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CRIMES QUE PRECISAM SER INVESTIGADOS

Agenda 03/03/2021 às 11:51

O ARTIGO DISCUTE SOBRE CASO CONCRETO.

CRIMES QUE PRECISAM SER INVESTIGADOS

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

A Folha, em 2 de março de 2021, informou em seu site que a aquisição de uma mansão em Brasília foi a 20ª transação imobiliária feita pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) nos últimos 16 anos.

A compra e venda de imóveis é um dos investimentos privados feitos pelo senador que, segundo ele, explicam o aumento de seu patrimônio ao longo da vida pública. A intensa atividade de Flávio no setor foi revelada pela Folha em 2018.

O Ministério Público do Rio de Janeiro, contudo, afirma que ao menos duas transações, feitas em novembro de 2012, foram usadas para a lavagem de R$ 638,4 mil obtidos por meio de um esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete da Assembleia Legislativa do Rio.

Os investigadores apontam ainda suspeitas sobre outra atividade privada do senador: uma loja de chocolates num shopping do Rio de Janeiro.

O MP-RJ suspeita que a empresa ajudou no ocultamento do desvio de R$ 1,6 milhão da “rachadinha”. O estabelecimento foi fechado no mês passado, por iniciativa de Flávio.

O Ministério Público do Rio de Janeiro afirma que, só de 2010 a 2014, o senador teve um patrimônio “a descoberto”sem origem identificada— de quase R$ 1 milhão. A suspeita é a de que seja fruto do esquema de “rachadinha” na Assembleia.

Há ainda suspeitas sobre a movimentação financeira posterior do senador, embora não haja um cálculo sobre o patrimônio não justificado.

Ainda segundo a Folha, a principal suspeita recai sobre a “transação relâmpago” de quitinetes de Copacabana. O valor pago oficialmente, declarado em escritura, foi de R$ 310 mil.

A primeira suspeita se deve ao fato de os mesmos imóveis terem sido adquiridos um ano antes pelos antigos proprietários por valor 30% maior: R$ 440 mil.

Os investigadores afirmam que Flávio e a mulher pagaram "por fora", com dinheiro vivo, R$ 638,4 mil na aquisição dos imóveis.

O MP-RJ diz que, no mesmo dia da concretização do negócio, o vendedor dos dois imóveis esteve no banco HSBC, onde tinha conta, para depositar os valores em espécie. A agência usada fica a 450 metros do cartório onde foi assinada a escritura, que, por sua vez, fica a 50 metros da Assembleia Legislativa do Rio.

Menos de dois anos depois, os imóveis foram vendidos por R$ 1,1 milhão, em valores declarados. Para o MP-RJ, a lavagem de dinheiro se concretizou por meio do lucro declarado à Receita Federal de R$ 813 mil —tornando "legais" os R$ 638,4 mil supostamente de origem ilícita.

O imóvel da Barra, segundo o MP-RJ, também foi adquirido com dinheiro de origem ilícita. Ele foi apontado na denúncia contra Flávio como o principal bem a ser perdido em caso de condenação.

De acordo com os investigadores, parcelas do financiamento por este apartamento foram pagas após uma série de depósitos fracionados em dinheiro vivo na conta da senador. A soma de origem não identificada desses aportes em espécie somam R$ 159,5 mil.

O MP-RJ também afirma que Flávio não tinha condições financeiras para adquirir as 12 salas comerciais que comprou em 2008.

A reportagem da Folha, de Italo Nogueira, que aqui trouxe à colação, é extremamente esclarecedora.

II – A ATUAÇÃO DO COAF E DA RECEITA FEDERAL  

De onde Flávio Bolsonaro obteve tanto dinheiro? O que fez para tal?

A defesa de Flávio Bolsonaro já conseguiu junto a Quinta Turma do STJ a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal. Mas resta a prova obtida pelo COAF que ele também quer anular.

Para o caso é fundamental a prova documental e técnica não bastando apenas testemunhos.

No caso do Brasil, a Lei 9.613/98 criou o COAF (artigos 14 a 17), como unidade de inteligência financeira do sistema nacional de prevenção, estabeleceu regras de adequação para certos sujeitos obrigados, integrantes de setores econômicos relevantes (artigos 9 a 11); instituiu responsabilidade administrativa dos sujeitos obrigados (artigo 12) e, finalmente, criou o cadastro nacional dos clientes do sistema financeiro nacional (artigo 10 – A).

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Na Lei 9.613 de 1998, que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens e que criou o Coaf, há uma lista de instituições que são obrigadas legalmente a enviar informações sobre operações financeiras e transações de altos valores ou feitas em dinheiro vivo. Na lista estão bancos, joalherias, seguradoras, imobiliárias, administradoras financeiras, entre outras.

A lei brasileira seguiu o modelo sugerido pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), criado em 1989, sob os auspícios da OCDE e do G-8. No ano seguinte, o GAFI, Financial Action Task Force, expediu suas 40 recomendações, que servem de baliza para a prevenção e o combate ao crime de lavagem de dinheiro. O GAFI reúne as unidades de inteligência financeira dos vários países chamados cooperantes, inclusive o COAF e tem representações regionais.

O trabalho do COAF é importante, visando a identificação de todos os autores e coautores do crime e a localização dos ativos reciclados, de modo a permitir a condenação dos culpados e o perdimento do proveito, produto e instrumentos do crime.

O Banco Central, como autoridade monetária, à luz da Lei 4595/64, recebe as notícias das instituições financeiras sujeitas à sua fiscalização e as repassa ao COAF. O mesmo padrão é seguido por outras autarquias como a SUSEP e a CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

Cite-se, por sua importância, na matéria, a Carta Circular BACEN 2826/01, norma secundária, que se circunscreve ao universo das entidades financeiras, onde se lista uma série de atividades suspeitas que devem ser acompanhadas pelos Bancos e comunicadas ao Banco Central:

- alterações substanciais na rotina bancária;

 - grande atividade por wire transfer;

- operações sem sentido econômico;

- uso de várias contas simultaneamente;

- movimentação incompatível com o negócio ou profissão;

- relações com paraísos fiscais;

- estruturação de operações com fracionamento de depósitos ou remessas;

- recusa em informar origem de recursos ou a própria entidade;

- inconsistência documental.

É certo que para isso, o COAF poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas e, ainda, comunicar às autoridades competentes tais fatos, visando a instauração de procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos em lei. Não se trata de quebra de sigilo bancário, mas de formação de banco de dados de pessoas envolvidas em operações suspeitas, matéria que exige aplicação de discricionariedade administrativa, onde na hipótese de oportunidade e conveniência, a Administração, sem fugir dos limites legais e na devida proporcionalidade, agirá a bem do interesse da sociedade. Na palavra da Ministra Ellen Gracie, como consta de voto no RE 389808, julgado em 24 de novembro de 2010,  era necessário fazer distinção entre quebra de sigilo e transferência de sigilo, que passa dos bancos ao Conselho. O dados, até então protegidos pelo sigilo bancário, prosseguem ainda protegidos pelo sigilo a ser mantido pelo COAF.

Na Sessão de 24.02.2016, o Plenário do STF, ao apreciar o RE 601.314, Rel. Min. Edson Fachin, após reconhecer a repercussão geral da matéria, assentou a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001, que autoriza o fornecimento de informações sobre movimentações financeiras diretamente ao Fisco, sem a necessidade de autorização judicial prévia

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 12 de dezembro de 2017, que a Receita Federal não precisa de autorização judicial para repassar informações protegidas por sigilo bancário ao Ministério Público. O colegiado seguiu o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, e derrubou decisão do Superior Tribunal de Justiça que havia anulado provas de um processo.

O julgamento se deu no RE 1057667 AGR / SE.

De acordo com ministro Barroso, como todos os órgãos envolvidos têm obrigação de sigilo em relação às informações, não há quebra de sigilo. Há apenas transferência de informações sigilosas entre órgãos com o mesmo dever de preservação. Pela decisão, o MP pode usar as informações para instruir processos penais.

O ministro Barroso entende que prática não configura quebra de sigilo. A decisão amplia efeitos de tese firmada em 2016.

Ficou vencido o ministro Marco Aurélio, contrário à liberação. Com a decisão desta terça, a turma deu um passo adiante para a autorização da quebra de sigilo bancário pela Receita sem necessidade de autorização judicial, decidida pelo Plenário em fevereiro de 2016, no sentido de que é possível a utilização de dados obtidos pela Secretaria da Receita Federal, em regular procedimento administrativo fiscal, para fins de instrução processual penal.

Nessa anoto as seguintes decisões: ARE 998.818, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; RE 1.073.398, Rel. Min. Luiz Fux; RE 1.090.776, Rel. Min.Alexandre de Moraes; RE 1.064.544, Rel. Min. Edson Fachin. Cito, por oportuno, as seguintes passagens de duas decisões monocráticas de Ministros da Corte, na mesma linha:“[...]No caso, o acórdão recorrido consignou que a quebra do sigilo bancário para investigação criminal depende de avaliação e motivação judicial, nos termos dos arts. 5º, XII, e93, IX, ambos da CF/88. Entretanto, há reiteradas decisões desta Corte afirmando que deve ser estendida a compreensão fixada no julgamento do RE 601.314 à esfera criminal. Confiram-se, por amostragem, o ARE 841.344-AgR (RelatorMin. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe 15/2/2017) e as seguintes decisões monocráticas, ambas com trânsito em julgado: ARE 987.248-AgR (Relator Min. Roberto Barroso, Dje17/3/2017) e ARE 953.058 (Relator Min. Gilmar Mendes, Dje 30/5/2016).

Naquela ocasião, o tribunal declarou constitucional artigo da Lei Complementar 105 que permite ao Fisco acessar informações sigilosas de correntistas de bancos sem autorização judicial. A tese foi a de que há transferência de informações sigilosas, e não quebra de sigilo. A decisão, registre-se, passou por repercussão geral.

Por outro lado será inestimável a bem da sociedade que o MPF defenda a correta e necessária atuação do COAF para o caso e ainda da Receita Federal.

III – O CRIME COMETIDO CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

Há evidentes indícios de crime cometido por conta crime cometido contra a ordem tributária. Como tanto dinheiro se o senador não apresenta sua origem legal? Trago o que se lê de reportagem do jornal O Globo, em 22 de dezembro do corrente ano, na medida em que poderia haver crime contra a ordem tributária, previsto na Lei nº 8.137/90 com fraude ao imposto de renda, tributo federal.

“Além de receber quase o dobro dos lucros da Bolsotini Chocolates e Café em relação a seu sócio, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido/RJ) declarou uma retirada de valores 82% acima do que a própria empresa relatou à Receita Federal, segundo investigação do Ministério Público do Rio. De acordo com o MP-RJ, Flávio disse ter retirado R$ 793,4 mil de receita nos três primeiros anos de atividade da loja de chocolates, inaugurada em 2015. Só que a própria Bolsotini informou, em declarações de informações socioeconômicas e fiscais (DEFIS) relativas ao Simples nacional, que Flávio obteve, na verdade, R$ 435,6 mil no período. Segundo o MP, a Bolsotini não apresentou declaração de Imposto de Renda na mesma época. A investigação também aponta divergências nas retiradas de Alexandre Santini, responsável por metade da sociedade com Flávio Bolsonaro. De acordo com os documentos, Santini declarou lucros de R$ 288,9 mil, valor mais de R$ 24 mil abaixo da transferência que a Bolsotini informou à Receita Federal. Considerando os valores efetivamente retirados pelos dois sócios, o MP conclui que Flávio obteve quase R$ 500 mil a mais do que Santini nos três anos iniciais de atividade da loja. O valor equivale à cota de participação que deveria ter sido paga por Santini na empresa. Por outro lado, o MP não identificou aportes do sócio de Flávio até o fim de 2018. Os investigadores citam a “inexplicável desproporção na distribuição de lucros” da Bolsotini, “associada à coincidência do valor da diferença paga” a Flávio Bolsonaro em relação a seu sócio, para reforçar a suspeita de que Santini “possa ter figurado inicialmente nos contratos como ‘laranja’”.

IV – A FUNDAMENTAÇÃO PER RELATIONEM

É mister prosseguir com a investigação em tela não devendo os tribunais superiores se nortearem por filigranas processuais. O processo é um instrumento a serviço do bom direito e não um meio de fuga da verdade, a pretexto da aplicação de um devido processo legal.

Para o caso será mister que o Ministério Público Federal que atua perante o STJ ajuíze, na medida em que intimado daquela decisão que anulou as quebras de sigilo bancário e fiscal, recurso de embargos de declaração, pois há uma clara distância entre os votos do ministro relator Félix Fischer e os outros quatro ministros que votaram pelo provimento daquele recurso ajuizado por Flávio Bolsonaro.

O relator do caso no STJ, ministro Felix Fischer foi voto vencido. Ele foi contra os argumentos da defesa de Flávio Bolsonaro e registrou, em decisão anterior, que era “importante ressaltar que a técnica da fundamentação per relationem, utilizada na primeira decisão, há muito, é admitida por este Tribunal Superior”.

O ministro destaca que juiz Itabaiana usou a remissão, “chamada de fundamentação per relationem“, em que se refere aos fundamentos que deram suporte ao pedido do Ministério Público ou até mesmo a anterior decisão. Lembrou que a técnica visa economia processual e “constitui meio apto a promover a forma incorporação, ao ato decisório, da motivação a que ele se reportou como razões de decidir”.

O relator das “rachadinhas” no STJ listou também em despacho de abril de 2020 casos de julgamentos anteriores, inclusive da 5.ª Turma e de seus membros, em que a técnica per relationem foi aceita. Citou ainda entendimento do STF, em outros casos, que a técnica foi aceita.

Pesquisadores de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) levantaram que apenas 3 de 29 decisões da 5.ª Turma, tomadas em casos semelhantes ao do senador Flávio Bolsonaro, foram similares à da que derrubou a prova principal da denúncia, conforme reportagem do Estadão. O levantamento foi feito no banco de dados da Corte, e se referem ao período entre 1.º de janeiro de 2020 a 24 de fevereiro de 2021.

O ministro Fischer destacou também manifestação “esclarecedora” do sub-procurador-geral da República Roberto Luís Oppermann Thomé, em parecer do caso, em que considerou inexistente qualquer “constrangimento ou ilegalidade/nulidade” nas decisões” do juiz da primeira instância.

“As movimentações bancárias suspeitas na conta do investigado Fabrício Queiroz configuram fortes indícios de que assessores ligados ao co-investigado Flávio Bolsonaro faziam transferências bancárias ou sacavam mensalmente parte de seus próprios vencimentos e os repassavam em espécie a Fabrício Queiroz, configurando-se prática criminosa conhecida no meio político por ‘Rachadinha’, ‘Rachid’ ou ‘Esquema dos Gafanhotos’, ou seja, prática em tese de peculato.”

Para o ministro Fischer, a decisão de Itabaiana foi tomada com “amparo em fortes indícios de materialidade e autoria de crimes, inclusive, com a suposta formação de associação criminosa, com alto grau de permanência e estabilidade, envolvendo dezenas de pessoas”. “Não bastasse, a imprescindibilidade da medida de quebra de sigilo foi muito bem explicada na segunda decisão” de Itabaiana.

O juiz expediu novo despacho na época, em que registrou que o “afastamento dos sigilos bancário e fiscal” citados “é imprescindível para o prosseguimento das investigações”. “Pois somente seguindo o caminho do dinheiro é possível o Ministério Público apurar os fatos que estão sendo investigados, não havendo outros meios menos gravosos de averiguar o contexto fático.”

Pois bem: A Quinta Turma do STJ não levou em conta essa segunda decisão do juiz Itabaiana. Firmou-se apenas em uma filigrana processual para anular essas quebras de sigilo bancário e fiscal.

Ora, se essa decisão segunda foi devidamente fundamentada, acrescentando dados da primeira decisão do juízo a quo, será caso de por embargos de declaração expurgar essa omissão, essa ambiguidade.

V  – CONCLUSÕES

Afinal, há crimes de peculato(rachadinhas), lavagem de dinheiro(aquisição de imóveis), crime contra a ordem tributária que precisam ser investigados. O cidadão brasileiro paga pesados impostos e precisa do esclarecimento da verdade.

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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