A DECISÃO DE PRONÚNCIA E O IN DUBIO PRO SOCIETATE
Rogério Tadeu Romano
I –HC 589270.
Aplicando a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de que é ilegal a sentença de pronúncia baseada exclusivamente em informações coletadas na fase extrajudicial, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, reposicionou seu entendimento e concedeu habeas corpus em favor de réu que havia sido mandado a júri popular tão somente em razão de provas produzidas durante o inquérito policial. Além de despronunciar o réu, o colegiado revogou sua prisão preventiva.
Segundo o relator do caso, ministro Sebastião Reis Júnior, a sentença de pronúncia com base apenas em provas do inquérito é ilegítima, pois acaba se igualando à decisão de recebimento da denúncia.
De acordo com o magistrado, apesar de muitas decisões do STJ terem admitido a pronúncia do acusado com base em indícios derivados do inquérito, sem considerar que tal posição afrontasse o artigo 155 do Código de Processo Penal (CPP), outros julgados mais antigos da corte não aceitavam o juízo positivo de pronúncia sem apoio em prova produzida sob o crivo judicial.
O relator observou ainda que a posição do STF decorre do entendimento de que, após a Constituição de 1988, não há mais amparo constitucional e legal para a regra in dubio pro societate, segundo a qual, na decisão sobre a pronúncia, eventual dúvida quanto à autoria deveria pesar em favor do interesse social na apuração do crime.
Por sua vez, comentou Sebastião Reis Júnior, o princípio da presunção de inocência, consagrado na Constituição, impõe ao Ministério Público, como órgão acusador, a responsabilidade de comprovar suas alegações em todas as fases e procedimentos do processo penal. Outros dois princípios – o contraditório e a ampla defesa –, até como meio de sua concretização, impedem, segundo o relator, que a sentença de pronúncia tenha por base exclusiva provas não confirmadas na fase judicial.
O caso foi objeto de discussão no HC 589270.
II – A PRONÚNCIA
Pronúncia é a decisão interlocutória mista onde se encerra a fase de formação da culpa, inaugurando-se a fase de preparação para o plenário, que levará ao julgamento do mérito.
Há o entendimento de que com a reforma penal, não mais se denomina sentença de pronúncia, mas decisão. Ora, continua a possuir, de forma formal, a estrutura de uma sentença.
Nos termos do art. 413, “caput”, do CPP, ao pronunciar o réu, o magistrado deve apoiar a sua decisão na certeza da materialidade do fato delituoso e na existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Havendo dúvida quanto à materialidade do fato delituoso ou quanto aos indícios suficientes de autoria ou de participação, impor-se-á ao juiz um outro tipo de decisão, que é a impronúncia (CPP, art. 414, “caput”). Poderá, ainda, o magistrado competente, longe de pronunciar ou de impronunciar, proceder, desde logo, à absolvição sumária do acusado, naquelas hipóteses que se acham definidas no Código de Processo Penal, notadamente no seu art. 415, ou seja, quando entender que (a) está provada a inexistência do fato delituoso, (b) está provado não ser o réu o autor ou partícipe do fato, (c) o fato investigado não constituir infração penal ou (d) incidir, no caso, uma causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. Poderá, finalmente, ocorrer uma quarta situação processual: o juiz não pronuncia, o juiz deixa de impronunciar, o magistrado não profere absolvição sumária, mas pode entender que se impõe a desclassificação jurídica do fato delituoso em razão de não configurada a existência, p. ex., de um crime doloso contra a vida, seja ele consumado ou tentado. São essas, basicamente, as quatro situações processuais que podem registrar-se nesse momento que encerra a primeira fase do procedimento penal bifásico ou escalonado do Júri.
Se houver dúvida razoável em lugar de absolver dúvida razoável, em lugar de absolver, como faria o juiz em um feito comum, deve remeter o caso à apreciação do juiz natural, que é o Tribunal do Júri.
Não devem seguir para o Júri os casos rasos em provas, fadados ao insucesso, merecedores de um fim, desde logo, antes que se possa lançar a injustiça nas mãos dos jurados. Isso porque merecem ir a Júri os feitos que contenham provas suficientes tanto para condenar como para absolver.
Se as provas são fracas, não há testemunhas presenciais e somente existe uma confissão extrajudicial do réu, por evidente, consagra-se a carência absoluta para sustentar qualquer condenação, sendo o caso de impronúncia. Não se remete ao Tribunal do Júri uma causa perdida.
A impronúncia ocorre quando não se pode firmar o convencimento a respeito da materialidade do fato e ante a inexistência de indícios suficientes de autoria ou de participação.
O indício suficiente de autoria oferece uma relativa relação entre um primeiro fato e um seguinte oriundo da observação inicial e devem tais indícios para que motivem a decisão de pronúncia apresentar expressivo grau de probabilidade que sem excluir a dúvida tende a se aproximar da certeza,.
O mínimo que se possa exigir para a existência da pronúncia é a prova certa de que o fato ocorreu.
Não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita (RT 690/390 – RT 698/452-454, v.g.).
A decisão para remeter o caso ao Tribunal do Júri deve oferecer fundamentação suficiente para demonstrar às partes o convencimento judicial.
III - 180.144 – Go
Sobre a matéria observo algumas linha do julgamento do HC 180.144 – Go.
Ali se disse:
“O sistema jurídico-constitucional brasileiro não admite nem tolera a possibilidade de prolação de decisão de pronúncia com apoio exclusivo em elementos de informação produzidos, única e unilateralmente, na fase de inquérito policial ou de procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, sob pena de frontal violação aos postulados fundamentais que asseguram a qualquer acusado o direito ao contraditório e à plenitude de defesa.”
A jurisprudência do STF (ARE 788.457-AgR/SP, Rel. Min. LUIZ FUX – ARE 1.047.613- -AgR/DF, Rel. Min. ROSA WEBER – RE 540.999/SP, Rel. Min. MENEZES DIREITO, v.g.) quanto o magistério jurisprudencial dos Tribunais em geral (REsp 54.763/DF, Rel. Min. ANSELMO SANTIAGO – RSE 70000688242/TJRS – RT/TJSP 729/545, v.g.) têm admitido a aplicação da regra “in dubio pro societate”, para, em face de um estado de dúvida, permitir ao juiz a prolação de decisão de pronúncia contra determinado acusado. Disse o ministro Celso de Mello naquele HC 180.144 – Go:
“A regra “in dubio pro societate” – repelida pelo modelo constitucional que consagra o processo penal de perfil democrático – revela-se incompatível com a presunção de inocência, que, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, tem prevalecido no contexto das sociedades civilizadas como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana.”
É certo, no entanto, que essa concepção tem sido criticada por diversos doutrinadores (RENATO BRASILEIRO DE LIMA, “Manual de Processo Penal”, p. 1.379/1.380, item n. 7.3, 6ª ed., 2018, JusPODIVM; GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ, “Processo Penal”, p. 675/676, item n. 13.5.4, 5ª ed., 2017, RT; AURY LOPES JR., “Direito Processual Penal”, p. 806/808, item n. 3.8.2.1.1, 13ª ed., 2016, Saraiva; GUILHERME MADEIRA DEZEM, “Curso de Processo Penal”, p. 1.041/1.044, item n. 14.14.4.1, 5ª ed., 2019, RT), que perfilham entendimento no sentido de que, havendo dúvidas quanto à materialidade delitiva ou quanto à existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, deve prevalecer a presunção constitucional de inocência.
Ressalte-se, nesse contexto, que o conceito de presunção de inocência, notadamente quando examinado na perspectiva do ordenamento constitucional brasileiro, deve ser considerado nas múltiplas dimensões em que se projeta, valendo destacar, por expressivas, como registra PAULO S. P. CALEFFI (“Presunção de Inocência e Execução Provisória da Pena no Brasil”, p. 24/50, itens ns. 1.2, 1.3 e 1.4, 2017, Lumen Juris), as seguintes abordagens que esse postulado constitucional enseja: (a) a presunção de inocência como norma de tratamento, (b) a presunção de inocência como norma probatória e (c) a presunção de inocência como norma de juízo.
Tem-se que que o processo penal condenatório não constitui nem pode converter-se em instrumento de arbítrio do Estado. Ao contrário, ele representa poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal.
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal.
Diante disso, disse o ministro Celso de Mello em mais uma lição, dentre tantas, inesquecível, naquele julgamento do HC 180.144 – Go:
“O fato é que a insuficiência da prova penal existente em qualquer procedimento penal não pode legitimar a formulação de um juízo que importe em restrição à esfera jurídica do acusado. O estado de dúvida que emerge de um processo penal de conhecimento, ainda que se trate do procedimento escalonado do Júri, nessa primeira fase, desautoriza, por completo, qualquer medida de restrição ao “status libertatis” do acusado. No Direito Positivo brasileiro, a situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo, pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos constitucionais que consagram o Estado Democrático de Direito.’
Inviável, de outro lado, sob pena de gravíssima afronta à cláusula constitucional que confere ao réu a garantia de observância dos postulados do contraditório e da plenitude de defesa, apoiar decisão de pronúncia em elementos probatórios unicamente produzidos na fase pré- -processual, vale dizer, em sede de investigação penal promovida pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, considerada a natureza inquisitorial de tais procedimentos, circunstância que impede seja o réu pronunciado, exclusivamente, com base em dados informativos resultantes de inquéritos policiais ou de procedimento de investigação criminal instaurado pelo “Parquet”.”
Essa a linha trazida pela doutrina que se orienta no sentido da inadmissibilidade da decisão de pronúncia com base exclusivamente em elementos colhidos em sede de inquérito policial – tem o beneplácito de autorizado magistério doutrinário (ÁLVARO ANTÔNIO SAGULO BORGES DE AQUINO, “A Função Garantidora da Pronúncia”, p. 138/139, 2004, Lumen Juris; ARAMIS NASSIF, “O Júri Objetivo”, p. 44, 2ª ed., 2001, Livraria do Advogado; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Tribunal do Júri”, p. 64/65, 7ª ed., 2018, Forense; FELIPE ROEDER DA SILVA, “A Aplicação do Princípio do In Dubio Pro Reo na Decisão de Pronúncia do Tribunal do Júri” “in” “Revista Ciência Jurídica, Ano XXVII, Volume 171”, p. 109/110, item n. 6, 2013), valendo referir, em face de sua extrema pertinência, a lição de WALFREDO CUNHA CAMPOS (“Tribunal do Júri: Teoria e Prática”, p. 67/68, 2010, Atlas).
Inaceitável, desse modo, a prolação de decisão de pronúncia cujo único suporte probatório resida em elementos de informação constantes de procedimentos estatais revestidos de caráter unilateral (“informatio delicti”), eis que, caso tal fosse possível, transgredir-se-iam a garantia constitucional do contraditório e a amplitude do direito de defesa, violando, ainda, o princípio da bilateralidade do juízo, com danosa projeção sobre o “status libertatis” do réu.
Vou mais além, trazendo à colação o que foi decidido no HC 560552.
Em razão da ausência de confirmação, na fase judicial, dos depoimentos testemunhais prestados durante o inquérito policial, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para despronunciar três réus acusados de homicídio.
Na despronúncia, é revertida a decisão judicial que havia reconhecido os indícios de autoria de crime doloso contra a vida e mandado o réu ao tribunal do júri. O ato é diferente da impronúncia, quando a denúncia é julgada improcedente.
Para o colegiado, caso fosse mantida, a pronúncia dos acusados significaria admitir que a prova produzida no inquérito é suficiente para submeter um réu ao tribunal do júri – sem a necessidade de confirmar nenhum elemento de prova na fase judicial do processo.
"Significa inverter a ordem de relevância das fases da persecução penal, conferindo maior juridicidade a um procedimento administrativo realizado sem as garantias do devido processo legal, em detrimento do processo penal, o qual é regido por princípios democráticos e por garantias fundamentais", afirmou o relator do habeas corpus, ministro Ribeiro Dantas.
Segundo os autos, a pronúncia dos acusados foi fundamentada em dois depoimentos extrajudiciais: no primeiro, a testemunha não confirmou em juízo as suas alegações à polícia; no segundo, a testemunha não foi localizada para que as declarações fossem repetidas.
Apesar disso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a pronúncia, considerando suficientes os indícios de participação dos acusados no crime.