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Ser leve e líquido.

O conteúdo da modernidade contemporânea

Agenda 01/03/2021 às 13:50

A razão de ser da modernidade contemporânea angariar o adjetivo de "líquida" é a sua capacidade de mudar de formato e de velocidade, inaugurando uma dinâmica cada vez mais célere que influenciam os seres humanos, suas relações e toda a civilização.

Os líquidos são diferentes dos sólidos, em muitos aspectos. Os líquidos não mantêm sua forma com facilidade. Os fluídos não se fixam no espaço e nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos possuem dimensões espaciais definidas, mas neutralizam o impacto pois reduzem a significação do tempo, enfim, resistem. E, assim, o seu fluxo se torna irrelevante.

 

Os fluídos não se atêm muito a qualquer forma, são extremamente adaptáveis, e estão constantemente prontos e propensos, a mudá-la. Para os fluídos, o que realmente conta, é o tempo muito mais do que o espaço que lhes cabe ocupar.

 

O espaço que preenchem enfim, só preenchem por um momento. Já os sólidos suprimem o tempo e os líquidos, ao contrário, o tempo é exatamente o que importa. Ao descrever os sólidos podemos ignorar inteiramente o tempo e ao descrever os fluídos, deixar o tempo de fora, constituiria um grave erro.

 

As descrições sobre os líquidos apontam que são fatos instantâneos e precisam ser datados. A extraordinariedade da mobilidade dos fluídos é o que os associa a ideia de “leveza”, a ausência de peso, à inconstância sabemos pela prática que quanto mais leves, mais fácil será viajar e com rapidez nos movimentos.

 

A descrição desses aspectos físicos de fluído e sólido permitem a perceber as expressivas diferenças entre a modernidade dura ou sólida e a modernidade líquida ou de Bauman.

 

Aliás, Zygmunt Bauman ainda utilizou a metáfora do caçador e jardineiro para simbolizar a era pré-moderna e moderna. E, segundo o filósofo polonês, na era pré-moderna, a metáfora do caçador melhor descreve a presença humana na terra, já que o caçador era aquele que protege seus terrenos de qualquer interferência externa e acredita num equilíbrio da natureza.

 

E, vê uma estabilidade funcional na presença de cada elemento no mundo, não se importando em acabar com os recursos de um certo espaço, pois pode se mover para outro espaço e utilizar mais recursos.

 

A vida do caçador é direcionada para a guerra com outros caçadores e a proteção do ambiente que se explora. Ao passo que na era da modernidade, a presença humana parte da premissa reflexiva da sociedade, pautada na noção de progresso que envolve projetar aquilo que se deseja fazer antes da ação propriamente dita.

 

O jardineiro sabe quais as plantas devem ser plantadas, quando plantá-las e quais devem ser cortadas, ele também entende que a ordem no mundo depende muito do esforço de cada um, e não exatamente de uma lei exterior.

 

Segundo Bauman quando a utopia passa a ser deixada de lado na sociedade líquida, o caçador volta a tomar o lugar do jardineiro e, as regras fixas do equilíbrio da natureza retornam a produzir formas variadas e variantes, em que a condição humana volta a ser dominada por certa angústia e insegurança insustentáveis.

 

Em termos de relações pessoais, são as conexões que predominam. Conexão, aliás, é o termo que Bauman usou para descrever as relações frágeis. A conexão é um vocábulo adequado pois envolve a noção da vantagem de não está só, em ter várias conexões simultâneas, mas principalmente, em conseguir desconecta sem grandes perdas ou custos.

A relação frágil tem como pressuposto a transformação de seres humanos em mercadorias que podem ser consumidos e digeridos e, em seguida, jogados no lixo a qualquer momento e por qualquer motivo, aliás, a qualquer momento, os humanos podem ser excluídos.
 

A conexão é frágil porque o sujeito líquido lida com o mundo de consumo e de opções, mas tal mundo nunca é objetivo e frio, ele ainda causa muitas frustrações e, conforme já mencionado, gera muita insegurança.

 

O sujeito líquido não tem mais os referenciais de ação, toda a autoridade de referência é colocada em si e, é sua responsabilidade construir ou escolher normas a serem seguidas, tudo se passa como se fosse questão de escolher a melhor opção, com melhores vantagens e, de preferência, nenhuma vantagem.

 

Tudo enfim forma uma mentalidade que não só valida as instituições e as normas, mas também fornece base para vida dos sujeitos, os imperativos de consumo que são inscritos naquilo que há de mais importante para a constituição do sujeito líquido. E, até mesmo no sexo.

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Em plena modernidade líquida, o sexo se revela como uma força de atomização e, não mais, de união. As conexões sexuais enfatizam a noção de indivíduo isolado, porque estas não são muito mais que o acúmulo de sensações que os sujeitos pós-modernos foram construídos para buscar. Há sempre a satisfação instintiva e individual sem qualquer responsabilidade ou ligação com o outro, sempre a acumulação de prazeres com isenção de responsabilidade.

 

Afora a prática sexual diferenciada, a própria noção de sexualidade fora modificada. E, é perceptível nas crianças em tenra idade, pois atualmente a expressão da sexualidade na criança é considerada como produto de abuso de adultos – adultos as abusam e tal crime seria refletido na criança em ações simples, como quando começa a mexer nos próprios órgãos genitais.

 

Antes deste conceito de sexualidade infantil, as crianças eram consideradas como sujeitos sexuais, pois tinham interesse pelo prazer sexual e se masturbavam na busca destas sensações, o que pode ser mais bem compreendido com a leitura de Sigmund Freud.

 

Para considerar a fluidez ou liquidez como metáforas adequadas para captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade.

 

A nossa modernidade ganhou uma versão individualizada e privatizada e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos.


Deu-se a liquefação dos padrões de dependência e interação. Os padrões doravante são maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderia supor, mas como todos os fluídos, estes não mantêm a forma por muito tempo.

 

Dar-lhes a forma é mais fácil do que mantê-los nela. Ao passo que os sólidos são moldados para sempre. E, manter os fluídos em uma forma exata requer muita atenção e vigilância constante além de um esforço perpétuo.

 

O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluído e não-estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam a cercar suas narrativas.

 

Há os pensadores que cogitam do fim da história, da pós-modernidade, da segunda modernidade e da sobremodernidade, ou de articular a instituição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sobre as quais a política-vida é hoje, é o fato de que o longo tempo e esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou a seu limite natural.

 

A ideia de emancipação nos faz questionar se a libertação significa mesmo uma benção ou será uma maldição?

 

Na pauta da modernidade, a libertação está no topo da agenda da reforma política posicionando-se no alto da lista de valores.

Em verdade, houve duas respostas, a saber: a primeira que duvidava sobre a prontidão do povo comum para a liberdade. E, conforme o escrito norte-americano Herbert Sebastian Agar que afirmava: “a verdade que torna os homens livres, é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir”.

 

A segunda resposta, inclinava-se a aceitar que os homens podem não estar inteiramente equivocados quando questionam os benefícios que as liberdades oferecidas os podem trazer.

 

O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação. Para o homem, a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas, ele chega a isso, opondo-lhe a grande e inteligente força da sociedade, ele se torna, até certo ponto, dependente dela.

 

Porém, trata-se de uma dependência libertadora e não há contradição nisso. Pois não outro caminho para buscar a liberdade senão submeter-se à sociedade e, enfim, seguir suas normas.

 

A liberdade não pode ser garantia contra a sociedade. O resultado das rebeliões contra as normas mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar a própria condição, é uma garantia de agonia perpétua de indecisão que liga à um estado de incerteza sobre as intenções e movimentos dos outros ao redor, o que faz da vida um inferno.

 

Cornelius Castoriadis aponta que o errado na sociedade onde vivemos, o fato de ter deixado de se questionar. Não reconhece qualquer alternativa para si mesma, e, portanto, se sente absolvida do dever de examinar demonstrar justificar e que dirá provar a validade de suas suposições tácitas e declaradas.

 

Mas isso não significa que nossa sociedade tenha suprimido ou venha suprimir o pensamento crítico. Não deixou seus membros reticentes e nem temerosos.

 

Ao contrário, nossa sociedade é uma sociedade de indivíduos livres e, fez da crítica da realidade, da insatisfação contingente e da expressão inevitável da insatisfação como parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros.

 

A reflexão não vai longe o suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os denominam e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em operação.

 

Somos talvez mais pressupostos à crítica, mais assertivos e intransigentes em nossa crítica que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim, dizer “desdentada”.

 

Posto que incapaz de afetar a agenda estabelecida por nossa escolha na “política-vida”. A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como já advertia Leo Strauss e com ela também sua importância sem precedentes.

 

Essa modernidade sólida e sistêmica da teoria crítica era impregnada da tendência no totalitarismo. A sociedade totalitária de homogeneidade compulsória, imposta e onipresente estava constantemente no horizonte, como uma bomba nunca desarmada um fantasma que nunca é inteiramente exorcizado.

 

Tal modernidade era inimiga jurada da contingência da verdade, da ambiguidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo decretado uma guerra santa a todas essas anomalias e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras vítimas da cruzada.

 

Entre os principais ícones da modernidade sólida estavam a fábrica de carros fordista que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente seguidos sem envolver faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual.

 

Diante dessas características percebemos que nossa modernidade contemporânea, faz de nossa modernidade nova e diferente.

 

A primeira característica é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna consistente da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, de algum tipo de sociedade boa, justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades de ordem perfeita em que tudo é posicionado em lugar certo e nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro, tão completo que põe fim a toda a contingência disputa, ambivalência e consequências imprevistas das iniciativas humanas.

 

A segunda mudança agora significa que a individualização significa algo diferente do que há cem anos, o que implicava nos primeiros tempos da era moderna, os tempos da exaltada emancipação do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitária.

 

A individualização consiste em transformar a identidade humana de um dado em uma tarefa e encarregar os atores da responsabilizar de realizar essa tarefa e das consequências bem como efeitos colaterais de sua realização.

 

A individualização consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de fato também ser sido estabelecida).

 

Para assumir a dicotomia existente entre a individualidade como fatalidade e a individualidade como capacidade realista e prática de autoafirmação está aumentando.

 

Melhor ser afastado da individualidade por atribuição como individuação, o termo escolhido por Beck para distinguir o indivíduo autossustentado e auto-impulsionado daquela que não tem escolha senão a de agir, ainda que contrafactualmente, como se individualização tivesse sido alcançada. Saltar sobre esse abismo não é parte da capacidade.

 

A individualização chegou para ficar, toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato.

 

A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar, mas traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as consequências.

 

O abismo que se abre entre o direito à autoafirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tomar essa autoafirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da modernidade fluída (contradição que, por tentativa e erro), reflexão crítica e experimentação corajosa precisamos aprender a manejar coletivamente.

 

Na época da modernidade pesada que segundo Max Weber era também a era da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava ser administrado prudentemente e para que o retorno de valor, que era o espaço, pudesse ser maximizado.
 

Já na era da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de alcançar o valor pretende aproximar-se do infinito como efeito paradoxal de nivelar por cima (ou antes, por baixo) o valor de todas as unidades do tempo como no campo dos objetivos potenciais.

 

A interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo, isto é, em tempo nenhum, nenhuma parte do espaço podem ser alcançadas a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer uma delas um dado momento e nem tampouco razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas.

 

Se soubermos que podemos preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas. Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo em gastar dinheiro em uma passagem válida para sempre.

 

Há ainda menos razão para suportar o gasto da supervisão e administração permanentes, do laborioso e arriscado cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme os interesses de momento e relevâncias tópicas.

 

O tempo instantâneo e imediato é do mundo software, é afinal, um tempo sem consequências. A distância em tempo que separava o começo do fim está diminuindo, ou mesmo desaparecendo...

 

As duas razões que outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo e, portanto, para calcular o seu “valor perdido” perderam muito de seu significado, o que antes, como todos os significados derivava de sua rígida oposição.

 

Tudo que existe, são momentos, pontos sem dimensões. Tempo com a morfologia de um agregado de momentos, o tempo como conhecimento.

 

A eloquência do momento de tempo, em certos aspectos vitais parece ter cometido suicídio. O espaço não teria sido a primeira baixa na corrida do tempo para a cruel auto-aniquilação.

 

As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que não podem se mover tão rápido e de modo ainda mais claro, a categoria de pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem, as que obedecem.

 

A dominação consiste em nossa própria capacidade de escapar de nos desvencilhamos de estar em “outro lugar” e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito e ao mesmo tempo de destruir, o que estão no lado dominado de sua capacidade de para, ou de limitar os seus movimentos, ou ainda, torná-los mais lentos.

 

A grande batalha contemporânea da dominação é travada entre as forças que empunham, respectivamente, as armas de aceleração e da procrastinação.

 

O trabalho sem corpo na era do software não mais amarra o capital, assim se permite o capital ser extraterritorial, volátil e inconstante.

 

A descorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso de capital. Percebe-se que sua dependência mútua foi unilateralmente rompida; enquanto a capacidade do trabalho é, como antes, incompleta e irrealizável isoladamente, o inverso não mais se aplica.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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