender que a ação de denunciar pode salvaguardar a criança da brutalidade do seu agressor, de proteger a sua vida. Pois a criança convive diariamente com o risco e essa situação negativa presente em sua vida, pode causar o desenvolvimento de problemas físicos, sociais e emocionais (YUNES & SZYMANSKI, 2005; YUNES, MIRANDA & CUELLO, 2004). Nesse caso, cabe a instituições como a escola, a família, a igreja, as associações de moradores, contrapor-se a esses mecanismos de risco para criança e ao adolescente, atuando de forma protetiva para impedir que o abuso perdure.
Conforme mencionado, podemos perceber que a criança gozará de proteção especial e deverão ser-lhe dadas oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social num ambiente saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Assim, as responsabilidades sociais dessa temática também constam de definições e artigos legais que objetivam dar proteção à infância e a juventude. A nossa Constituição Federal de 1988 dispõe no seu artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
O Artigo. 227, § 4º CF: A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.” (BRASIL, 2000, p. 107-108). E o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no artigo 18 trata do direito a dignidade e diz: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Portanto, a suspeita dos casos de abusos sexuais de crianças e adolescentes devem ser denunciados, notificados para que essas crianças se livrem das violências sofridas, conforme dispõe o artigo 13 do ECA: “Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais” (BRASIL, 2003).
Como se percebe, é importante fazer a denúncia em casos de abuso sexual para que sejam tomadas as devidas providências legais de proteção, porque somente através da denúncia é que a autoridade jurídica pode proceder as ações para afastar e punir o agressor. E nós, como cidadão politizados devemos estar atentos e denunciar práticas que violem os direitos dos menores. Segundo Amazarray e Koller (1998, p. 3) “denunciar esse tipo de violência é uma tarefa essencial, uma vez que o silêncio perdoa o agressor e reforça seu poder sobre a vítima”.
Além disso, precisamos refletir, questionar: E como fica à criança e ao adolescente diante disso? Quais as sequelas psicológicas do abuso sexual? De acordo com Azevedo e Guerra (2000), as experiências de abuso sofridas por essas crianças e o silêncio a que elas, como vítimas, são muitas vezes obrigadas a passar consequentemente faz com que elas desenvolvam uma perda da autoestima, gera traumas, dificuldades de adaptação interpessoal e afetiva e em casos mais extremos, a estados psicóticos ou até o ponto em que alguns adolescentes chegam a considerar o suicídio, principalmente quando o abusador faz chantagem ou ameaças.
Corroborando com as autoras supra citadas, para Brauner (2004), o abuso sexual dessas crianças e adolescentes faz elas se sentirem envergonhadas e culpadas e a partir daí, elas se isolam e escondem as violações que têm sofrido. O autor alega que esse tipo de situação promove mais confiança no agressor em relação as suas vítimas, fazendo com que ele continue com suas práticas abusivas e violentas, ou até mesmo, procure outras vítimas.
Na percepção de Drezett (2000), cada vítima reage de maneira diferente, pois cada indivíduo tem uma personalidade distinta, porém, ele chama a atenção para as marcas do abuso sexual e as sequelas que se desdobram em várias situações. Segundo Drezett (2000), a criança ou o adolescente que sofre abuso sexual podem apresentar: perturbações do sono constantes pela angústia de baixar a guarda e ser agredido sem defesa; dificuldade de lidar com seu próprio corpo, considerando-o pouco atraente; comportamento autodestrutivo; baixa autoestima; Sexualidade vista como punitiva, com culpabilidade, oferecendo possível dificuldade de relacionamentos sexuais na idade adulta; depressão, angústia, pânico e sentimento de inferioridade, inclusive tentativas de suicídio.
Podemos observar que o abuso sexual de crianças e adolescentes é uma triste realidade que ocorre em todas as classes sociais, religiões, independentemente do nível de escolaridade, dos analfabetos aos doutores. Infelizmente é muito difícil de ser descoberto, porque na maioria das vezes não é denunciado. Portanto, a única forma de proteger nossas crianças, filhos, netos, sobrinhos, enfim, nossa família e a sociedade de uma forma geral é ficarmos atentos, sabendo onde e com quem estão nossos familiares. Isso, porque os abusadores podem ser pessoas próximas das crianças ou não. Assim, amar, cuidar e educar as nossas crianças é a melhor forma de evitarmos que surjam mais abusadores no futuro.
De acordo com Dobke (2001) há dificuldades apresentadas pelos operadores do direito em compreenderem a dinâmica do abuso sexual e principalmente a linguagem das vítimas, o que requer, segundo a autora, um profissional habilitado, que auxilie na interpretação dessa linguagem, com formação em psicologia e no nosso entender, um psicólogo jurídico.
“A inquirição da criança, através de profissional habilitado, poderia ainda, ser efetuada com a utilização da câmara de Gesel, sala com uma das paredes de vidro espelhado – unidirecional – que permite aos operadores do direito, do lado externo, observarem a criança e o “interprete”, sem serem percebidos, com a possibilidade de se comunicarem através de intercomunicadores”. (DOBKE, 2001, p. 92).
Segundo Dobke(2001) essa prática foi experenciada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul , na 2ª Vara da Infância e da Juventude a qual foi intitulada “ Depoimento sem Dano”. Essa foi uma prática alternativa para a construção de provas, através do depoimento da vítima.
Diante do exposto, a psicologia jurídica tem um papel fundamental em contribuir com o direito, nos processos que envolve a criança e o adolescente. Vez que, com esse trabalho conjunto, o psicólogo jurídico tem a função de proporcionar o melhor para a criança, através de um olhar profissional atento, sem preconceitos, com abertura para uma escuta apurada durante o processo judicial.
No ano de 2017 a luta contra os crimes de violência contra criança e adolescente teve uma importante vitória, o projeto de Lei.1341/17, que busca criar uma rede de proteção para as crianças e adolescentes testemunhas e vítimas de violências, para que este não fique à mercê após os fatos, os quais, por muitas vezes acabam passando pela revitimização. A lei assume um importante compromisso com o suporte psicológico para a vítima.
Vale ressaltar que a lei 13.431/17 regulamentou a importância dos cuidados ao colher as declarações de crianças e adolescentes, que já foram abusadas, vítimas de violência e tiveram seus direitos violados, daí a importância de um acolhimento humanizado para essas crianças e adolescentes.
Em suma, a lei possui a finalidade de que o depoimento especial,
“ que ocorra uma única vez; o mais cedo possível; em sala diferenciada e pelo intermédio de profissionais capacitados – principalmente psicólogos ou assistentes sociais – a fim de que sejam feitas perguntas de forma mais adequada” (SANTOS, COIMBRA, 2017, p. 596).
Quanto a perícia psicológica realizada em casos de abuso sexual de crianças e adolescentes deve incluir entrevistas com os responsáveis e com a vítima. Essas entrevistas podem ser realizadas em conjunto, ou seja, com a família, na perspectiva de observação da dinâmica familiar. É nesse momento que o psicólogo tem a oportunidade de analisar os aspectos psicológicos das pessoas envolvidas, ocultos por trás das relações processuais.
A perícia psicológica nesses casos, busca auxiliar o juiz em suas decisões, garantindo, assim, os direitos e o bem-estar da criança e/ou adolescente (Silva, 2003). É preciso enfatizar que a entrevista psicológica deve ser realizada em um ambiente empático e protegido, para que as crianças e adolescente vitimadas se sintam seguras, possam manifestar suas emoções e sentimentos, isentando-as da culpa. O uso de testes psicológicos também pode ser utilizado nesses casos, o objetivo é buscar sinais e sintomas cognitivos, emocionais e comportamentais compatíveis com a ocorrência do abuso sexual.
Em meio as questões expostas nesse trabalho, constatamos a importância da disciplina psicologia jurídica na formação dos profissionais de direito, sendo então, um avanço para o campo jurídico e segundo Chaves (2014) “ não mais colocando o direito no patamar de ciência autônoma, mas reconhecendo a necessidade de agregar contribuições de outras ciências”. Desse modo, podemos destacar a importância dos direitos que garantem a proteção e a integridade da criança e do adolescente e a necessidade social de discutir, estudar, pesquisar e divulgar o abuso sexual contra crianças e adolescentes sob a ótica da interdisciplinaridade entre o direito e a psicologia, pois não basta apenas a aplicabilidade da lei, cabe à sociedade, de uma forma geral, se tornar mais atuante e participativa no combate ao abuso sexual contra menores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A.. Crianças Vitimizadas: A síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu Editora, 1989.
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
AMAZARRAY, Mayte Raya; KOLLER, Sílvia Helena. Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia: Refl exão e Crítica, Porto Alegre, v. 11, n. 3, 1998.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Vade Mecum Saraiva. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Constituição federal, código penal, código de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Porto Alegre: Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente/RS, 2003.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº 013/2007. Disponível em: http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2015/12/resolucao2007-13.pdf Acesso em: 02/04/2020
BRASIL. Lei n. 9455, de 7 de abril de 1997. Presidência da República. Casa Civil, 1997.
_________Lei n. 13.431, de 04 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm>. Acesso em 10-04- 2020.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Abuso Sexual em crianças e jovens. Revista Brasileira de Direito de Família, São Paulo, n. 18, 2004.
CHAVES, I. Reflexão sobre Psicologia no Curso de Direito no Brasil. FAEF revista científica eletrônica. 6ª Ed. Garça/SP. Julho de 2014. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/IhGgp85ysSzzppR_2014-1215-18-22-2.pdf> acesso em: 01/08/2015.
DOBKE, V. Abuso Sexual: A Inquirição das Crianças – Uma Abordagem Multidisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.
DREZETT, J. F. Estudos de fatores relacionados com a violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres adultas. São Paulo: Centro de Referência da Saúde da Mulher e de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil, 2000.
SILVA, D. M. P. (2003). Psicologia jurídica no processo civil brasileiro: a interface da Psicologia com Direito nas questões de família e infância. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
JESUS, F. Psicologia Aplicada a Justiça. Goiânia: AB, 2010.
LAGO et al. Estudos de Psicologia I. Campinas I 26(4) I 483-491 I outubro - dezembro 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v26n4/09.pdf> acesso em: 3 de abril de 2020..
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos da Criança. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_universal_direitos_crianca.pdf Acesso em 05/04/2020
YUNES, M. A. M. & SZYMANSKI H. Grounded-theory & Entrevista Reflexiva: uma associação de estratégias metodológicas qualitativas para uma compreensão da resiliência em famílias. In: GALIAZZI, M. C.; FREITAS, J. V. (orgs.) Metodologias emergentes de pesquisa em educação ambiental. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
YUNES, M. A. M.; MIRANDA, A. T. & CUELLO, S. E. S. Um olhar ecológico para os riscos e oportunidades. In: KOLLER, S. (org.). Ecologia do desenvolvimento humano: pesquisa e intervenção no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 2005.