1 – INTRODUÇÃO
Em um primeiro momento, o artigo aborda a questão das ocupações irregulares e o dever da administração pública em repelir esse fenômeno imigratório.
Após, trata-se exclusivamente do direito dessas pessoas em ter o acesso à rede de água e esgoto, protegido principalmente pelo Princípio da Dignidade Humana.
Por último, o trabalho traz leis e decisões que mostram o dever da administração de fornecer e prestar este serviço essencial à população.
2 – DESENVOLVIMENTO
Nas grandes cidades do País constatamos facilmente o fator migração, onde pessoas carentes e de pouco grau de instrução procuram a realização do sonho de uma vida melhor e digna.
Geralmente, as cidades alvos desta migração são cidades em franco desenvolvimento, concentradas mais na região sul e sudeste do país.
Com o fenômeno da migração, também surge o crescimento desordenado dessas cidades, que já contam com uma precária rede de saneamento básico, má distribuição de renda e grande número de desemprego, uma vez que esses imigrantes não possuem mão de obra qualificada para as grandes indústrias.
O resultado deste crescimento desordenado é o surgimento de favelas e, principalmente, ocupações irregulares de terras frente a inércia das administrações públicas municipais.
Essa inércia da administração pública municipal faz com que famílias inteiras ocupem terras irregulares, sem oposição alguma de quem deveria agir. Frente essa inércia, surgem novos bairros, ruas e travessas.
Somente após a ocupação é que o poder público tenta agir, impedindo que essas famílias tenham acesso a rede de água, esgoto e luz, o que gera um confronto de interesses.
O pedido de acesso a água e esgoto vai muito além de um simples direito desse povo, que ocuparam as terras sem qualquer oposição. Trata-se, sim, de um dever da administração pública.
O acesso a água é um dos serviços essências a serem prestados ao cidadão, sendo protegido por um dos princípios pilares da nossa Constituição, que é o Princípio Constitucional da Dignidade Humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da CRFB:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Ainda é possível encontrar na nossa Constituição, como atribuição do Município, o dever de proteção ao meio ambiente e combate a poluição, além de promoção de melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico.
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
[...]
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
Em tendo acesso à rede de água potável, o Município está colaborando com o meio ambiente também, uma vez que o ambiente onde estas pessoas residem torna-se mais limpo e higiênico. Além do mais, a Constituição imputa à administração pública a promoção de melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico como visto acima, sendo o acesso à água o ponto inicial de qualquer melhoria de condição habitacional.
Mais uma vez, recorrendo a Carta Magna, não demora muito e é possível encontrar no artigo 30 que, é de competência dos Municípios a prestação de serviços públicos de interesses locais, seja em regime direto ou sob regime de concessão ou permissão, conforme artigo 30, I e V:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
[...]
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
É impossível que essas famílias tenham uma vida digna sem o acesso à água. A falta deste valioso e esgotável bem natural pode trazer consequências negativas para um número incalculável de pessoas, pois gera a proliferação de doenças, de insetos e mesmo, roedores.
A água, além de ser consumida, é fundamental para a manutenção da higiene pessoal e do meio onde essas pessoas vivem.
Ratificando a ideia de o tratamento e abastecimento da água ser um serviço essencial, traz a lei nº 7.783 em seu artigo 10, I:
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
Como se já não bastasse a afronta ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o não fornecimento de um serviço essencial, há também grave infração ao direito do consumidor por parte da administração Pública no não fornecimento deste serviço, conforme lei nº 8.078 (CDC), uma vez que o fornecimento de água é tratado como relação de consumo.
Traz o CDC em seu artigo 6º:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Assim, o fornecimento de água independe de saber quem é o proprietário do terreno, bastando que a família invasora, então consumidora, efetivamente tenha a posse de tal imóvel, vez que é ela a responsável pelo pagamento do fornecimento prestado.
O fornecimento deste serviço essencial deve ser contínuo e ininterrupto, conforme artigo 22 do CDC:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
A jurisprudência no Estado de Santa Catarina já se manifestou em várias oportunidades quanto ao direito de acesso do cidadão aos serviços essenciais, e o dever dos órgãos públicos em prestar-lhes, pois consideram a água bem vital para os seres humanos, imprescindível à vida e essencial à saúde pública.
Sentenciou o TJSC em Apelação Cível em Mandado de Segurança:
Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 1988.069705-9, de Imbituba
Relator: Wilson Guarany Órgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Comercial - Data: 26/04/1994 Ementa: apelação cível em mandado de segurança. Fornecimento de água para residências indeferido pela companhia de água e saneamento estadual, ao argumento de que as ocupações do imóvel não estão devidamente regularizadas, após a implantação da rede, executada sob orientação da casan. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade (art. 485, do código civil). Sentença reformada. Recurso provido.
No mesmo sentido, sentenciou também o TJSC em reexame necessário em Mandado de Segurança:
Reexame Necessário em Mandado de Segurança n. 2007.022724-3, de São José
Relator: Sérgio Roberto Baasch Luz Órgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Público
Data: 31/03/2008 Ementa: mandado de segurança - corte no fornecimento de água - contenda quanto à posse e propriedade da residência - motivo estranho à relação contratual entre o usuário e a companhia de abastecimento - ilegalidade - remessa necessária improvida. Eventual disputa quanto à posse e propriedade do imóvel, especialmente quando as faturas estão sendo quitadas e não existe fraude na utilização do serviço, não pode servir de motivo para o corte no fornecimento de água, pois se trata de contenda alheia à relação contratual entre o usuário e a Companhia de Abastecimento.
Não restam dúvidas que, ao negar a ligação de água a essas pessoas que ocupam irregularmente terrenos, a administração está ferindo um direito líquido e certo, passível de impetração de Mandado de Segurança.
3 - CONCLUSÃO
O artigo abordou um tema atual e complexo, mas de fácil solução, pois há várias fundamentações legais e jurisprudenciais que podem pacificar esse conflito de interesse.
Restou claro com o trabalho que, o acesso à rede de água é um direito protegido constitucionalmente através do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, dentre outros artigos e outras várias leis, dentre elas o Código de Defesa do Consumidor.
Não cabe, neste sentido, discussão quanto à propriedade da terra ser legítima ou não, bastando tão somente, a sua posse para que o cidadão tenha direito de acesso à água potável.