A Cultura dos Senhores Advogados
I – Desencantados com o nível cultural dos que abraçam uma das mais nobres das profissões, em cujo número se conta a Advocacia([1]), críticos veementes (e quase sempre abalizados) têm vindo a público para verberá-lo. De férula em punho, arrolam as causas que, a seus avisos, responderiam pelo despreparo profissional: a eversão dos primeiros valores do homem, num século que sacrifica precipuamente ao materialismo; a angústia de tempo, que lhe não deixa vagar nem ócio para as coisas do espírito; a notória degradação do currículo das escolas; a deficiência do ensino universitário, etc. Fatores são estes que, deveras, nenhum estudioso remete à sombra quando considera nos motivos que autorizam a opinião, muita vez desfavorável, da ciência e ilustração dos bacharéis. E, pois que se diagnosticou a “mazela” (que outro nome não merece a carência dos cabedais científicos), será força indicar do mesmo passo os meios de sua cura e erradicação. Este, verdadeiramente, é o estilo de obrar do crítico sensato e benfazejo, o teor de proceder do que traz consigo a centelha que outrora inflamava o peito aos valorosos educadores (não só críticos), os quais a Humanidade hoje reverencia com chamar-lhes, muito à própria e gravemente, apóstolos; que o foram: apóstolos da Civilização.
II – Longe deste augusto padrão, no entanto, parece ficou a censura que, em jornal de grande circulação no País([2]), certo juiz fez aos advogados que atuam nos pretórios da Justiça Criminal. (Pedem razões de vária ordem lhe conservemos o nome debaixo de espesso véu: à uma, porque não está excluída a hipótese de lhe haver recolhido mal as palavras o jornalista que as publicou; à outra, porque, ainda que as tivesse dito, bem pode ser que, havendo-as lido depois, em letras redondas, já lhes não afiançasse, no recôndito de sua consciência, o modo como as tirou à luz do dia: à derradeira, porque o conceito em que, desde a mais alta antiguidade, foram havidos os críticos([3]) — tomado o vocábulo à má parte —, não quadra nunca à pessoa do juiz, cujo timbre mais precioso ninguém ignora foi sempre a serenidade).
Vindo agora ao ponto. O que disse o magistrado, a propósito dos problemas que obstam à boa administração da justiça, foi que “o nível dos advogados criminais é péssimo”. Dissera-o com assombro da gente do foro, a qual, mais que um rude epigrama, interpretou essa desprimorosa referência por injúria formal contra a verdade e injustiça manifesta aos criminalistas. Estes, como era forçoso receberam-na com profunda consternação; mas, habituados já à poeira de seu caminho — afinal, não houve até quem lhes quisesse cortar a língua?!([4]) —, deram logo de mão às acerbas invectivas. Contudo, não lhes sofreu o ânimo que antes não retorquissem: a) que não era de crítico assisado generalizar afirmações pejorativas; b) que, houvesse alguém de notar defeitos em outrem, que o fizesse com a atenção devida à sua pública reputação; c) que, de necessidade, fora injusta a crítica só empenhada em esquadrinhar deficiências, sem exaltar virtudes.
III – Ao criticar os indivíduos de uma classe, é de mau exemplo arrojar-se alguém a ofendê-la em sua totalidade. Concedendo-se que a censura procedesse em relação a uns poucos, decerto não houvera de prevalecer quanto à maioria. E tratar (na verdade, maltratar) igualmente os desiguais passa por gênero grande de injustiça. Repugna também à consciência crítica bem formada isso de, na apreciação de eventuais defeitos que se achem num indivíduo, calar muito de estudo suas qualidades. Ainda: para ser equânime e reto, não deverá o crítico subtrair ao aplauso dos sujeitos honestos os fatos e as notícias relativos à instituição que pretende censurar. É que, da mesma sorte que os homens, também elas nunca deixarão de ser aquilo que foram com suas misérias e grandezas. Dito da Advocacia Criminal, isto importaria a evocação de páginas imortais de abnegação e sacrifícios. Interrogue a História aquele que ainda não conhece as excelências da “ínclita profissão”, e ela haverá de responder-lhe com a lição do imenso Malesherbes, um dos três defensores de Luís XVI, de França. Herói e mártir da profissão, teve o mesmo fim que o seu real constituinte: “pagou com a vida a honra de ter defendido seu rei”([5]).
Por fim, está no modo de fazê-la a alma e o egrégio merecimento da crítica; há de conformar-se com os princípios da moral social e refletir os sentimentos próprios do coração probo e virtuoso([6]).
IV – Alguma insuficiência, que a crítica implacável se afadigue em surpreender nos advogados criminalistas([7]), não será outra coisa que o comum tributo que os mortais se obrigam a recolher, à conta de sua própria condição, que nada quer perfeito e acabado.
E, se arguirem de suspeita esta defesa, porque deduzida por praticante do ofício, a argumentar “pro domo sua”, então seja permitido que falem pelos criminalistas dois titãs do Direito, que não foram só exímios advogados, mas também juízes modelares: Eliézer Rosa e Alfredo Tranjan. Escreveu o primeiro, elegante e sabiamente: “Há no semblante austero dos grandes advogados criminais uma discreta sombra de amargura que atesta a convivência diuturna com a angústia alheia, que neles se imprime como a verônica inapagável da profissão. Eu lhes vi a muitos a cabeça aureolada pelo forte esplendor da glória e do saber. Eu vi-os passar soberbos na humildade dos sábios e dos bons” (Eliézer Rosa, Romeiro Neto, O Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984, p. 21). Alfredo Tranjan, citando Viviani, discursou: “O que faz a grandeza de nossa profissão é que, quando abraçamos uma causa justa, nós a defendemos contra a ignorância da multidão, contra a paixão do povo, contra a tirania dos poderosos. O advogado é o primeiro homem acima de todos, em volta de nós, capaz de fazer ouvir, mesmo acima dos clamores da multidão, as palavras de justiça e verdade” (A Beca Surrada, 1994, p. 309).
Donde se mostra claro que aqueles mesmos que foram, segundo craveira mesquinha, indiscriminadamente apodados de péssimos, distinguem-se, no juízo de dois varões da primeira eminência, pelo “esplendor da glória e do saber” e pelo ideal de “justiça e verdade”.
Ao pio e avisado leitor já não fica difícil aquilatar de que lado desce a concha da balança!
Notas
([1]) À Advocacia chamou Voltaire “a mais bela das profissões humanas”. “Le plus bel état du monde” (apud Carvalho Neto, Advogados, 1946, p. 83). Louvor é este que sobe de ponto quando sabemos que seu autor “foi talvez a primeira cabeça, o mais fecundo gênio do século XVIII” (Ernesto Carneiro Ribeiro, Tréplica, 1923, p. 666).
([2]) Folha de S. Paulo, 27.9.95.
([3]) Vem aqui a pelo o instrutivo conto de Boccalini: “Tendo certo crítico famoso ajuntado todos os defeitos de um grande poeta, fez deles presente a Apolo. Este deus os recebeu graciosamente, e determinou recompensar o autor de um modo conveniente ao trabalho que tivera. Com este intento pôs-lhe presente um pouco de trigo por alimpar, e ordenou-lhe que separasse a palha, e a pusesse à parte. Começou o crítico a trabalhar com muita indústria e diligência; e depois de ter feito a separação, Apolo lhe deu a palha pelo seu trabalho” (apud Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1883, vol. X, p. 154).
([4]) Napoleão: “Quero que se possa cortar a língua ao advogado, se dela usar contra o governo” (apud Rui, Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 57).
([5]) Cf. Romeiro Neto, Fora do Júri, 1970; p. 98.
([6]) Sentenciou o erudito Cardeal Saraiva “não ser jamais decente que o homem bem nascido e bem educado note ou repreenda com expressões de desprezo, com ditérios picantes e com amargosa sátira qualquer gênero de defeito que observe nos seus semelhantes” (op. cit., p. 159).
([7]) Advogado criminalista — ensinou o reputado Prof. Napoleão Mendes de Almeida (a quem pedimos nos soltasse a dúvida) — é a designação correta daquele que professa a Advocacia Criminal. Eliézer Rosa, jurista de prol e escritor de exemplar vernaculidade, prefere a expressão advogado criminal. “Grammatici certant”!