1. PROBLEMATIZAÇÃO
Em Moçambique, o direito à propriedade foi desde a Constituição da República de 1975, inserida na ordem jurídica moçambicana. Com efeito, o artigo 12º desta Carta Magna preconizava o direito à propriedade pessoal. Nos textos legais seguintes (1990, 2004) sua abordagem e interpretação foi melhorada e ampliada. Assim, o nº 02 do artigo 82º da Constituição da República de Moçambique (CRM) de 2004, revista em 2018 é clara em relação à propriedade privada. Com base neste artigo garante-se a propriedade privada e protege-se em relação a sua apropriação indevida. Este direito é considerado um bem maior, ao ser enquadrada nos direitos e liberdades fundamentais. O artigo 56º da CRM reforça a sua importância ao prescrever que os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis,vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis. Nosso entendimento é de que a previsão constitucional deste direito, não só é para ajustar-se á legislação internacional sobre a matéria, mas, principalmente, impedir os abusos de poder que muitas vezes são perpetrados por alguns agentes desonestos do Estado, aos detentores de propriedade, desviando assim o próprio sentido da lei, que é de conferir a justiça. No entanto, não obstante, a estas garantias normativas, tem se reportado alguns conflitos, sobre a apropriação indevida da propriedade. Isto acontece porque de acordo com a nossa análise, há fraca divulgação das leis ordinárias que regulam sobre as matérias que envolvem a propriedade privada, pois a maioria da população moçambicana vive no meio rural, onde há pouca presença de meios de comunicação de massas e instituições de justiça. No que tange a Terra, como um recurso valioso e uma propriedade que garante a sobrevivência, para a maioria da população moçambicana, a Lei de Terras, Lei nº 19/97 de 01 de Outubro, embora seus preceitos sejam bem claros, no que diz respeito a aquisição (alínea a) e b) do artigo 12º), titulação (nº 3 do artigo 13º), a participação das comunidades na gestão dos seus recursos naturais e a obrigatoriedade da consulta comunitária antes da concessão de posse de terras aos novos ocupantes, previstos nestes artigos, estes preceitos normativos não são de domínio da maioria dessas comunidades. Em nosso entender, por causa do fraco domínio dessa legislação, as formas costumeiras de posse de terra, previstas na alínea a) e b) do artigo 12º, nem sempre são respeitadas, principalmente quando se trata de novos concessionários, que a todo custo fazem consultas comunitárias forjadas, para conseguir o Direito e Uso de Aproveitamento de Terra (DUAT), um documento que por ser formal, desaloja as comunidades/ cidadãos, das suas terras, de forma injusta. Portanto as comunidades/cidadãos que possuem o direito natural de acesso à terra são algumas vezes excluídas nos processos de tomada de decisão sobre a posse, exploração assim como assentamentos. As instituições públicas, responsáveis para velar por este tipo de matérias, em prol da protecção das comunidades/cidadãos, em nosso entender apresentam fraquezas seja na divulgação das leis, regularização do direito à propriedade, como no acompanhamento dos processos que envolvem os conflitos de terra. Por outro lado, o facto do Estado moçambicano proclamar-se o proprietário da terra e demais recursos naturais. em nossa análise dificulta o usufruto pleno e seguro desses recursos pelas comunidades/ cidadãos e não garante a perdurância dos direitos adquiridos, visto que as comunidades/ cidadãos ficam reféns do próprio Estado, para obter ou explorar com segurança determinados recursos. As expropriações da terra e outros recursos a favor do Estado ou para utilidade pública, algumas vezes não apresentam motivos convincentes que justificam a retirada compulsiva de quem os explora de boa fé.
Para se chegar a esta conclusão o método seguido foi a análise do contexto histórico geral da positivação do direito de propriedade, a análise da Constituições Moçambicanas, de 1975, 1990 e 2004, assim como das leis ordinárias, como a Lei de Terra, o Código Civil, o Código Penal, entre outros documentos normativos.
Com este estudo pretende-se analisar a positivação do direito de propriedade material em Moçambique, tendo em conta a legislação internacional e regional sobre a matéria, seu enquadramento nas leis ordinárias e sua aplicação prática na vida dos cidadãos e indivíduos residentes em Moçambique.
2. O CONTEXTO HISTÓRICO GERAL DA POSITIVAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
O direito como um conjunto de leis ou preceitos que regulam as relações sociais, é segundo SCHONPENHAUER ( 2001.p.23-24) uma instituição humana que repousa no arbítrio humano.
Conforme nos ensina a BIBLIA (I Tm.1, 8-10) a lei é considerada boa, quando expressa a vontade da maioria e uma desvantagem, quando não é capaz de conferir a justiça. Assim, o direito de propriedade foi desde os tempos antigos considerado como um direito natural do homem ligado a aquilo que ele possui, suas posses, fruto do seu trabalho. Portanto o objeto do direito de propriedade, assenta-se nos bens materiais e imateriais, adquiridos ou a serem adquiridos de forma honesta pelo individuo (pessoa física) ou instituição (pessoa jurídica). Esta noção defendida primeiro, por povos primitivos foi sustentada, em seguida, pelas teorias filosóficas, que posteriormente contribuíram para o alicerce jurídico de sua definição e enquadramento, até a sua elevação como um direito humano fundamental e, constante no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, que preconiza o seguinte: “Toda pessoa tem direito à propriedade, ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”. Formulada desta forma, a interpretação do artigo gera, em nossa análise, controvérsias pelo facto de não especificar se a pessoa aqui citada deve se entender como física ou jurídica ou ambas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora tenha humanizado esse direito, em nossa análise não é clara em relação aos beneficiários reais desse direito (pessoas física ou jurídica) e não especifica o tipo de propriedade que é ou deve ser protegida, se é propriedade usada para fins de consumo ou produção, assim como as razões pelas quais a propriedade pode ser restringida (por exemplo, para regulamentação, tributação ou nacionalização de interesse público). Para além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, outros instrumentos internacionais, e regionais tais como: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966, e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos fazem apelo à proteção desse direito. Com efeito, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos garante o direito à propriedade, no geral, ao estipular no parágrafo 1 do artigo 1º o desenvolvimento econômico, social e cultural dos povos. O parágrafo 2 do mesmo artigo, estipula que todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos. Por sua vez, o nº 1 do artigo 11º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), preconiza de entre outros direitos, o direito à uma habitação condigna. O artigo 15º do mesmo instrumento reforça esse direito, principalmente, para os bens incorpóreos. Ao nível regional africano, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) protege o direito à propriedade de maneira bem clara. No artigo 14º a Carta estabelece que:
Todas as pessoas têm o direito de possuir propriedade. Este direito só pode ser restringido em beneficio da comunidade e de acordo com a lei; usurpada no interesse da necessidade pública ou no interesse geral da comunidade e de acordo com as disposições das leis apropriadas.
O artigo 13º e 21º da Carta também, em nossa análise faz apelo ao direito à propriedade coletiva, ao preconizar: “a igualdade de acesso aos serviços e “bens” públicos (artigo 13º); o direito de todas as pessoas dispor e usar das riquezas naturais existentes no solo e subsolo, em beneficio coletivo (artigo 21)”. Assim, o direito à propriedade que durante séculos era visto apenas sob ponto de vista econômico, com a sua inclusão nesses instrumentos jurídicos internacionais e regionais, deixou de ser um privilegio da minoria e passou a ser reconhecido como um direito fundamental indispensável ao homem independentemente da sua condição social, origem raça e nacionalidade. Portanto, onde quer que seja, o direito à propriedade passou a ser garantido ao homem, No entanto, o gozo do direito à propriedade foi desde os tempos antigos condicionada à compensação de utilidade pública como, por exemplo, o pagamento de impostos, uma vez que a propriedade como um bem, não deve apenas beneficiar ao proprietário, mas também garantir o seu usufruto aos outros através da sua justa exploração, como é o caso dos bens imóveis, móveis e incorpóreos. O detentor da riqueza deve cumprir a função social que essa propriedade desempenha, significa gerir o bem em sua posse, tendo em conta não apenas o seu rendimento individual, mas também o interesse da coletividade. Neste sentido, ao pagar imposto o proprietário de um determinado bem, contribui para a solução de outros problemas da sociedade.
Em termos de sua positivação, no geral, a noção da proteção jurídica da propriedade privada iniciou-se nas sociedades clássicas ou antigas.
CAXILE ; JÚNIOR (2015) caracterizam as sociedades antigas ou clássicas, como sendo as que correspondem ao período entre 4.000 a.C., até 476 d.C. De entre essas sociedades, destaca-se no extremo Oriente, a Pérsia (Irão) e Babilónia (Iraque) e na Europa antiga, Roma e Grécia.
No Medio Oriente, o Código de Hamurabi (1772-1750 a.C.) é considerado como uma das primeiras e mais completas leis escritas da época e impulsionadora dos direitos no geral e da propriedade privada, em particular. Os artigos 32º, 34º e 39º deste código, defendiam o direito à propriedade.
O Cilindro de Ciro (539-538 a.C.) é segundo os escritos bíblicos considerada como umas das leis mais antiga e que preceituava o direito à propriedade. Conforme a BIBLIA (ESDRAS.,1, 1-11) com a conquista do território babilónico pelo rei Ciro, positivou se pela primeira vez o direito. Ciro, para permitir que suas normas fossem conhecidas e cumpridas, por todos, mandou gravar num cilindro, mais conhecido por Cilindro de Ciro. De entre as normas gravadas nesse cilindro, constava o direito à habitação e à herança.
Segundo alguns autores, na Europa antiga, Roma é considerado o Estado pioneiro na positivação das leis no geral e da propriedade em particular. A noção de propriedade privada incluía não só a terra, mas também os escravos, numa sociedade predominantemente agrícola e de pastorícia.
PINHO e NASCIMENTO(1991, p.91-92) secundam que para as sociedades romanas, a propriedade era um bem individual e absoluto, pois significava, “jus utendi, ou seja, direito de usar, que significa o proprietário servir-se do seu bem e usá-lo de maneira que que lhe convier; jus fruendi, significa o direito de usufruir ou colher os frutos provindos desses bens; jus abutendi, significa a possibilidade que o proprietário tem de poder transferir ou alienar a sua propriedade à terceiros. Portanto há aqui três elementos que definem, de forma clara, o direito a propriedade, conforme o conceito romano.
Um outro elemento do direito à propriedade, citada por vários autores é o rei vindicatio, que significa a prerrogativa conferida ao proprietário para reivindicar desse direito contra as apropriações indevidas.
Muitos autores referem que nas sociedades romanas, os poderes conferidos ao chefe da família pater famílias (chefe de um pequeno Estado, constituído pelos seus membros da mesma família) e o direito de propriedade, davam a seu titular os poderes plenos de usar e desfazer-se da propriedade a seu belo prazer sob a protecção da lei costumeira vigente. Portanto o direito prevalecente nessa época, era o direito costumeiro Com o passar do tempo as leis costumeiras foram institucionalizadas, sendo a Lei de Doze Tábuas, Lex Duodecim Tabularum (451-449 a. C) a primeira lei escrita nessas sociedades. A Tábua VI desta Lei, preconizava “Ownership and Possession”, ou seja, o direito à propriedade e da posse. A lei deu maior ênfase ao direito privado, embora também preceituasse outros assuntos de natureza religiosa.
De acordo com COLEMAN_NORTON; BOURNE(1961) a Lei de Doze Tábuas é considerada a base de todo o tecido do direito romano. A partir dessa Lei, os romanos independentemente do seu nível social, passaram a conhecer os seus direitos e deveres e dos procedimentos legais para beneficiar desses direitos e cumprir com os deveres. Por isso, suas normas sao consideradas por alguns autores como tendo influenciado em grande medida na positivação do direito nos séculos seguintes, em outros países europeus.
Na Grécia, o filósofo ARISTÓTELES (1988)defendia que a propriedade era um bem privado mas de utilidade comum e, portanto, não devia apenas ficar na posse do seu dono mas servir também aos outros.
Na idade medieval que, de acordo com LEITE [199..?] corresponde entre os anos 476 a.C., até a queda do Império Romano do Ocidente, e 1453, queda do Império Bizantino, a positivação da propriedade, é atribuída á Inglaterra, através Carta Magna de 12157, escrita pelos Barões ingleses ao monarca da época, João sem Terra, obrigando-o a reconhecer os seus direitos. Os parágrafos 2, 3 e 52 deste instrumento jurídico preconizavam o direito à propriedade e à herança. Embora fosse um direito exclusivo para os detentores de poder político, económico e religioso, a Carta Magna de 1215 é considerada por vários autores como um dos primeiros marcos históricos da positivação do direito, em particular o direito à propriedade e à herança, no mundo medieval ocidental.
Foi, no entanto, na era moderna que, segundo LEITE [199..?], corresponde o período que inicia com a conquista de Constantinopla pelo Império Turco, em 1453, até as revoluções Inglesa, Americana e Francesa, entre 1628-1791, que o direito à propriedade ganhou mais peso, com a influência dos filósofos John Locke, Voltaire, Montesquieu, David Hume, Jean Jacques Rousseau, Emanuel Kant, entre outros, que defendiam nas suas teorias que a propriedade era um direito natural e que deve ser garantido ao homem. Defendido desta forma, credibiliza assim, a noção do direito romano clássico sobre a propriedade.
LOCKE (1963) nas suas teorias analisa a propriedade em duas perspectivas: num sentido o autor define a propriedade como sendo tudo aquilo que dignifica o homem, tais como: a vida, a liberdade, o próprio corpo do individuo. No sentido mais restrito defende a propriedade como estando relacionado com a posse dos bens móveis e imóveis. Portanto para Locke a propriedade é um direito natural do homem provindo do suor do seu trabalho, sendo este segundo ele, a chave para a obtenção da propriedade que, no entanto, deve ser protegido pela sociedade civil, que se une mediante um contrato civil para a legitimação daqueles que são instituídos (Estado) para dirigir essa sociedade.
MONTESQUIEU (1973) afirmava por sua vez, que a ausência da propriedade privada e de direito à herança era um aspeto de irracionalidade arguindo, por isso, a sua proteção, por meio do contrato social que devia ser garantida pela sociedade civil, que nos dias actuais ė o Estado.
ROUSSEAU (1973) postulava que no contrato social entre os homens, regulado pelo Estado o homem ganhava a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possuía e só podia perder de acordo com um titulo positivo.
As teorias defendidas por estes filósofos, impulsionaram com o passar do tempo os movimentos revolucionários que emergiram na Europa e na América e, em conjunto, estes movimentos criaram a base angular para a instituição do direito, em particular, de propriedade.
Na revolução Inglesa de 1628-1688, quatro importantes documentos, nomeadamente: a Petition of Rights de 1628 (Petição de direitos) a Bill of Rights de 1689 (Declaração de Direitos), a Revolução Puritana de 1649 e Gloriosa de 1688), desempenharam um grande papel no amadurecimento do conceito do direito à propriedade iniciada, pela Carta Magna de 1215, A petição de direitos de 16285, um documento escrito por membros da oposição inglesa, defendia nos parágrafos 3 e 4, de entre outros direitos e liberdades dos subtidos, a observância e o respeito pelo direito à propriedade, pela sua majestade o Rei Carlos I.
Para NORTH e BARRY(1989.p.817-819) as revoluções Puritana (1649) e principalmente a Gloriosa (1688), aumentaram a segurança dos direitos à propriedade.
HODSON(2016.p.2) observa, no entanto, que o argumento de North e Barry, não teve o mesmo consenso de vários historiadores, que consideram que as revoluções não trouxeram nenhuma legislação importante que tenha mudado os direitos à propriedade preconizados nas legislações anteriores mas, criaram um equilíbrio de poder entre o parlamento e a monarquia.
Na França, com a influência das teorias defendidas pelos filosofo Montesquieu e Rousseau, a propriedade passa a ser vista como um direito que deve beneficiar a todos.
CÉRAUD –LLORCA (1991) alude que, de 1789 ao Código Civil de 1804, a propriedade (a terra) passou a ser vista e legislada na França, como um bem igualitário, deixando assim de ser um privilegio da burguesia. A autora considera, no entanto, que a doutrina francesa sobre os direitos à propriedade, encontra-se alicerçada no direito romano, embora tenha havido bastantes avanços em termos de sua abordagem, interpretação e abrangência.
Nos Estados Unidos da América, a Constituição Americana, United States Bill of Rights, de 1790 9, incluía nas emendas IV e XIV, entre outros direitos, a propriedade como um direito inviolável. Há a salientar que os direitos à propriedade defendidos tanto no período medieval como moderno, beneficiavam á uma minoria e, portanto, não eram abrangentes para todos os homens, tendo em conta que havia muita estratificação de grupos sociais, alguns desses grupos considerados “objectos” como era o caso dos escravos.
Com as revoluções socialistas: mexicana, (1910-1917); Russa (1917) e alemã (1919), o direito à propriedade passa a ser considerado um direito econômico fundamental, indispensável e inalienável, para todos. Esta nova abordagem sobre os direitos à propriedade, passa a abranger todas as classes sociais, sem descriminação influenciando assim, na elevação deste direito à um direito universal pela sua inclusão no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
3. O DIREITO DE PROPRIEDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
Segundo Moniz (2020) Moçambique tornou-se um Estado em 1975, com a aprovação do primeiro texto jurídico legal, a Constituição da República Popular de Moçambique, configurando –o assim como sua primeira República. Outros textos legais foram, no entanto, aprovados com o decorrer do tempo, nomeadamente, em 1990 e em 2004, respetivamente. É, no contexto destes três textos legais, que será analisada a positivação do direito à propriedade e sua evolução, em Moçambique.
3.1. Período de 1975-1990 (Primeira República)
A Constituição da República Popular de Moçambique de 1975, alinha-se pelo principio socialista em relação aos recursos naturais, considerados como um bem económico durável, ao preceituar no artigo 8º que a terra e os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas territoriais e na plataforma continental de Moçambique são propriedade do Estado. Neste sentido a terra como uma propriedade do Estado, os cidadãos beneficiam do seu usufruto, que pode ser transmissível por direito de herança. O artigo 12º preconiza o direito à propriedade pessoal. Ao se garantir este direito, o Estado cumpriu assim o seu papel, de observância do direito internacional, estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional dos Direitos Civis, Económicos e Sociais e, nos documentos regionais, a Carta da Organização da Unidade Africana, sobre Direitos Humanos e dos Povos. Para tornar claro esta observância dos preceitos internacionais, a Constituição da República Popular de Moçambique estabeleceu no parágrafo 02 do artigo 23º, que a aceita, observa e aplica os princípios da Carta da Organização das Nações Unidas e da organização da União Africana, numa alusão clara da integração dos direitos à propriedade na Constituição, por considerar como um bem maior e que deve ser garantido à todos. Portanto não há margens de dúvidas sobre a garantia constitucional do direito à propriedade privada desde a Constituição da República Popular de Moçambique de 1975. No entanto este direito na prática não era observdo, pois o individuo enquanto sujeito singular, não tinha muita relevância durante a vigência desta Constituição, uma vez que o acento predominante na época, era a coletividade, tendo em conta o regime socialista que se havia adoptado. Portanto, a propriedade era considerada um bem de todos os moçambicanos e inviduos residentes em Mocambique.
3.2. Período de 1990-2004 (Segunda República)
Na Constituição da República de 1990, o direito à propriedade veio a ser melhorado, ampliado a sua abordagem e interpretação, ao preceituar-se no artigo 86º, nos seguintes termos:
1. O Estado reconhece e garante o direito de propriedade;
2. A Expropriação só pode ter lugar por causa da necessidade. da utilidade ou interesse públicos, definidos nos termos da lei e dá lugar a justa indemnização.
A Carta Magna de 1990, não só melhorou a redacçāo do artigo 12º do texto constitucional anterior, como também incluiu a indemnização em caso de expropriação pelo Estado e que deve ser devidamente fundamentada. Ao explicar no paragrafo 2, as condições em que a expropriação pode ser feita, cumpre assim o preceituado no nº 2 do paragrafo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que preconiza que ninguém deve ser arbitrariamente privado da sua propriedade e do artigo 14º da Carta Africana dos Direitos humanos e dos Povos de 1981, que não só estabelece o direito à propriedade como também diz que a sua restrição só pode ser admissível, por motivos de necessidade colectiva e de acordo com a lei.
3.3. Período de 2004 até aos dias atuais (Terceira República)
Na Constituição da República de 2004, revista em 2018 e, em vigor, o direito à propriedade é estatuído no artigo 82º, mantendo-se a mesma redacçāo do texto constitucional anterior. Nas leis ordinárias este direito encontra-se normatizado nos seguintes instrumentos:
Lei de Terras, Lei nº 19/97 de 01 de Outubro, estabelece no artigo 10º o direito de uso e aproveitamento da terra.
O Código Civil Moçambicano (2004), enquadra o direito à propriedade no livro III referente ao Direito das Coisas. O Titulo II deste livro dedica-se ao direito à propriedade, sendo na categoria da propriedade em geral constante do capítulo I que se preconiza nos artigos 1302º a 1315º
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O Código Penal, Lei nº35 (2014), de 31 de dezembro previa a punição por usurpação da propriedade alheia, no artigo 293º. Este Código veio ser revogado com a Lei nº 24/2019, de 24 de Dezembro, Lei da Revisão do Código Penal. O Titulo II, que se refere aos crimes contra o património, dedica no capitulo I os crimes contra a propriedade, especificando- os nos artigos 270º a 288º.
Assim,em termos de legislação interna, o direito à propriedade para além de constar nos princípios gerais constitucionais, foi robustecida nas leis ordinárias, cumprindo desta forma um dos requisitos fundamentais de um Estado Democrático que é a observância dos direitos humanos, visto que o direito à propriedade é um direito humano universal. Há a salientar, no entanto, que apesar do direito à propriedade estar bem clarificado no ordenamento jurídico moçambicano, muitos dos cidadãos beneficiam da posse e não do direito, ou seja, a maioria da população moçambicana, não tem o registo legal (direito) daquilo que possuem (posse). Nao basta enquadrar o direito costumeiro no ordenamento jurídico moçambicano, em particular para as matérias ligadas a propriedade (bens imóveis), incentivar os cidadãos a regularizar esses bens será sempre uma forma segura de prevenir conflitos e garantir-lhes o gozo pleno desse direito.