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A MORA DO SEGURADO E O DEVER DE INFORMAÇÃO: NOVA PERSPECTIVA PARA A RESOLUÇÃO CONTRATUAL POR FALTA DE PAGAMENTO DE PRÊMIO

Agenda 25/02/2021 às 12:28

Artigo em que se propõe uma nova visão sobre o entendimento do Poder Judiciário sobre a questão da notificação prévia ao segurado inadimplente (prêmio) para a resolução do contrato de seguro.

 

A MORA DO SEGURADO E O DEVER DE INFORMAÇÃO: NOVA PERSPECTIVA PARA A RESOLUÇÃO CONTRATUAL POR FALTA DE PAGAMENTO DE PRÊMIO

 

 

 

No contrato de seguro, compete ao segurado pagar o prêmio, informar a verdade e não agravar o risco. Há outros deveres, mas são esses os principais, de que ora se elege um: pagar o prêmio.

O prêmio é a contraprestação em dinheiro que o segurado paga ao segurador para obter a garantia contra riscos de seu interesse. Ao deixar de pagá-lo, o segurado perde o direito à indenização. Penderia em favor do segurador a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), prevista nos artigos 476[1] e 477[2] do Código Civil.

Consiste esta “em um meio de defesa, pelo qual a parte demandada pela execução de contrato pode argumentar que deixou de cumpri-lo pelo fato da outra ainda também não ter satisfeito a prestação correspondente. É uma defesa oponível pelo contratante demandado contra o cocontratante inadimplente, em que o demandante se recusa a cumprir a sua obrigação, sob a alegação de não ter, aquele que a reclama, cumprido o seu dever.”[3]

Além da exceção pelo contrato não cumprido, o segurador está na condição de credor insatisfeito. A mora do segurado é falta contratual, à qual não se pode desprezar uma sanção. Parece simples e óbvio, não?

A falta de pagamento do prêmio deveria ser causa automática de resolução contratual e a perda do direito à indenização um efeito imediato disso, incidente no dia seguinte ao estabelecimento da mora. Infelizmente, não é bem assim. Nem sempre o óbvio é verdadeiramente óbvio, ao menos para o Direito.

Segundo uma significativa corrente doutrinária e a jurisprudência majoritária, a mora do segurado é ex persona[4] ; exige-se, pois, a caracterização formal de sua ocorrência. Assim, tem o segurado que ser notificado pelo segurador, sob pena de não se configurar o estado de inadimplência.

Nas IV Jornadas de Direito Civil o tema foi alvo de especial atenção e ganhou contornos taxativos, amparados em muitas decisões colegiadas. Expressamente, diz o Enunciado 376 CJF/STJ: “Para efeito do art. 763 do CC, a resolução do contrato depende de prévia interpelação”.

Embora o art. 763 do Código Civil não diga nada a respeito de prévia interpelação, consideraram-na exigível e necessária. O Enunciado ecoou decisões como esta: “Nos termos dos precedentes desta Corte, considera-se abusiva a cláusula contratual que prevê o cancelamento ou a extinção do contrato de seguro em razão do inadimplemento do prêmio, sem prévia constituição em mora do segurado, mediante prévia notificação” (STJ, AgRg no AREsp 292.544/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 23.04.2013, Die 27.05.2013).

O Superior Tribunal de Justiça em 2018 consolidou o assunto por meio de sua Súmula 616: “A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do contrato de seguro”.

A Súmula não só determinou definitivamente a prévia notificação (ou interpelação) pelo segurador, como assegurou o direito de recebimento ao segurado em mora.

Em outras palavras: o segurador é obrigado a indenizar mesmo diante da mora do segurado se antes não tratou de acusá-la formalmente. Não se lhe aproveita tanto a exceção pelo contrato não cumprido, ou qualquer outro mecanismo que proteja o seu direito a receber o que não lhe pagam.

Assim, não mais se discute o dever de notificação e se tem por certo que a resolução do contrato de seguro só ocorre diante da prévia notificação do segurado de sua mora. Se algum segurador indaga: “Devo interpelar o segurado devedor para caracterizar sua mora e me desobrigar do dever de indenização?”, a resposta é — sim.

O dever de notificação foi determinado pelo Poder Judiciário ao interpretar o art. 763 do Código Civil. É assim que é; goste-se ou não, concorde-se ou não. O espaço para discussão seria então pequeníssimo, senão nulo, por conta da Súmula 616/STJ.

Contudo, considerando a natureza dialética do Direito, e a despeito de se tratar de matéria sumulada, ouso em parte discordar. Falo na possibilidade de que a Súmula não se aplique a todo caso em que não se pague o prêmio, e sim de um modo equilibrado, justo, segundo particularidades e circunstâncias.

Isso porque existem devedores de boa-fé e devedores de má-fé. E não dá para tratar os dois da mesma forma. 

Pode não parecer, mas ordenar ao segurador notificação prévia é um ônus indevido que contraria a essência mesma da boa-fé objetiva. Ora, se o segurado deixa de pagar o prêmio, o certo é exigir-lhe o respeito pelo dever de informar o segurador, justificar a mora, comprometer-se ao adimplemento breve e, assim, manter íntegra a garantia securitária.

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Ao não permitir a resolução imediata do contrato de seguro com a mora do segurado, o Poder Judiciário se sobrepôs ao legislador, inserindo uma condição que no art. 763 do Código Civil não existe. Inverteu valores, prejudicando o credor insatisfeito e beneficiando os devedores, que não raro são de má-fé.

Em um tempo em que o Direito evolui para proteger o credor insatisfeito, parece contraditória a defesa do devedor, mesmo em se tratando de segurado, parte presumidamente mais fraca no contrato de seguro. Ao hipertrofiar a defesa do segurado, não se prejudicou apenas os legítimos direitos e interesses do segurador, mas principalmente os do mútuo, do colégio de segurados que incorpora.

O segurador não é apenas ele mesmo; é ele e seus segurados, ele e a sociedade em geral, ainda que indiretamente. Por isso não se pode devotar ao devedor a mais irrestrita confiança, sob pena de retirar ao negócio de seguro a saúde de que tanto ele necessita.

Para proteger o segurado (talvez em excesso) na relação contratual direta com o segurador, enfraqueceu-se a universalidade dos que contribuem, no meio da qual se encontra — vejam só — o próprio segurado. Eis o paradoxo.

Convite à reflexão: não seria equivocado exigir do credor provar a resolução de um contrato pela mora do devedor? Que inspira outra: a resolução do contrato não se dá, a rigor, com o descumprimento de dever imprescindível ao seu aperfeiçoamento?

Às duas perguntas: sim. Por mais que se queira proteger o segurado na relação contratual com o segurador – o que evidentemente não é ruim –, é inviável conferir-lhe um rol de benefícios legais que gera o desequilíbrio que antes se buscou combater.

Ora, o devedor é que tem de justificar a dívida, mostrando ânimo de pagamento a fim de que a relação contratual perdure. Relação atingida pelo simples inadimplemento, quando não comunicado, justificado e, de alguma maneira, compromissado.

A mora deveria ser encarada como condição resolutiva do contrato. Se o segurado não pagou o prêmio, o negócio não se aperfeiçoou e, portanto, não pode mais obrigar o segurador ao pagamento da indenização em caso de sinistro.

Isso parece o mais lógico e o que melhor se ajusta ao espírito primaz das relações contratuais, aquele que se mostra desde sempre presente e que não se submete aos penduricalhos quase ideológicos que, alterando o sentido de princípios vetores como a da boa-fé objetiva e o da função social, acabam por destitui-los de toda a razão de ser. Importante deixar bem claro que não se trata de crítica ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, e sim um clamor de adequação.

Compreendem-se as razões ontológicas do entendimento e sua conformidade com o espírito de proteção ao consumidor e usuários de serviços, todavia é necessário também reconhecer que o respeito aos direitos e interesses do credor insatisfeito não podem ser relegados a um plano para lá de secundário.

Espiritual e moralmente as contradições são, senão corretas e incentivadas, ao menos compreendidas e toleradas. Não tratou com tanto esmero o grande filósofo José Ortega y Gasset das muitas contradições que arrastam os homens? Essas contradições, porém, não podem se fazer tão presentes no Direito.

Por mais que se veja no Direito elevada carga subjetiva e por mais que se saiba da existência da “textura aberta” e da “zona de penumbra” de Herbert Hart[5], não se pode descuidar do que devo chamar de “anseio à objetividade”, em plena harmonia com o conceito de moldura de Kelsen.

Entusiasmam-se com a ideia de moldura mesmo os que defendem a primazia do Direito Natural (e eu defendo), pois nela residem os limites de discricionariedade ao aplicador do Direito. Soma-se a isso o imperativo de evitar a contrariedade e daí surge uma proximidade maior com a justiça. E por que “contrariedade”?

Simples: sim, é verdade que o Direito atual reconhece e protege a situação hipossuficiente do consumidor e usuário de serviço – e isto tudo é muito bom –, mas também não descuida dos legítimos interesses do credor insatisfeito, da imputação de responsabilidade ao autor de ato ilícito e causador de danos.

Ora, não é o autor de ato ilícito e causador de dano aquele que descumpre o contrato, que não paga o que deve?

Assim, a súmula 616 – que por si mesma é uma moldura – há de ser ela própria emoldurada. Dá mesma forma que se fala em Recht übber Recht, há que se pensar na moldura da moldura. E, assim falando, faz-se imprescindível a melhor e cuidadosa aplicação do enunciado.

O segurado que não paga o prêmio tem que comunicar formalmente o segurador do seu estado de inadimplemento, justificá-lo, comprometer-se ao adimplemento no primeiro momento possível e, assim, preservar a cobertura.

Procedendo de tal forma, vinculará o segurador que somente poderá considerar rescindido o contrato de seguro se o notificar, formalmente. Aí, sim, diante desse segurador devedor de boa-fé a condição da Súmula se faz incidir na plenitude.

Cuidou o devedor de informar e justificar sua condição, inibindo uma sanção automática. Para a imposição de nova situação jurídica, competirá ao segurador formalizar a insatisfação e acusar a mora, bem como a resolução do contrato. Isso é ainda mais evidente em se tratando de segurado que é pessoa jurídica, cujo signo de hipossuficiência não pode ser absoluto.

Já no caso do segurado, pessoa jurídica ou natural, que não informa a mora e garante seu direito, o benefício jurisprudencial demonstra-se exagerado, senão injusto. Premia-se, é possível dizer, quem não age em boa-fé e quem não exercita seu direito.

O dever de pagamento é inafastável; não pode ser atenuado sem justa causa, sob pena de desequilíbrio da relação contratual e, no caso específico do contrato de seguro, grave prejuízo ao colégio de segurados, ao mútuo.

Como já se disse antes e agora se repete: é contraditório, é paradoxal, é despropositado prejudicar muitos segurados (consumidores e usuários de serviços) para beneficiar um só que não demonstrou – presumidamente em enorme parte das situações – zelo com seu dever e respeito ao seu credor.

Essa dinâmica proposta se conecta ao dever de informação, também a ser direcionado ao segurado, devedor. Ele tem o dever de informar seu estado de mora e, assim, preservar sua condição contratual. Fazendo-o, convém lembrar, o segurador terá de informar a rescisão contratual, sendo o seu silêncio condição de validade, de continuidade, do contrato e do dever de indenizar em caso de risco.

Eis a moldura da moldura, o restabelecimento do equilíbrio, a observância do estado de devedor insatisfeito e a coerência que se espera do Direito, braço armado da Justiça.

Evidentemente que o que aqui se advoga nada tem a ver com o adimplemento substancial, a teoria da substancial performance.[6]

Quando, havendo prêmio parcelado, a obrigação do segurado é substancialmente cumprida, e a mora se mostra quase insignificante, senão insignificante mesmo, a extinção do contrato já nem seria a melhor medida. Tem que se reconhecer o dever de indenizar, sem retirar do segurador, é claro, o direito de cobrar a parte inadimplida.

Essa teoria não consta também da redação do art. 763 do Código Civil, mas é informada por princípios fundamentais como os da razoabilidade, proporcionalidade, equidade, boa-fé e função social. Seria só um pequeno prejuízo ao mútuo, que não lhe afetaria o equilíbrio da posição, ao tempo em que do contrato respeita bem os interesses das duas partes.

Assim, merecidos são os aplausos aos 361 e 371 CJF/STJ cujas redações são, respectivamente, as seguintes:

“Arts. 421, 422 e 475. O adimplemento substancial decore dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.”

“A mora do segurado, sendo de escassa importância, não autoriza a resolução do contrato, por atentar ao princípio da boa-fé objetiva.”

 

A análise da teoria leva em conta a quantificação e a qualidade, ao tempo em que respeita a condição especial do segurado em um dado caso.

Bem diferente, porém, é a situação de quem não paga o prêmio, não trata de buscar a conciliação, não informa o credor e, ainda por cima, se beneficia do formalismo para não se ver devidamente punido.

Por fim, é de se evidenciar que não se pretende por em dúvida o entendimento jurisprudencial, até sumulado. Não. Hoje, é mais do que sabido que o segurador tem que notificar o segurado inadimplente para ver rescindido o contrato e se desobrigar do pagamento de indenização em caso de sinistro. Defende-se apenas a aplicação mais calibrada e pontual do dever de notificação, que não onere em demasia a vítima do inadimplemento.

Não pode o segurador ser prejudicado simplesmente por ser segurador. Isso significa lesar o mútuo. Havendo desídia por parte do segurado, desrespeito ao dever de informação, a mora há de ser automática e condição resolutiva do contrato.

Isso impedirá situações em que, antes da notificação de mora pelo segurador e do seu justo intento de resolução do contrato, ocorre um sinistro, e o segurado sem nem mesmo pagar, acaba recebendo. Um pequeno ajuste de interpretação no posicionamento atual é o que se reclama, de modo que se reestabeleça o primado do equilíbrio contratual.

 

Desenho preto e branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Professor de cursos modulares da ENS (em parceria com o CIST) sobre seguros, logística e transportes (tema: avaria grossa).

 

 

 

 

 

 


[1] Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

 

[2] Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

 

[3] Giullia Ferrara: https://giulliamferrara8.jusbrasil.com.br/artigos/308531240/aplicabilidade-do-principio-da-excecao-de-contrato-nao-cumprido

 

[4] Mora ex persona (Artigos 397, 2ª alínea do Código Civil; Artigos. 867 a 873 e 219 do Código de Processo Civil): Ocorre quando o credor deva tomar certas providências necessárias para constituir o devedor em mora (notificação, interpelação, etc.) https://www.infoescola.com/direito/mora/

[5] Ao conceituar o Direito, H.L.A. Hart reconheceu as imprecisões linguísticas e, portanto, a textura aberta. Falou de núcleo e halo das normas e de uma zona de penumbra, na qual a discricionariedade do juiz é maior para interpretação e aplicação da norma.

[6] A teoria do adimplemento substancial diz que o devedor de prestações contratuais, no caso, o segurado, que cumpre a maior parte do seu dever não pode ser prejudicado em seus direitos por conta de mora pouco relevante. Hoje, no Brasil, considera-se adimplemento substancial certa de 70% do pagamento do prêmio.

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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