1. Excludentes de ilicitude
O Código Penal Brasileiro, na parte geral, trata de vários assuntos importantes pra seu entendimento e aplicação.
Dentre os assuntos tratados no Código Penal, encontramos as causas de exclusão de ilicitude no Título II, artigos 23:
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
[...]
Encontramos a definição de estado de necessidade realizando a leitura do artigo 24 do Código Penal:
Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.
Segundo VARGAS, estado de necessidade:
Trata-se de uma descriminante que se caracteriza por um conflito de bens jurídicos, um dos quais tem de ser sacrificado, para o outro ser posto a salvo. Nesse confronto, o Estado toma uma posição de neutralidade, para considerar lícita a conduta daquele que sacrificou um bem jurídico para preservar um outro, seu, ou de terceiro. No tratamento do estado de necessidade, em diversos ordenamentos jurídicos, mutas vezes adotam-se dois estados de necessidade: um justificante, outro desculpante, como acontece no Código Penal Militar, e como se pretendeu no malogrado Código de 69. O critério para se definir um e outro é o da ponderação de bens: se o bem jurídico sacrificado for reconhecidamente inferior àquele preservado, exclui-se a ilicitude; se de igual ou inferior valor, exclui-se a culpabilidade. (VARGAS. Instituições do direito penal, p. 331-332. - VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.)
Já legítima defesa, diz o Código Penal:
Legítima defesa
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.
Para CARLOS e FRIEDE, legítima defesa:
[…] se trata de uma das causas de excludente de ilicitude através da qual o Estado permite, em caso excepcional, e desde que presentes os requisitos necessários, o exercício da autodefesa. (CARLOS, André; FRIEDE, Reis. Teoria Geral do Delito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.)
No que tange ao estrito cumprimento do dever legal, MASSON aborda o tema da seguinte mandeira:
É o caso, por exemplo, do cumprimento de mandado de busca domiciliar em que o morador ou quem o represente desobedeça à ordem de ingresso na residência, autorizando o arrombamento da porta e a entrada forçada (art. 245, § 2º, do CPP). Em decorrência do estrito cumprimento do dever legal, o funcionário público responsável pelo cumprimento da ordem judicial não responde pelos crimes de dano ou de violação de domicílio. (MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2014.)
Por último, exercício regular de direito, na visão de CUNHA:
Age no exercício regular de direito o possuidor de boa-fé que retém coisa alheia para ressarcir-se das benfeitorias necessárias e úteis não pagas (art. 1219 do Código Civil), bem como os pais que castigam (moderadamente) os filhos como meio de dirigir-lhes a criação e educação (art. 1634, I, do Código Civil). São requisitos desta justificante: a proporcionalidade, a indispensabilidade e o conhecimento do agente de que atua concretizando seu direito previsto em lei. (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral (Arts. 1 ao 120). Slavador: Juspodivm. 2016. P. 272)
2. Equipamento não letal
Para uma melhor compreensão do tema, é importante esclarecermos e definirmos o que é equipamento não letal para então, evoluirmos em nossos estudos.
No Curso Técnicas e Tecnologias Não-Letais de Atuação Policial, encontramos o seguinte conceito para equipamento não letal: "Todo os artefatos, inclusive os não classificados como armas, desenvolvidos com finalidade de preservar vidas, durante atuação policial ou militar, inclusive os equipamentos de proteção individual"1.
Logo, uma algema pode ser considerada um equipamento não letal, assim como cassetete, tonfa, o gás de efeito sonoro ou o luminoso, munição de elastômero, dentro outros.
A intenção desses equipamentos é cessar a agressão de uma forma que vidas não sejam colocadas em risco, além de reduzir ao máximo o dano ao agressor, a terceiros e até mesmo ao agente de segurança pública.
Por outro lado, equipamentos letais são aqueles que podem levar o agressor ao óbito, tendo um alto grau de letalidade, como no caso das armas de fogo, granas, explosivos e outros.
3. Cães de polícia e suas funções
Os cães, há muito tempo, convivem com o homem, desempenhando as mais diversas funções, que iam desde simples mascotes de unidades, até combatentes, puxadores de pequenos veículos, e outras.
Há relatos do emprego de cães nos Impérios Grego (cães Molossos) e Romano (Dogo do Tíbete), além da utilização na conquista da América (utilização da raça Fila pelos espanhóis).
Nas primeira e segunda guerra mundial, os exércitos fizeram ampla utilização dos cães das raças Pastor Alemão, Rottweiler e Dobermann, o que popularizou tais raças pelo mundo.
Fazendo uma breve viagem ao passado, quanto a essa relação homem e cão, trouxe DA ROSA:
“É provável que essa relação iniciou-se nos campos de forma voluntária, onde após caçar alguns animais, o homem deixava restos dessa caça aos cães e esses por sua vez, permaneciam próximos das residências do homem, dando-lhe certa tranquilidade no que diz respeito à segurança, e que a partir daí viu-se uma relação amistosa desses animais. A partir daí, a relação de afeto e carinho começou a se estreitar, onde os cães também começaram a participar das caças, não sendo mais adversários e sim uma situação mais amistosa.”
Nos dias atuais, os cães passaram a desenvolver cada vez mais funções: companhia; faro; guia de deficientes visuais; resgate; salvamento; guarda e proteção; etc.
Na área de segurança pública, os cães encontraram muitas ocupações, sendo empregados nas mais diversas funções, destacando-se o faro de entorpecentes e explosivos, a busca por suspeitos, o resgate de desaparecidos e até mesmo cadáveres, o salvamento aquático.
Além dos já citados acima, o emprego de cães se destacou na Segurança Pública também na guarda e proteção, este alvo do presente estudo.
É na guarda e proteção que o cão vai para a rua e é posto em teste. Sempre acompanhado e sob o comando de seu condutor, o cão participa de abordagens policiais e/ou patrulhamento de ruas, de eventos. E nessa atividade, o cão traz várias benefícios, tendo como principal o efeito psicológico ao público em sua volta.
Quanto a esse efeito psicológico, trouxe MARTINS:
Outra característica, diz respeito ao porte físico “e seu alto poder intimidatório causando um impacto psicológico nas pessoas, despertando temor”. Para este perfil canino destacam-se os cães de patrulha e os cães de controle de distúrbio civis. (MARTINS et al., 2003)
É de conhecimento de todos que, cada vez mais, união, estados e municípios lidam com a falta de recurso para reposição de efetivo na segurança pública. Aqui, não estamos falando de aumento de efetivo, mas da simples reposição.
Não é raro encontrarmos estados onde o efetivo atual é menor do que os das décadas de 90, 80, mesmo com o aumento expressivo da população, da criminalidade, com o surgimento e aparelhamento de facções criminosas.
Portando, a utilização de cães pelas Polícias Civil, Militar, Federal, Rodoviária Federal, Corpo de Bombeiros, Guardas Municipais é mais do que uma necessidade, tornando-se um reforço fundamental no combate a criminalidade, na proteção e salvamento de vidas.
4. Uso de cães como equipamento não letal
Já conhecendo o que é equipamento não letal, sabendo um pouco do histórico da relação homem x cão, a funcionalidade deste animal na área de segurança pública, passaremos agora a tratar do uso do cão como equipamento não letal pelas forças de segurança pública.
Em um primeiro momento, deixamos claro que é importante que casa instituição de segurança redijam suas regras para o uso de cães, criem cursos de capacitação para condutores e, principalmente, exijam um padrão comportamental para o cão a ser utilizado.
Chamamos atenção especial, aqui, para o descrito na Portaria Interministerial nº 4.226, de 31 de dezembro de 2010, Anexo I, Diretriz 17:
Nenhum agente de segurança pública deverá portar armas de fogo ou instrumento de menor potencial ofensivo para o qual não esteja devidamente habilitado e sempre que um novo tipo de arma ou instrumento de menor potencial ofensivo for introduzido na instituição deverá ser estabelecido um módulo de treinamento específico com vistas à habilitação do agente.
Portanto, é essencial que a instituição que pretenda trabalhar com cães, tenha elaborado um planejamento próprio visando a habilitação do condutor.
Superada essa fase, resta claro que o profissional de segurança que opera com um cão passa a ter uma opção a mais no seu leque de itens no uso progressivo da força.
O cão devidamente treinado, seguindo aos comandos de seu operador, tem em um primeiro momento um impacto psicológico enorme contra o agressor. Quando este impacto psicológico é incapaz de conter o agressor, o condutor faz com que o cão passe o estado de alerta, latindo e demonstrando foco no agressor, reforçando que o agressor deve se entregar. Somente após estes estágios, com a determinante recusa do agressor, é que o condutor determinará que o cão morda o agressor, para que este seja imobilizado.
Importante destacar que a mordida do cão não é letal e que, um cão devidamente treinado, morde e permanece segurando o agressor, largando apenas sob o comando de seu condutor, utilizando do uso progressivo da força nessas ações, fazendo com que o operador saque sua arma de fogo em um último caso.
Sobre o uso progressivo da força, no Curso de Extensão em Equipamentos Não letais, da Polícia Federal, encontramos:
USO PROGRESSIVO DA FORÇA: consiste na seleção adequada de opções de força pelo vigilante em resposta ao nível de submissão do indivíduo suspeito ou infrator a ser controlado. Na prática será o escalonamento dos níveis de força conforme o grau de resistência ou reação do oponente.
Desta forma, encerramos o presente trabalho, acreditando ser legal e possível o emprego de cães por forças policiais, se enquadrando como equipamento não letal durante o uso progressivo da força.
Ademais, não podemos deixar de ressaltar que, seguindo sempre o protocolo da instituição e com capacitação constante, o emprego de cão contra um agressor que se recusa a obedecer as ordens do agente de segurança, é causa de extinção de excludente de ilicitude, pois o agente estará amparado pelo instituto da legítima defesa.
5. Conclusão
Conclui-se o presente trabalho, apresentando uma noção superficial do que são as excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito).
Após, abordamos os equipamentos não letais.
Passamos brevemente sobre os cães de polícia e suas funções, buscando mostrar os pontos principais para o presente estudo.
Por último, estudamos o uso de cães como equipamento não letal, aqui a peça chave do presente trabalho.
Vimos que há diversos estudos sobre o tema, pois nos dias atuais, o cão traz às forças policiais mais segurança na operação, otimiza tempo, recursos e potencializando a eficácia, tanto da busca de drogas, de suspeitos, explosivos, etc.
Concluímos o trabalho concluindo que é sim possível utilizar o cão como um equipamento não letal, desde que o seu uso seja precedido de normar internas regulamentando o emprego de cão na instituição policial, assim como sejam criados cursos de instrução e o operador esteja devidamente habilitado para a função.
Assim, o operador ganha um equipamento não letal a mais, a instituição ganha uma importante arma no combate ao crime organizado e a sociedade pode ver uma potencialização nos serviços prestados, com menor risco em operações policiais.
Referências
BRASIL. Código Penal (1940). Código Penal, 1940. Brasília: Poder Executivo, DOU de 31/12/1940, pag. 2391. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acessado em 02 fev. 2021
CARLOS, André; FRIEDE, Reis. Teoria Geral do Delito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.)
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral (Arts. 1 ao 120). Salvador: Juspodivm. 2016. P. 272
Curso Técnicas e Tecnologias Não-Letais de Atuação Policial, módulo 1, SENASP/MJ, 18/10/2007, pg. 05. Disponível em: <https://www.pf.gov.br/servicos-pf/seguranca-privada/legislacao-normas-e-orientacoes/manual-do-vigilante/manual-do-vigilante/Caderno%20Didatico%20CENL%20I.pdf>. Acessado em: 02 fev. 2021
DA ROSA, Leandro Edison. O emprego de Cães de Faro nas Operações de Fiscalização de Drogas Ilícitas Realizadas nos Postos da Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina. 2009. 110 f. Dissertação (Artigo Científico) – Polícia Militar do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: <https://www.pmrv.sc.gov.br/publicacoesETrabalhosArquivo.do?dPublicacao=2337>. Acesso em: 01 fev. 2021.
MARTINS, Clayton Marafioti; SOUZA, Claudionor de. Manual Cinotécnico: Emprego policial do cão. Polícia Militar de Santa Catarina, 2003. Acessado em: <https://www.pmrv.sc.gov.br/publicacoesETrabalhosArquivo.do?cdPublicacao=2337>. Acessado em 01 fev. 2021
MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
Portaria Interministerial nº 4.226, de 31 de dezembro de 2010, Anexo I, Diretriz 17. Acessado em: <https://www.conjur.com.br/dl/integra-portaria-ministerial.pdf>. Acessado em 02 fev. 2021
VARGAS. Instituições do direito penal, p. 331-332. - VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008
Nota
1Curso Técnicas e Tecnologias Não-Letais de Atuação Policial, módulo 1, SENASP/MJ, 18/10/2007, pg. 05