Neste trabalho visa-se estabelecer análises sobre a (in)constitucionalidade da abstenção de minsitro do Supremo Tribunal Federal (STF) constar como voto a favor do relator. Apesar de o Poder Judiciário e, correlamente, o Pretório Excelso, possuam autonomia, e, esse último, no sentido de criar seu próprio regimento bem como complementá-lo, essas possibilidades deverão se efetivar de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Nesses termos, muito nos chamou atenção a previsão e prática e, por isso, particularmente iremos refletir sobre o que consta no § 3º do art. 2º da Resolução nº 642, expedida pelo presidente Dias Toffoli em 14 de julho de 2019, a qual versa sobre o julgamento de processos em lista nas sessões presenciais e virtuais do Supremo, já que a consideração de acompanhamento do relator por parte daquele de ministro que não se pronunciar no prazo de 5 dias úteis gera inconstitucionalidades diversas. Para comprovar nossos anseios faremos uma pesquisa adotando métodos descritivos, analíticos e reflexivos numa abordagem doutrinária e legislativa sobre a matéria.
Palavras-chave: STF. Resolução. Plenário. Vitual. Inconstitucionalidades.
ABSTRACT
This work aims to establish analyzes on the (in) constitutionality of abstaining from the Supreme Federal Court (STF) as a vote in favor of the rapporteur. Although the Judiciary and, correlatively, the Pretorio Excelso, have autonomy, and the latter, in the sense of creating their own regiment as well as complementing it, these possibilities should be implemented according to the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. In these terms, prediction and practice attracted a lot of attention and, therefore, we will particularly reflect on what appears in § 3 of art. 2 of Resolution no. 642, issued by President Dias Toffoli on July 14, 2019, which deals with the judgment of list processes in the face-to-face and virtual sessions of the Supreme Court, since the consideration of the rapporteur's follow-up by that of the minister who not commenting within 5 working days generates several unconstitutionalities. To prove our desires we will do a research adopting descriptive, analytical and reflective methods in a doctrinal and legislative approach on the matter.
Keywords: STF. Resolution. Plenary. Vitual. Unconstitutionalities.
1 INTRODUÇÃO
Segundo a Constituição Federal de 1988, a República Federativa do Brasil possui como Poderes, nos termos do art. 2º, “[...] independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. (BRASIL, 1988, p. s.n)
Embora se encontrem divergências sobre tratar-se o Ministério Público de um quarto poder ou não, o texto Constitucional consagra, claramente, o princípio da separação dos Poderes.
Nesses moldes, interessante registrar os dizeres de José Luiz Quadros de Magalhães (2010, p. s.n.):
O Ministério Público recebeu na Constituição de 1988 uma autonomia especial, que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito a lei e a Constituição, e logo, os direitos fundamentais da pessoa, o patrimônio público, histórico, o meio ambiente, o respeito aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada as suas funções constitucionais o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é a de fiscalização e proteção da democracia e dos direitos fundamentais e não de legislação, administração, governo, ou jurisdição. Embora o constituinte de 87-88 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público um quarto poder, o texto assim o caracteriza, ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar esta função de fiscalização típica do Ministério Público a qualquer outra função, é tentativa de reduzir os mecanismos de controle democrático, e logo, inconstitucional.
A separação de Poderes é um princípio fundamental da democracia moderna que pretende evitar a concentração absoluta do poder nas mãos do soberano, figura encontrada no Estado absoluto, berço de sua criação tendo-se como paradigma a representação contemporânea.
Isso porque o princípio foi sugerido por Aristóteles sendo, no entanto, definido e divulgado por Montesquieu, quando estabeleceu que cada uma das funções do Estado seja da responsabilidade de um órgão específico e especializado em sua consecução.
Relativamente ao histórico e bases teóricas do princípio da separação de Poderes, segundo fomentou Pedro Lenza (2012, p. 481-482):
As primeiras bases teóricas para a “tripartição de poderes” foram lançadas na antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra a Política, em que o pensador vislumbrou a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas geris nos casos concretos. Acontece que Aristóteles, em decorrência do momento histórico de sua teorização, descrevia a concentração do exercício de tais funções na figura de uma única pessoa, o Soberano, que detinha um poder “incontrastável de mando”, uma vez que era ele quem editava o ato geral, aplicava-o ao coso concreto e, unilateralmente, também resolvia os litígios eventualmente decorrentes da aplicação da lei. A célebre frase de Luís XIV reflete tal descrição: “L’État c’est moi”, ou seja, “o Estado sou eu”, o soberano. Muito tempo depois, a teoria de Aristóteles seria “aprimorada” pela visão precursora do Estado Liberal burguês desenvolvida por Montesquieu em seu O espírito das leis. O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício de três funções estatais. De fato, partindo desse pressuposto aristotélico, o grande pensador Frances inovou dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, na mais se concentrando nas mãos únicas do soberano. Tal teoria surge em contraposição ao absolutismo, servindo de base estrutural para o desenvolvimento de diversos movimentos com as revoluções americana e francesa, consagrando-se na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e Cidadão, em seu art. 16.
Em termos normativos, não há relação de subordinação ou hierarquia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, devendo cada qual exercer suas funções horizontalmente, de modo que o Estado funcione na mais perfeita harmonia e atinja suas finalidades.
Dessa maneira, corroborando o que afirmamos, em que pese o art. 2º da Constituição Federal prever o termo independência, a definição mais adequada é autonomia.
Vejamos o que José Luiz Quadros de Magalhães (2010, p. s.n.) destacou nesse ínterim:
Imaginou-se um mecanismo que evita-se esta concentração de poderes, onde cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Este mecanismo será aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, onde estes três poderes que reúnem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Estes mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida (o que é extremamente raro) permitirá que os três poderes sejam independentes (a palavra correta é autônomo e não independente) não existindo a supremacia de um em relação ao outro (o que também é raro acontecer conforme demonstrado no Tomo II do nosso Direito Constitucional).
Com efeito, à luz do art. 92 da Constituição brasileira atual, o Poder Judiciário é composto por órgãos como o Supremo Tribunal Federal; o Conselho Nacional de Justiça; o Superior Tribunal de Justiça; o Tribunal Superior do Trabalho; os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; os Tribunais e Juízes do Trabalho; os Tribunais e Juízes Eleitorais; os Tribunais e Juízes Militares; e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.[1]
Dando ensejo à autonomia supracitada, conforme o art. 96 da Carta Magna de 1988, é competência privativa dos tribunais eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva; prover os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição; propor a criação de novas varas judiciárias; prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei; e conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados.
Fazendo uso da competência legislativa acima mencionada, o Supremo Tribunal Federal (STF) possui seu regimento interno.
Referida norma de nossa Suprema Corte, com fulcro em seu art. 13, inciso XIX e art. 363, foi complementada pela Resolução n° 642, expedida pelo presidente Dias Toffoli em 14 de julho de 2019, a qual versa sobre o julgamento de processos em lista nas sessões presenciais e virtuais do STF.[2]
Dentre suas previsões, no tocante às sessões virtuais, a Resolução em questão consigna que:
Art. 2º As sessões virtuais serão realizadas semanalmente e terão início às sextas-feiras, respeitado o prazo de 5 (cinco) dias úteis exigido no art. 935 do Código de Processo Civil entre a data da publicação da pauta no DJe, com a divulgação das listas no sítio eletrônico do Tribunal, e o início do julgamento. § 1º O relator inserirá ementa, relatório e voto no ambiente virtual; iniciado o julgamento, os demais ministros terão até 5 (cinco) dias úteis para se manifestar. § 2º A conclusão dos votos registrados pelos ministros será disponibilizada automaticamente, na forma de resumo de julgamento, no sítio eletrônico do STF. § 3º Considerar-se-á que acompanhou o relator o ministro que não se pronunciar no prazo previsto no § 1º. § 4º A ementa, o relatório e voto somente serão tornados públicos com a publicação do acórdão do julgamento. § 5º O início da sessão de julgamento definirá a composição do Plenário e das Turmas. § 6º Os votos serão computados na ordem cronológica das manifestações. (BRASIL, 2019, p. s.n.)
Ressalte-se, apesar de o Poder Judiciário e, correlamente, o STF, possuirem autonomia, e, esse último, no sentido de criar seu próprio regimento bem como complementá-lo, essas possibilidades deverão se efetivar de acordo com a Constituição Federal.
Por essas razões, neste trabalho visa-se estabelecer análises sobre o que consta no § 3º do art. 2º da Resolução do Pretório Excelso ora descrita, já que a consideração de acompanhamento do relator por parte daquele ministro que não se pronunciar no prazo de 5 (cinco) dias úteis gera inconstitucionalidades diversas.
Para comprovar nossos anseios faremos uma pesquisa adotando métodos descritivos, analíticos e reflexivos numa abordagem doutrinária e legislativa sobre a matéria.
Para apresentar nossas ideias, enfrentaremos, primeiramente, as construções do constitucionalista Lenio Luiz Streck promovidas no texto É inconstitucional abstenção de ministro contar a favor do relator.
Posteriormente, apresentaremos algumas considerações sobre o Estado Democrátido de Direito.
A título de considerações finais, procuraremos demonstrar que a norma objeto deste trabalho está em vigor ao arrepio da Constituição Federal de 1988.
2 AS ANÁLISES DE LENIO LUIZ STRECK SOBRE O TEMA
O cenário jurídico atual, com grande frequência, tem se mostrado adepto às inconstitucionalidades.
Essa anomalia toma frente em não somente diversas leis, mas também decisões judiciais contemporâneas.
Com imenso destaque, inclusive na mídia digital, o Supremo Tribunal Federal tem aparecido confrontando/afrontando a Constituição Federal de 1988, fato esse causador severos prejuízos ao ordenamento jurídico pátrio.
Atrelando seu pensamento ao instituto objeto deste trabalho Lenio Luiz Streck (2020) aludiu que a questão é por demais simplória no sentido de se bem entendê-la.
Com sua sagacidade de sempre, Lenio (2020) questiona, para tal, o que passaria pela cabeça de um jurisdicionado brasileiro se dado pedido ao mesmo estivesse sujeito à regra supramencionada.
Vejamos as palavras de Streck (2020, p. 1):
Para entendermos facilmente o imbróglio: O que um cidadão pensaria se, em um pedido seu envolvendo, por exemplo, a liberdade, apenas 2, 3 ou 4, da composição de 5 ministros, votassem no plenário virtual e que os votos não proferidos contassem como se fossem concordes com o relator? Estranho, não? Levado o raciocínio ao extremo, com um voto — o do próprio relator — o julgamento se encerra, desde que os outros 4 ministros não se manifestem. Pode-se dizer que isso jamais acontecerá. Mas pode acontecer que o resultado seja 2x2 ou até mesmo 2 votos (o do relator e mais) x 1 (contra o relator). Os 2 ministros faltantes contam a favor do relator.
E prossegue:
Vejamos um caso concreto. Na ação penal 996, um réu condenado na "lava jato", ex-deputado federal, requereu concessão de prisão domiciliar por questões humanitárias e por ser grupo de risco de Covid-19. O resultado do plenário virtual foi 2x2 (segunda-turma), com abstenção de voto da Ministra Cármen Lúcia. O empate deveria dar vitória ao requerente, conforme já se sabe desde o julgamento de Orestes, na peça As Eumênidas, de Esquilo (Trilogia Oresteia). Só que, conforme a regra do art. 2º, § 3º, da Resolução 642/2019, o requerente perdeu, porque a abstenção de Cármen contou a favor do voto do relator Fachin, quem votou contra o pedido. (STRECK, 2020, p. 1).
O próprio Lenio Streck (2020) ressaltou que atento ao fato, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) remeteu ofício ao STF a fim de requerer a alteração da regra ensejadora da problemática em tela.
Segundo Streck (2020), a OAB argumentou que em se tratando de plenário físico a situação não seria a mesma.
Ou seja, ao contrário, nas sessões presenciais, há a exigência de manifestação expressa dos julgadores para o cômputo dos votos. Ademais, na excepcionalidade de não se manifestarem, o rito impõe que a ausência esteja expressa na ementa do julgado, como não raro se vê (STRECK, 2020).
Nesse segmento, afirma Lenio Luiz Streck (2020, p. s.n.) que a OAB consignou:
[...] em situação semelhante, o STF regulamentou as abstenções virtuais de maneira a não computar a ausência de manifestação para fins de não conhecimento de recurso extraordinário por ausência de repercussão geral. Com efeito, a Emenda Regimental n. 31, de 2009, que determina a votação em meio eletrônico para acolhimento ou rejeição de repercussão geral, preceitua que, não atingido o número necessário para recusar o recurso, considerar-se-á existente a repercussão geral. Com isso, a abstenção não se dá em prejuízo dos jurisdicionados.[3]
Com essas considerações, Lenio Luiz Streck faz algumas advertências.
A primeira diz respeito a indagação no sentido de que não fosse pela exigência constitucional de fundamentação de todos os julgamentos e votos - art. 93, IX, da Constituição Federal -, tem-se ferida a própria isonomia no âmbito interno da Suprema Corte, com tratamentos desiguais e situações de abstenções e ausências de ministros em julgamentos virtuais (STRECK, 2020).
Vale lembrar, primeiramente, segundo o dispositivo constitucional[4] apontado, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
Como consignam Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2010, p. 290):
A exigência da motivação das decisões judiciais tem dupla função. Primeiramente, fala-se numa função endoprocessual, segundo a qual a fundamentação permite, que as partes, conhecendo as razões que formaram o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão. Fala-se ainda numa função exoprocessual ou extraprocessual, pela qual a fundamentação viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo o nome a sentença é pronunciada. Não se pode esquecer que o magistrado exerce parcela de poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, ao povo.
Obviamente, face à desnecessidade de maiores esclarecimentos neste prisma, a regra aqui questionada viola as funções da norma constitucional em apreço.
E o direito fundamental individual à igualdade previsto no caput do art. 5º da Constituição da República?[5]
Alude Bernardo Gonçalves Fernandes (2017), no pensamento da maioria da doutrina constitucionalista, falar em igualdade atrela-se à afirmação da necessidade de tratar os iguais de maneira igual, e os desiguais na medida de sua desigualdade. Ou seja, tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.
E ainda lembra Bernardo Gonçalves Fernandes (2017, p. 462-463):
Uma outra perspectiva (ainda que fraca) de vislumbrar a igualdade é geralmente desenvolvida no significado das expressões "igualdade na lei" e "igualdade perante a lei'113-4. Enquanto a primeira seria direcionada ao legislador, a segunda seria dirigida aos aplicadores do direito. É clássica a posição exarada pelo Ministro Celso de Mello, que em interessante síntese, explicitou que: "(...) o princípio da sonomia - cuja observância vincula todas as manifestações do Poder Público - deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: a) o da igualdade na lei e b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata - constitui exigência destinada ao legislador, que, no processo de formação do ato legislativo, nele não poderá incluir fatores de discriminação responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. (...) A igualdade perante a lei, de outro lado, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador, em qualquer das dimensões referidas, imporá, ao ato estatal por ele elaborado e produzido, a eiva de inconstitucionalidade”.
Nesse passo, o próprio Pretório Excelso, no seio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.424 Distrito Federal, consignou algumas considerações a serem demarcadas quando da convivência entre homens e mulheres.
Vejamos os apontadamentos feitos:
No tocante à violência doméstica, há de considerar-se a necessidade da intervenção estatal. (...) No caso presente, não bastasse a situação de notória desigualdade considerada a mulher, aspecto suficiente a legitimar o necessário tratamento normativo desigual, tem-se como base para assim se proceder a dignidade da pessoa humana – art. 1º, III –, o direito fundamental de igualdade – art. 5º, I – e a previsão pedagógica segundo a qual a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais – art. 5º, XLI. A legislação ordinária protetiva está em fina sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, no que revela a exigência de os Estados adotarem medidas especiais destinadas a acelerar o processo de construção de um ambiente onde haja real igualdade entre os gêneros. Há também de se ressaltar a harmonia dos preceitos com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – a Convenção de Belém do Pará –, no que mostra ser a violência contra a mulher uma ofensa aos direitos humanos e a consequência de relações de poder historicamente desiguais entre os sexos. (...) Procede às inteiras o pedido formulado pelo PGR, buscando-se o empréstimo de concretude maior à CF. Deve-se dar interpretação conforme à Carta da República aos arts. 12, I; 16; e 41 da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – no sentido de não se aplicar a Lei 9.099/1995 aos crimes glosados pela lei ora discutida, assentando-se que, em se tratando de lesões corporais, mesmo que consideradas de natureza leve, praticadas contra a mulher em âmbito doméstico, atua-se mediante ação penal pública incondicionada. (...) Representa a Lei Maria da Penha elevada expressão da busca das mulheres brasileiras por igual consideração e respeito. Protege a dignidade da mulher, nos múltiplos aspectos, não somente como um atributo inato, mas como fruto da construção realmente livre da própria personalidade. Contribui com passos largos no contínuo caminhar destinado a assegurar condições mínimas para o amplo desenvolvimento da identidade do gênero feminino.[6]
Não há dúvidas, por outro lado, a norma do STF atacada neste manuscrito ofende o direito fundamental mencionado por tratar desigualmente iguais.
Para fechar suas reflexões Lenio Luiz Streck (2020) indaga, em o STF revogando o aludido dispositivo, o que acontecerá com os julgamentos feitos até hoje nesses moldes e que acabaram traduzindo prejuízo ao requerente?
Imaginando-se além, e se essa disposição normativa, veiculada no forma de resolução, estiver reproduzida em outros tribunais, será que eventual alteração também os atingiria? (STRECK, 2020).
E assim Lenio Streck (2020, p. 1) complementa seus raciocínios:
Parece um tanto óbvio que, em se tratando de um julgamento, somente se possa computar como voto efetivo aquele que tenha sido proferido. Não se pode concordar com "voto por omissão". Uma coisa é uma ausência contar como "voto omisso", por exemplo, se existir o quórum mínimo para um julgamento. Nesse caso, os que faltaram, de fato, contam. Só que contam para que o julgamento não se realize. Bem diferente do caso da Resolução aqui comentada. O voto não votado conta a favor do relator. Se o relator votou contra o pedido da parte, esta perde sem jogar. Como todos sabem, o primeiro grande julgamento da história ocorreu na mitologia grega. Orestes matou a mãe. Seria trucidado pelas Eríneas, as deusas do ódio (que hoje estão todas nas redes sociais), porque a regra era a vingança. Orestes conseguiu um julgamento. Palas Athena, a juíza, institui o tribunal (vale a pena ler a sua conclamação aos jurados). O resultado final foi um empate. O primeiro in dubio pro reo da história da humanidade. Lá o empate físico contou a favor do réu. Tenho a certeza que aqui também será assim.
Conectando-se à ideia, o saudoso Luiz Flávio Gomes (2010) já havia ressaltado, que também conhecido como princípio do favor rei, o princípio do in dubio pro reo implica em que na dúvida interpreta-se em favor do acusado.
A ideia se justifica no fato de que a garantia da liberdade deve prevalecer sobre a pretensão punitiva do Estado (GOMES, 2010).
É bem verdade, conforme Renato Brasileiro (2014, p. 51):
[...] o in dubio pro reo não é, portanto, uma simples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois o imputado não tem a obrigação de provar que não praticou o delito. Antes, cabe à parte acusadora (Ministério Público ou querelante) afastar a presunção de não culpabilidade que recai sobre o imputado, provando além de uma dúvida razoável que o acusado praticou a conduta delituosa cuja prática lhe é atribuída.[7]
Com efeito, a norma para julgamento virtual do STF investigada nos leva a questionar, uma vez mais, o que se esperar de um Estado Democrático de Direito.
Recordemo-nos, o mesmo encontra-se posicionado como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, no ventre do título inaugural da Carta da República de 1988.
3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado Democrático de Direito encontra-se posicionado no caput do art. 1º da Carta Magna contemporânea.[8]
Conforme Pedro Lenza (2020, p. 1019-1020):
A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. A previsão desse regime jurídico é reforçada pelo princípio democrático que marcou o texto de 1988 e pela cláusula contida no parágrafo único do art. 1.º, ao dispor que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Estamos diante da democracia semidireta ou participativa, um “sistema híbrido”, uma democracia representativa, com peculiaridades e atributos da democracia direta. Pode-se falar, então, em participação popular no poder por intermédio de um processo, no caso, o exercício da soberania que se instrumentaliza por meio do plebiscito, referendo, iniciativa popular, bem como outras formas, como a ação popular.
Para José Afonso da Silva (2005), o Estado Democrático de Direio reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito.
Mas essa reunião não decorre de uma agregação simplória de tais elementos. Outrossim, no sentido de revelar um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo (SILVA, 2005).
Segundo Marcelo Novelino (2015, p. 286-287):
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, na tentativa de consolidar as conquistas e suprir as lacunas das experiências anteriores, surge um novo modelo de Estado que tem como notas distintivas a introdução de novos mecanismos de soberania popular; a garantia jurisdicional da supremacia da Constituição, a busca pela efetividade dos direitos fundamentais e ampliação do conceito de democracia. As constituições contemporâneas "representam o intento de recompor a grande fissura entre democracia e constitucionalismo", por meio de uma fórmula que promova um justo equilíbrio entre o princípio democrático e a força normativa da constituição. Na busca pela conexão entre a democracia e o Estado de direito, o princípio da soberania popular se apresenta como uma das vigas mestras deste novo modelo, impondo uma organização e um exercício democráticos do Poder (ordem de domínio legitimada pelo povo). Além da ampliação dos mecanismos tradicionais de democracia representativa, com a universalização do sufrágio para categorias antes excluídas do processo participativo (como mulheres e analfabetos...), são consagrados instrumentos de participação direta do cidadão na vida política do Estado, tais como plebiscito, referendo e iniciativa popular.4 A tensão entre a nova configuração do constitucionalismo e o conceito meramente formal de democracia, tradicionalmente associado à premissa majoritária, promove o desenvolvimento de uma dimensão substancial da democracia, a fim de assegurar que os direitos fundamentais sejam efetivamente usufruídos por todos, inclusive pelas minorias perante a vontade popular majoritária.
Já Hugo Garcez Duarte (2019), nesse diapasão, sustenta que o Estado Democrático de Direito, na linha de Peter Härbele, agrega um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo este que se mostra muitas vezes difuso em que questões coletivas e individuais se encontram em constante tensão.
Com efeito, que a Carta Constitucional contemporânea consagrou um regime jurídico-político-estatal-governamental de convivência social que pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados liberal e social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, filosóficas, econômicas e culturais, entre outras, oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo (DUARTE, 2019)
Segundo Hugo Garcez Duarte (2019, p. 84-85):
Isso porque o Estado Democrático de Direito sucedeu os dois regimes anteriores, sem, entretanto, abandonar as suas conquistas, quando se tem como paradigmas os direitos normativamente reconhecidos e a busca por sua efetivação. Ora, sob certa perspectiva, o Estado liberal é marcado por uma revolução cujo resultado tem como lema direitos humanos fundamentais individuais e políticos como vida, liberdade, igualdade, propriedade, votar e ser votado (dentro de certos requisitos), entre outros, enquanto as revoluções provindas do Es tado Social tiveram como “pano de fundo” a conquista normativa de direitos fundamentais sociais como, por exemplo, trabalho, saúde e educação, entre outros, além dos direitos econômicos.
E conclui:
O Estado Democrático de Direito possibilita, logo, além da busca pela consecução dos direitos ora descritos, maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar, de buscar a realização, desde que legítimo, daquilo que desenvolva plenamente suas capacidades, enquanto pessoa dotada de pReferências próprias e, imersa, por outro lado, em um ambiente coletivo.13 Não se pode abandonar, nesse ínterim, inclusive sob o manto da Carta Magna de 1988, a concepção de que “[...] a história e a cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, da especificidade das identidades individuais e coletivas, bem como da grandeza do desafio representado pelo pluralismo epistêmico”. [...].[9] (DUARTE, 2019, p. 85).
Atrelando esses dizeres ao tema objeto deste trabalho de curso, vale, uma vez mais, citarmos o que Lenio Luiz Streck supramencionou.
Ora, conforme Lenio Streck (2020), o que um cidadão - pessou humana detentora de direitos e obrigações - pensaria se, em um pedido seu envolvendo, por exemplo, a liberdade, apenas 2, 3 ou 4, da composição de 5 ministros, votassem no plenário virtual e que os votos não proferidos contassem como se fossem concordes com o relator?
Não há dúvidas, é, no mínimo:
Estranho, não? Levado o raciocínio ao extremo, com um voto — o do próprio relator — o julgamento se encerra, desde que os outros 4 ministros não se manifestem. Pode-se dizer que isso jamais acontecerá. Mas pode acontecer que o resultado seja 2x2 ou até mesmo 2 votos (o do relator e mais) x 1 (contra o relator). Os 2 ministros faltantes contam a favor do relator. (STRECK, 2020, p. 1).
Franca e estarrecidamente, note-se, essa norma do STF não retrata o Estado Democrático de Direito que queremos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vale lembrar, o Estado é composto de três ou, inclusive, em nossa visão, quatro Poderes, que estão dispostos na Carta Magma de 1988 a partir de uma leitura sistemática.
E referidos Poderes, são independentes ou autônomos entre si. Portanto, podem e devem exercer funções sem ofender o Texto Magno.
A nossa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é conhecida como constituição cidadã, pois repleta de direitos e garantias individuais e coletivas relacionadas à cidadania dos indivíduos pela mesma abrigados.
Apesar disso, como mencionado anteriormente, não são raras as situações de inconstitucionalidades por atos proveninetes dos Poderes do nosso Estado, inclusive, do Poder Judiciário, como é o caso da norma aqui exposta e investigada.
Por outro lado, não é possível que se coloque essa situação como algo normal. É importantíssimo verificar a anomalia hoje existente e por fim àquela regra ou editá-la de modo a constitucionalizá-la.
Temos que ressaltar que o Poder Judiciário é capacitado para regulamentar suas próprias regras internas, todavia, referidas normas jamais deverão confrontar o Texto Maior.
O § 3° do art. 2° da resolução da Suprema Corte brasileira é, em nossa visão, demasiadamente inconstitucional, tratando-se, portanto, de uma inconstitucionalidade indubitável.
Essa norma fere o ordenamento jurídico brasileiro em diversos aspectos, e em todos os âmbitos do Direito, desde os casos mais brandos aos mais graves referentes ao Direito penal, vez que em todos os ramos jurídicos teremos recursos aos tribunais colegiados.
Essa ferida ocasionada pelas inconstitucionalidades está sendo diariamente aberta por novas decisões ou textos normativos, que semeiam a incompatibilidade com a Constituição de 1988.
Infelizmente, esse fato vem se tornando comum no ordenamento jurídico brasileiro, o que não deveria ser aceito, sendo ainda tempo de reverter esta situação totalmente diferente do que o legislador estabeleceu.
Aliás, não é de hoje, o STF tem desrespeitado flagrantemente a Constituição Federal. Como exemplo, podemos citar as famosas prisões em segunda instância, que ganharam os holofotes da mídia nos últimos anos.
Essas e outras decisões trazem prejuízos aos envolvidos no processo em que figuram, seja o réu que pode ter sua condenação decretada de modo errôneo ou a vítima que pode perder o direito de ver o seu ofensor sendo condenado.
O que podemos esperar de um ordenamento jurídico onde as normas não mais são respeitadas, inclusive a maior delas, que possui o status de suprema, condicionada a forma e a matéria de todas as outras?
O que podemos esperar de um órgão que, em tese, deveria proteger referida norma, o qual está, por outro lado, violando-a por força da convicção pessoal de seus integrantes?
Essas perguntas nos deixam, por vezes, desesperançosos, eis parecer que o ordenamento jurídico está saindo dos trilhos e, de certo modo, não há muitos envolvidos capazes de enfrentar esse problema que vem se tornando, a cada dia, maior.
Lenio Luiz Streck, como vimos, em seu texto, indaga o que os envolvidos irão pensar quando suas causas estiverem sendo julgadas por apenas um ou dois juízes. Parece estranho, mas trata-se de uma situação real.
Essa norma é o reflexo de um ordenamento jurídico rompido e corrompido, que não caminha no rumo correto (da legalidade) há algum tempo. Essa norma é apenas uma das inúmeras que podem causar prejuízos aos jurisdicionados.
A evolução da internet deveria trazer uma mudança significativamente boa para o ordenamento jurídico brasileiro, facilitando a solução de conflitos, tornando o Judiciário mais eficaz e menos burocrático.
Entretanto, mesmo com o advento dos julgamentos online ou virtuais, ainda temos regras capazes de prejudicar os envolvidos, o que jamais deveria acontecer, principalmente por violar nossa Constituição.
As sessões virtuais do STF deveriam ocorrer, na medida do possível, o mais semelhante às sessões físicas, de modo a se respeitar os jurisdicionados que ali estão.
Frise-se, já não é nada prazeroso para os litigantes estar ali, imagine em um ambiente onde o princípio da igualdade é ferido repetidamente, podendo causar inúmeros prejuízos aos envolvidos naquele processo.
A igualdade aqui mencionada é aquela em que o indivíduo, que fora julgado na forma virtual, tenha as mesmas garantias daquele que fora julgado da maneira tradicional.
Além disso, não só o princípio da igualdade está sendo ofendido por essa norma, como o indubio pro reu, que é um princípio muitíssimo caro, principalmente, ao Direito penal.
Este, pode-se dizer, é o maior garantidor da liberdade do réu, vez que ele desempata a favor do réu. Sem esse princípio poderíamos ter diversos inocentes sendo condenados, o que jamais iríamos desejar.
Enfim, por todo exposto, esse não é o ordenamento jurídico que queremos, tampouco o Estado Democrático que desejamos.
REFERÊNCIAS
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