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AS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE ADESÃO: CONTROLES E NULIDADES

Da inconstitucional imposição de arbitragem em cláusulas gerais

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Agenda 17/03/2021 às 20:23

Artigo sobre estudo detalhado a respeito de tema complexo e importante que une o Direito Contratual ao Direito de Seguros e Direito de Transportes.

 

AS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE ADESÃO: CONTROLES E NULIDADES

Da inconstitucional imposição de arbitragem em cláusulas gerais

 

 

  1. Breve introdução

 

De adesão é a maior parte dos contratos de prestação de serviços.

Tipo de contratação que, a bem da verdade, não é novo. Formalmente, o conceito surge na França, aos anos vinte do século passado. Mas há quem diga que o primeiro contrato de adesão da história se fez entre Deus e o povo eleito. Confiada a Moisés, a tábua com os dez mandamentos pode ser vista como o divino contrato a cujos termos o povo aderiu.

Admitido esse ponto simpático aos jusnaturalistas, como admito eu próprio, o contrato de adesão acaba até parecendo algo bom, justo e necessário. Necessário porque um elevado número de negócios hoje é realizado em massa. E ao tempo em que surge o conceito de contrato de adesão, vão também se iniciando os estudos sobre as massas, suas circunstâncias e perspectivas, causas e efeitos. Eis o que diz o famoso filósofo espanhol José Ortega y Gasset sobre o que chamou de fenômeno do lotado[1]:

Extremamente simples de enunciar, ainda que não de analisar, eu a denomino o fato da aglomeração, do “lotado”. As casas, lotadas de inquilinos. Os hotéis, lotados de hóspedes. Os trens, lotados de passageiros. Os cafés, lotados de consumidores. As praças, lotadas de transeuntes. As salas dos médicos famosos, lotadas de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito estranhos, lotados de expectadores. As praias, lotadas de banhistas. O que antes não costumava ser problema, começa a sê-lo quase continuamente: encontrar lugar.

(...)

O fato é que, antes, nenhum desses estabelecimentos ou veículos costumava lotar, e agora transbordam, e sobra gente ansiosa por usufruir deles. Ainda que isso seja lógico, natural, não se pode ignorar que antes não acontecia e que agora acontece; portanto, que houve uma mudança, uma inovação; o que justifica, pelo menos num primeiro momento, nossa surpresa.

É certo que o tom que o grande escritor empresta é mais ácido, mas não menos certo é que o fenômeno existe. E, existindo, está conectado ao que se pode considerar sociedade de massa ou sociedade de consumo, conceitos não exatamente iguais, porém confundíveis em muitas medidas. Desde que se escreveu a primeira linha a respeito do fenômeno do lotado, desde que se cunhou o título contrato de adesão, a situação se intensificou bem mais, exigindo respostas objetivas do Direito.

O contrato de adesão não é algo em si mesmo ruim. Ele é, antes, necessário; ou, se não necessário, ao menos inevitável. Tem muito a ver com a massificação e a estandardização das relações jurídicas, o que exige contratos desenhados por condições gerais.

Aqui, por falar em condições gerais, o intuito é mencionar cláusulas que servirão para elevado número de contratos, uniformes, não negociadas, e sim estipuladas pelo proponente.

Cláusulas, enfim, que não seguem a lógica contratual inicial, porque deles se ausenta em plenitude o princípio da autonomia da vontade. E, à falta do princípio, a primeira afirmação a se fazer sobre o contrato de adesão é esta: não vale para ele, de maneira irrestrita, a máxima de que o contrato faz lei entre as partes.

O contrato de adesão é, sim, válido e eficaz, vincula proponente e aderente, mas não é absoluto como absolutos são, a rigor, os contratos informados pela autonomia da vontade, pela livre e individualizada negociação.

Essa é a desvantagem fundamental. Existem ainda, porém, vantagens expressivas. De ordem econômica e de natureza prática.

O modo adesivo reduz o tempo e os gastos de celebração e de regulação dos contratos. Permite o cálculo antecipado do custo de produção de bens ou de fornecimento de serviços empresariais. Facilita a divisão de tarefas dentro da organização empresarial do proponente, bem como a coordenação entre seus membros. Contribui, por fim, para a criação de normas supletórias e, ao menos em parte, busca maior segurança jurídica.

Portanto, não são poucas as vantagens que o contrato de adesão atrai para aquele que faz uso dele. Essa modalidade de contratação é comum em muitos campos negociais como o bancário, o securitário, de transportes, de educação.

Todas as vantagens, porém, perdem fôlego diante do desequilíbrio entre as partes e da presumida situação de hipossuficiência do aderente, seja ou não o contrato de consumo. Essa desvantagem pede do Poder Legislativo intervenções constantes, por meio de normas legais de proteção, e do Poder Judiciário, seja por controle abstrato, seja por controle concreto.

Em síntese, o grande problema do contrato de adesão é sua propensão ao dirigismo, à abusividade clausular.

Não raro, cláusulas de condições gerais se tornam abusivas e, portanto, antijurídicas. Daí a importante dos mecanismos jurídicos de controle. Cláusulas abusivas em contratos de adesão são inválidas, ineficazes, quando não nulas de pleno direito.

 

  1. O que é o contrato de adesão?

 

A introdução inspira a seguinte pergunta: o que, no final das contas, é contrato de adesão?

Embora o conceito não seja exatamente complexo, a resposta demanda algum esforço.

O contrato de adesão é aquele formado por cláusulas, termos e condições previamente determinados por apenas uma das partes e no qual falta espaço para a negociação individualizada.

Gleibi Pretty[2], reportando-se ao que há de melhor na doutrina brasileira diz:

O contrato de adesão é o instrumento muito adotado nas relações de consumo. São elaborados, geralmente por uma das partes (proponente) e são usados no dia a dia das relações de consumo, pois já estão em modelos prontos para garantir a agilidade e execução dos negócios. Segundo Caio Mário (1), o contrato de adesão deveria se chamar contrato por adesão, assim entendido "...aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente as cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra".

Ainda neste ínterim, Orlando Gomes (2) assim trata contrato de adesão: "No contrato de adesão uma das partes tem que aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo uma situação contratual que encontra definida em todos os seus termos". Nas palavras de Fran Martins (3) o contrato de adesão "...cedo se desenvolveram em larga escala e hoje são grandemente usados nos negócios comerciais. Significam uma restrição ao princípio da autonomia da vontade, consagrado pelo Código Civil Francês, já que a vontade de uma das partes não pode se manifestar-se livremente na estruturação do contrato..."

 

Muito interessante a abordagem de Stephane Gaggioli[3], que também cita a doutrina do país e expõe com didatismo:

O contrato de adesão trata-se de negócio jurídico bilateral ou plurilateral, no qual apenas uma das partes – proponente ou estipulante –, decide, previamente, quais as cláusulas serão efetivamente inseridas no contrato, de modo que, a outra parte – aderente –, apenas anui ou não, com aquilo já estabelecido, ficando esta impedida de modificar substancialmente as condições do contrato.

Maria Helena Diniz define o contrato de adesão:

[...] é aquele em que a manifestação da vontade de uma das partes se reduz a mera anuência a uma proposta da outra, como nos ensina R. Limongi França. Opõe-se a ideia de contrato paritário, por inexistir a liberdade de convenção, visto que exclui qualquer possibilidade de debate e transigência entre as partes, pois um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas pelo outro [...], aderindo a uma situação contratual já definida em todos os seus termos...[4]

Cézar Fiuza ressalva que “o contrato de adesão não é uma categoria autônoma, nem um tipo contratual, mas sim uma técnica diferente de formação de contrato, podendo ser aplicada a inúmeras categorias contratuais” [5].

Por sua vez, Carlos Roberto Gonçalves ensina que há no contrato de adesão “uma restrição mais extensa ao tradicional princípio da autonomia da vontade. [...] Em razão dessa característica, alguns autores chegaram a lhe negar natureza contratual, sob o fundamento de que lhe falta a vontade de uma das partes – o que evidencia o seu caráter institucional”.

Todavia, o mencionado autor ressalta que “prevalece o entendimento de que a aceitação das cláusulas, ainda que preestabelecidas, lhe assegura aquele caráter” [6].

Essa restrição à autonomia de vontade suportada por uma das partes é a principal característica que difere o contrato de adesão do contrato tradicional, chamado por grande parte da doutrina de paritário, isto é, onde as partes estabelecem as condições contratuais conjuntamente, de modo igualitário. Todavia, vale dizer que Cézar Fiuza discorda que o contrato de adesão não se trataria de contrato paritário (com partes iguais):

“A doutrina vem empregando tradicionalmente o termo paritário, em vez de negociável. Não concordo, porém. Paritário é o que se forma por elementos pares para estabelecer igualdade. A expressão contrato paritário deixa a entender, erroneamente, que os contratos de adesão seriam leoninos, por conferir a uma das partes vantagem exagerada, em prejuízo da outra.” (2008, p. 469)

Geralmente, os formuladores de contratos de adesão são grandes empresas, de direito público ou privado, ainda que titulares de um monopólio de direito ou de fato (fornecimento de água, gás, eletricidade, linha telefônica), envolvendo uma relação de consumo. Estando prontos os instrumentos contratuais, permanecem estes à disposição de um número indeterminado e desconhecido de pessoas. Assim, comumente, o contrato de adesão está ligado às relações de consumo, embora haja negócios jurídicos que não tenha essa característica (Carlos Roberto Gonçalves, p. 100).

Observa-se que, na maioria das vezes, há disparidade de poder econômico entre as partes, onde de um lado encontra-se o proponente, que fica no polo mais forte da relação jurídica contratual e de outro lado, o aderente, parte hipossuficiente [7] em razão de sua situação econômica e de sua condição técnica inferior para defender seus direitos.

Consoante o acima exposto, nota-se que as disposições contratuais ficam, exclusivamente, à disposição de apenas uma das partes, qual seja, a do lado mais forte da relação, visto que o aderente é impedido de discutir e modificar substancialmente o teor do contrato ou de suas cláusulas. É, dessa forma, um contrato que embora seja bilateral, é formado unilateralmente a sua essência, cujo conteúdo é produzido em massa, apenas facultando à outra parte o simples ato de aderir-lhe ou não.

 

É dizer: um contrato formado por condições gerais impostas pelo proponente ao aderente de tal forma que o negócio jurídico se dá pela ideia popular de “pegar ou largar”. Justamente por isso, e por ser inevitável, é que se faz imprescindível o controle firme das cláusulas gerais, de maneira a evitar o abuso.

A impossibilidade fundamental de negociar individualmente o clausulado, anelada à busca do equilíbrio entre as partes contratantes, permite suavizar a interpretação e a aplicação dos contratos de adesão.

Ele é válido e necessário, produz efeitos jurídicos, vincula em grande medida as partes, mas não faz entre elas uma lei sólida, robusta, vigorosa, porque acima da famosa máxima da teoria geral dos contratos há outra, maior, encartada no conceito de Direito do antigo Código do Imperador Justiniano: “a eterna e perpétua vontade de dar a cada um o que é seu.”

Num contrato em que apenas uma das partes externa a vontade, sem negociação individualizada do seu conteúdo, não se pode considerar satisfatoriamente presente essa ideia de justiça. Daí o controle, a especial proteção do aderente em relação às cláusulas abusivas.

 

  1. Sobre as cláusulas abusivas

 

Há de se reconhecer ao aderente o direito de não se condicionar ao clausulado que não se mostra equitativo.

A cláusula geral se torna abusiva quando atenta contra a boa-fé e causa prejuízo ao aderente. Como o aderente não tem a faculdade de expor previamente sua vontade, a proteção se dá pelo controle de conteúdo. Por meio deste, declara-se nula a cláusula abusiva. O contrato persiste, gera efeitos, mas a cláusula rotulada abusiva fica extirpada, sem incidir no mundo dos fatos.

Diz o Superior Tribunal de Justiça que “um dos princípios fundamentais do direito privado é o da boa-fé objetiva, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais. No entanto, a boa-fé não se esgota nesse campo do direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.”[4]

Determina o art. 422 do Código Civil que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

A lei não define o que é a boa-fé, mas a assegura como um valor a que os contratantes devem visar. Antes mesmo do atual Código Civil, a boa-fé objetiva já habitava o ordenamento jurídico brasileiro por obra da compreensão jurisprudencial e no sistema legal por efeito das normas consumeristas.

A partir do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, a boa-fé foi consagrada no sistema de direito privado brasileiro como um dos princípios fundamentais das relações de consumo e como cláusula geral para controle das cláusulas abusivas.[5]

O Brasil assumiu assim um regime duplo sobre o princípio da boa-fé objetiva. Constando no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, tornou-se exigível nas relações contratuais de consumo e nas civis e empresariais.

Trata-se de um princípio vetor e que não pode ser de modo algum ignorado.

O ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino explica que “a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade.”[6]

Troquemos “cidadão” por “contratante”, e as palavras do Ministro viram a moldura perfeita ao quadro contratual.

A cláusula adesiva que causa desequilíbrio importante nos direitos e obrigações das partes não se subsome ao princípio da boa-fé objetiva, pois desalinhada aos valores de honestidade, lealdade e probidade.

Mais, além de ofender o princípio da boa-fé objetiva, atinge outros. Fala-se, aqui, dos princípios fundamentais da proporcionalidade, da razoabilidade, da equidade e da isonomia.

Vamos além. A cláusula abusiva também ofende outro princípio nuclear dos contratos: sua função social.

Com nova redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019, dispõe o art. 421 do Código Civil o seguinte:

Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

A lei assegura a liberdade de contratar, mas oferece balizas a essa liberdade com as exigências da função social. A lei premia o princípio da intervenção mínima, sem descuidar da possibilidade de revisão, ainda que excepcionalmente. Veja-se ainda, porém, que ela trata do contrato por excelência, ou seja, do contrato em que a autonomia da vontade incide bilateralmente e as condições são negociadas individualmente.

Ora, se para esse tipo de contrato, o que segue a lógica imperativa da teoria geral, há os limites da função social e a possibilidade de revisão, o que pensar do contrato de adesão?

Simples: a função social[7] assume mais força e a revisão deixa de ser algo excepcional para ser ordinário, presente e necessário. A parte aderente tem o direito de se opor à cláusula abusiva, e o Estado tem o dever de lhe cassar a validade, reputando-a nula.

O art. 421-A, introduzido também pela Lei nº 13.874, de 2019, determina que os “contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção (...).”

Note-se que a lei fala de presunção de paridade e simetria, as quais só poderão ser afastadas em presença de elementos concretos e justificadores.

Entenda-se que a possibilidade de afastamento justificável da presunção de paridade e simetria só tem cabimento nos contratos informados pela autonomia da vontade, jamais nos de adesão.

Assim, a cláusula geral em contrato de adesão que não respeitar a paridade e a simetria entre as partes, mostrando-se lesiva ao aderente, é vazia de boa-fé e incompatível com a função social do contrato; vale dizer, é uma cláusula essencialmente abusiva.

Qualquer que seja a linha de raciocínio empregada, filosófica ou normativa, a cláusula abusiva não tem espaço no Direito, especialmente quando presente em contrato de adesão e em descompasso do que se espera de uma cláusula geral.

 

  1. As cláusulas abusivas e o Direito Comparado

 

Quase todos os ordenamentos jurídicos ocidentais repudiam as cláusulas abusivas em contratos de adesão por normas de controle e proteção aos aderentes.

O jurista espanhol José António Martín Pérez[8], professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca, ensina que:

Hoy es comúnmente reconocido que el principal problema que plantean los contratos de adhesión es el de su control, dado que suelen abundar en ellos las que conocemos como cláusulas abusivas. Dado que tales cláusulas son impuestas al adherente, éste no tiene opción real de rechazarlas o negociar su contenido si quiere obtener el producto o servicio. Por ello, resulta habitual que el contenido de estos contratos sea claramente favorable para el predisponente, realizando una distribución de derechos y obligaciones claramente desfavorable para el consumidor al desplazar hacia él riesgos y obligaciones. Con frecuencia el consumidor o adherente ni siquiera conoce las cláusulas, por no leerlas o no disponer de ellas. Pero lo cierto es que una vez que el adherente pone su firma, acepta el contrato y queda vinculado por lo “pactado”, viéndose atrapado por situaciones poco racionales o claramente injustas. Ahí es donde interviene la ley, para reconocer que estamos ante contratos muy diferentes a los tradicionales, para los cuales no sirve la lógica contractual clásica ni cabe la aplicación rígida del principio pacta sunt servanda, siendo necesarios controles y medidas de protección del adherente.

Também no exterior, a identificação de uma cláusula abusiva em meio às cláusulas gerais do contrato de adesão se dá pelas réguas da boa-fé objetiva e do equilíbrio entre as partes.

O professor salmantino[9] também ensina:

“La cláusula debe ser contraria a la buena fe. La buena fe debe ser entendida em sentido objetivo como um modelo de conducta contractual leal y honesta, em función del tipo de contrato.”

“La cláusula debe causar um perjuicio del consumidor y usuário, um desequilíbrio importante de los derechos y obligaciones de las partes que se deriven del contrato. La doctrina suele considerar que este desequilíbrio es fundamentalmente um desequilíbrio jurídico, sin que la abusividade enguice el contenido económico del contrato.“

As afirmações são feitas com base nas Diretivas da União Europeia e nas leis consumeristas e civis espanholas, as quais apontam as notas básicas da noção de cláusula abusiva e se ocupam de modo muito especial com as estipulaciones no negociadas individualmente. A União Europeia oferece diretivas aos estados-membros, que por sua vez as devem incorporar a seus sistemas legais.

A Espanha, como o Brasil, tem uma doble regulación, consumerista e civil. Com isso, sobram ferramentais legais para se bem combater as cláusulas abusivas nos contratos de adesão, sejam ou não de consumo.

O marco normativo espanhol é muito bom, e seu esquema geral é repetido em muitos sistemas legais latino-americanos, sendo que os próprios estudiosos espanhóis destacam os méritos e avanços de legislações, como no caso da equatoriana e da argentina. A escola jurídica colombiana também é muito elogiada, especialmente pela produção acadêmica da Pontifícia Universidad Javeriana, com a qual a Universidad de Salamanca mantém estreitos laços.

Para o controle das cláusulas abusivas, vigem na Espanha a Directiva 93/13 da União Europeia, que trata das “Cláusulas abusivas en contratos con consumidores”; a TR Ley G. Defensa de consumidores, cujo Libro 2, Título 2, disciplina as “Condiciones generales y Cláusulas abusivas” [arts. 80 a 91] e dá especial ênfase aos termos e condições contratuais não negociados individualmente.

Diretiva e lei que se dirigem aos contratantes aderentes consumidores, com poderoso sistema de freios e contrapesos em sua defesa legítima. Mas e os contratantes aderentes não consumidores: não gozam de proteção contra as cláusulas abusivas?

Sim, desde 1998.

A famosa Ley de condiciones generales de la contratación contém normas de controle e enfrentamento rigoroso das cláusulas abusivas em contratos de adhesión e aproveita aos aderentes em geral, incluindo empresas.

Essa lei, por sua vez, inspirou-se na lei alemã sobre as condições gerais dos contratos. Existe no país desde meados dos anos 70 do século passado.

Antes mesmo da existência da União Europeia e da visão atual pro consumatorem, a Alemanha já se mostrava avançada na proteção dos aderentes contratuais. A Allgemeines Vertragsbedingungengesetz disciplinou as condições gerais e tratou das cláusulas abusivas, ainda que de modo menos intenso do que hoje são tratadas e repudiadas por praticamente todos os sistemas legais.

Tinham os aderentes algum tipo de proteção, ainda que então mínima, e essa mentalidade protetiva, justa, equilibrada ganhou musculatura, expandindo-se no tempo e no espaço, sendo realidade nos dias de hoje.

Há, é verdade, na Alemanha e na Espanha algum déficit legal em relação à proteção do aderente empresário, dado que os legisladores se ocuparam mais da figura do aderente consumidor, porém os esforços para a supressão breve são amplos e robustos. A jurisprudência caminho a passos largos e sem ferir, para corrigir a situação, o princípio universal Judges do not make law.

De modo ou de outro, todo aderente tem algum grau de proteção contra as cláusulas abusivas em contratos de adesão, sempre condenáveis e reputadas nulas.

E esse cuidado é importantíssimo porque, além de primar pela justiça e corrigir assimetrias contratuais, tem-se por certo que os abusos suportados pelo aderente empresário repercutem de alguma forma no colégio de consumidores e prejudicam toda a sociedade.

A Itália tem um ótimo sistema di tutela contro clausole abusive nei contratti di adesione, não se limitando a proteger os consumidores, mas a todos os contratantes aderentes.

Lá, como na Espanha, a condição abusiva de uma cláusula de condição geral se constata sempre que a boa-fé é deixada de lado e o desequilíbrio de abate na relação contratual.

Enrico Bevilacqua e Michele Labriol comentam: “Ai sensi dell'art. 33, comma 1, del Codice del consumo, si considerano vessatorie (nel contratto concluso tra professionista e consumatore) le clausole che, malgrado la buona fede, determinano a carico del consumatore un significativo squilibrio dei diritti e degli obblighi del contratto (...).”[10]

Tratam os estudiosos italianos de tema específico, dentro da perspectiva consumerista; a afirmação – que se ajusta ao exposto pelo espanhol Martín Pérez –, todavia, cabe bem ao caso dos aderentes em geral.

A lei alemã de condições gerais contratuais, inspiradora das Diretivas europeias e das leis, consumeristas ou civilistas de outros países, em contratos de adesão dispõe de três chaves de tratamento das cláusulas abusivas: 1) controle de inclusão ou incorporação; 2) regras de interpretação; 3) controle de conteúdo.

Interessa, neste momento, o controle de conteúdo. É por meio dele que se sabe se uma cláusula geral é ou não abusiva e, notando-lhe o abuso, o que há de ser feito para imediatamente corrigir o prumo contratual e impedir ao aderente um prejuízo injusto.

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Uma coisa é fato: na Europa existe o que os espanhóis chamam de presunción de no negociación, um princípio-regra que afirma: em contrato de adesão toda cláusula é inegociada, imposta pelo proponente e, portanto, só pode vincular o aderente se não lhe for minimamente prejudicial, se não se puser em dúvida a primazia da boa-fé, a observância da função social e o equilíbrio entre as partes.

Pelo princípio da presunção de negociação, a parte aderente só necessitará demonstrar o efetivo prejuízo clausular, a grave assimetria e o sistema de proteção a que faz jus incidirá a reboque.

Competirá ao emissor do contrato de adesão demonstrar que a cláusula reputada abusiva foi negociada individualmente e que o aderente concordou de modo especial, singularizado, com sua presença no contrato. Uma concordância além da simples adesão.

E isso faz toda a diferença.

Fazendo uso do Direito Comparado e me reportando diretamente a um caso concreto, vou expor um erro de avaliação e valoração de cláusula contratual abusiva. Por delicadeza, deixarei de mencionar qualquer dado informativo sobre o litígio; detenho-me apenas no ponto que interessa a este estudo.

Era uma ação regressiva de ressarcimento que o segurador sub-rogado moveu contra o transportador marítimo responsável por danificar a carga coberta por apólice, mantida sob sua custódia e consignada ao segurado.

O transportador alegou em seu favor a cláusula de compromisso arbitral presente no instrumento de contrato internacional de transporte marítimo de carga. A cláusula previa procedimento arbitral no exterior.

O segurador, que eu defendia, expôs que a cláusula era abusiva por se tratar de contrato de adesão e inexistir a anuência expressa do dono da carga e contratante do serviço de transporte com a arbitragem no exterior. A cláusula havia sido imposta unilateralmente pelo transportador, desrespeitando a própria Lei de Arbitragem brasileira e a garantia fundamental constitucional de acesso à jurisdição.

Defendeu-se que a arbitragem há de ser sempre voluntária, e que naquele caso foi decidida unilateralmente pelo proponente do contrato, o armador; que a cláusula não poderia de modo algum incidir contra o segurador sub-rogado, porque não foi parte no contrato; e, finalmente, que a sub-rogação não transmite à seguradora compromissos arbitrais.

Apesar da clareza e da justeza desses argumentos, quase sempre agasalhados pela Justiça brasileira, a turma julgadora cedeu a essa cláusula, ignorando sua natureza manifestamente abusiva, sua ineficácia clara e fulgurante.

Em dado momento da fundamentação, o juiz relator do recurso disse que não era crível que um segurador do porte da autora, o transportador então apelado e um segurado, usuário do serviço de transporte, do tamanho empresarial, não negociaram às minúcias aquela cláusula.

O que aliás é de um descabimento absurdo, que produziu uma injustiça hoje submetida ao Superior Tribunal de Justiça, com a esperança viva de reforma. A seguradora estaria sendo forçada a obedecer a uma disposição arbitral presente em contrato do qual ela não foi parte, como se o segurado, antes da sub-rogação, pudesse dispor de um direito (de regresso) que só será exercido depois dela.

A presunção era outra, totalmente contrária: a de que a cláusula não fora negociada. O transportador, proponente do contrato, é que deveria ter provado a negociação individualizada. E não o fez.

Assim, não poderia o juiz do órgão colegiado ter valorizado uma suposição pessoal, absolutamente subjetiva, em detrimento de presunção normativa e objetiva, de espectro internacional.

O caso sumariamente exposto é interessante para mostrar o perigo que há em desprezar a força da presunción de no negociación e os seus efeitos diretos na análise, interpretação e aplicação da nulidade da cláusula abusiva em contrato de adesão. 

A abordagem internacional comparada denota duas coisas: 1) o repúdio internacional das cláusulas abusivas; 2) quão avançado é o sistema brasileiro de enfrentamento da abusividade contratual, seja no plano consumerista, seja no civil.

Por fim, e antes de mergulhar no cenário brasileiro, convém lembrar que, mesmo o modelo jurídico-contratual americano, avesso ao conceito de função social dos contratos, muito e diretamente influenciado pela ideologia liberal e mais afeito ao contratualismo puro, tem instrumentos rígidos de controle das chamadas hard power clauses, protegendo aderentes e encurtando significativamente os espaços das graves assimetrias e dos desequilíbrios significativos.

 

  1. A visão jurídica brasileira das cláusulas abusivas

 

Eis aí um tema em que o Brasil pode ser considerado modelo para o mundo.

Mesmo antes do advento da legislação consumerista nos anos 90 do século XX, havia no país o controle de conteúdo das cláusulas abusivas.

Não exagera em nada quem diz que há muito o Brasil se opõe ao dirigismo contratual, ao desequilíbrio de forças entre as partes contratantes e ao abuso clausular em contratos de adesão.

Talvez, especulo abertamente, as assimetrias sociais orgânicas e endêmicas, a sucessão de crises econômicas, a fragilidade do estado e a baixa densidade de fomento de negócios no país tenham feito com que os aplicadores do Direito se tornassem mais criativos e sequiosos de soluções eficazes, justas, aos muitos problemas em todos os campos do Direito, especialmente o contratual.

A crise impulsiona o desenvolvimento, diz a sabedoria popular. Isso não é diferente em relação ao Direito.

Muito antes de se falar em legislação consumerista, princípio da boa-fé objetiva, princípio da função social, capitalismo humanista e outros conceitos tão comuns atualmente, antes mesmo da Constituição Federal de 1988 (bem antes, aliás), o Supremo Tribunal Federal sumulou que: Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar.[11]

É de se atentar para a forma correta como o Supremo Tribunal Federal encarou a natureza adesiva do contrato de transporte e as cláusulas abusivas que costumam nele aparecer.

Transportadores costumam inserir nos tecidos contratuais cláusulas de não indenização. Estas, por razões que dispensam maiores comentários, foram tidas por inoperantes, palavra que hoje pode ser adequadamente substituída por nulas de pleno direito.

Vamos mais além. Já que a limitação de responsabilidade praticamente se confunde com a falta de indenização, uma vez que indenizar valor pífio equivale a não pagar nada, é hermeneuticamente possível se socorrer da Súmula nº 161 para decretar a inoperância, a nulidade, dessa cláusula estruturalmente abusiva.

É o que a Justiça brasileira tem feito por décadas, quase que ininterruptamente. Graças à Súmula, e bem antes da legislação consumerista e da atual legislação geral civil, as cláusulas de não indenizar sumiram do cotidiano contratual, e as de limitação de responsabilidade são quase sempre consideradas abusivas, muitas vezes submetidas ao enunciado comentado.

 

Quem se aventurar ao estudo do desenvolvimento histórico que, dentro do Direito brasileiro, tiveram as cláusulas abusivas em contratos de adesão, encontrará, sem muito esforço, miríades de decisões judiciais e de comentários jurisprudenciais, todos muito ricamente fundamentados ou argumentados.

Dando um salto histórico, tem-se o ano de 1990 quando, inspirado diretamente pela Constituição Federal, entrou em vigor o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Um diploma legal poderoso, ainda vanguardista em muitos aspectos, a influenciar a exegese de situações jurídicas que sequer estão sob seu guarda-chuva.

As cláusulas abusivas em contratos de adesão – que eram tratadas desde muito tempo pela jurisprudência brasileira – foram especialmente contempladas pelo novo sistema legal, marcado com os selos da especialidade e do constitucionalismo.

O art. 51, diz o STJ, “define as cláusulas abusivas em contratos como aquelas que liberam os fornecedores de responsabilidade em caso de defeito ou vício na mercadoria ou serviço. Também é previsto que a cláusula é nula se houver desrespeito a leis ou princípios básicos do Direito.”[12]

Percebe-se que a legislação consumerista brasileira, antes mesmo da europeia, considerou a necessidade de respeito às leis e aos princípios básicos do Direito, aos valores fundamentais, ao que depois se plasmou da jurisprudência do Código Civil sobre boa-fé objetiva e função social. Enfim, o triunfo de conceitos como proporcionalidade, simetria dos direitos e deveres das partes contratantes.

Em dezembro de 2019, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou nova súmula sobre cláusula abusiva em contrato de adesão, especificamente o bancário. Consta da Súmula 638/STJ: "é abusiva a cláusula contratual que restringe a responsabilidade de instituição financeira pelos danos decorrentes de roubo, furto ou extravio de bem entregue em garantia no âmbito de contrato de penhor civil".

Interessante notar que a Súmula não só tratou de cláusula abusiva, como também fortaleceu o entendimento do ordenamento jurídico brasileiro contra as cláusulas de limitação de responsabilidade. E o que vale para o contrato com instituição financeira, vale para todo e qualquer contrato de adesão, como o de transporte.

Assim, mais do que nunca, respeitando a tradição jurídica de longa data, é correto afirmar que toda cláusula de limitação de responsabilidade é abusiva e, consequentemente, nula de pleno direito.

O conceito de cláusula abusiva em contrato de adesão transbordou os campos dos contratos de consumo e atingiu, como chuva intensa e revitalizadora, todo o sistema contratual, de tal maneira que os contratos civis ou empresariais também são beneficiados pelos freios e controles.

 

Qualquer aderente, não apenas o consumidor, pode e deve ser protegido, ainda que no mundo dos fatos não seja hipossuficiente, mas alguém dotado de força econômica e até institucional. É a condição de aderente que reclama a proteção normativa de controle, de invalidade, ineficácia, inoperância e nulidade das cláusulas abusivas.

Houvesse alguma dúvida a respeito disso, os antes comentados arts. 421 e 422 do Código Civil a sepultaram de vez.

Diante da função social dos contratos e da boa-fé objetiva a reinar entre os contratantes, dois princípios vetores, senão fundamentais, são inaceitáveis, intoleráveis, cláusulas que causam desequilíbrio de direitos e obrigações entre as partes contratantes.

Mais ainda: no caso de cláusula geral, não negociável, sem autonomia da vontade, imposta por uma das partes, como sói acontecer em contratos de adesão, a assimetria prejudicial ao aderente é causa objetiva de nulidade.

Trata-se de algo além do princípio da interpretação mais favorável ao aderente em caso de dúvida ou obscuridade do conteúdo de uma cláusula, seja o contrato de consumo ou não. Com efeito, o que se mira não é a interpretação melhor, e sim a desoneração completa.

O modo de interpretação principiológico do clausulado, aliás, tem amparo no art. 47 do CDC[13], bem como no art. 423 do CC[14]. Ambos determinam que, havendo no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, adotar-se-á a interpretação mais favorável ao aderente.

No caso da nulidade, é sem dúvida um passo bem mais largo. A ideia é a mesma: favorecer com justeza a parte aderente, porém com outra acepção. Já não se fala apenas na interpretação e aplicação da cláusula favoravelmente, mas em sua extirpação absoluta pela abusividade constatada. Elimina-se o que é errado, indevido, injusto, danoso, para que o prejuízo não se materialize e o abuso não ganhe corpo no seio contratual.

Num tempo em que o Direito caminha para a responsabilização objetiva dos lesadores em geral e para a proteção do credor insatisfeito, não mais se tolera a existência de cláusulas contratuais abusivas, principalmente naqueles contratos, como os de adesão, em que a negociação prévia não é possível e em que apenas uma das partes impõe sua vontade.

A adesão não significa assunção de conteúdo clausular abusivo, muito pelo contrário. A adesão é um fato inevitável do mundo negocial e que em momento algum caracteriza o pleno exercício da autonomia da vontade.

Justamente por isso e por todos os princípios fundamentais já expostos é que o controle de conteúdo se faz sempre necessário, à intensidade com que a sentinela aguarda a aurora, na vigilância constante para que o equilíbrio contratual jamais venha a ser prejudicado.

 

  1. Da inconstitucional imposição de arbitragem

 

O Direito brasileiro reconhece a arbitragem como meio de solução dos litígios, naquilo que couber. A Lei 9.307, de 23 de setembro de 2016, regulamentou o uso da arbitragem, dando ali os contornos da sua incidência.

Demorou quase uma década para que o Supremo Tribunal Federal declarasse a constitucionalidade da lei, desamarrando-a para pleno uso.[15]

A notícia publicada no prestigioso portal jurídico eletrônico do ConJur (Consultor Jurídico)[16] aponta os fundamentos e evidencia que a Lei de Arbitragem não trata de um dever de ação, mas de um direito, de faculdade, não um ônus. Mais, a notícia destaca ainda: o Supremo Tribunal Federal deixou bem claro que a voluntariedade é condição inafastável do seu exercício:

“Por sete votos a quatro, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram na quarta-feira (12/12) que os mecanismos da Lei da Arbitragem (9.307/96) são constitucionais. A decisão representa o epílogo de uma discussão que mobilizou o STF nos últimos quatro anos.

O entendimento foi firmado no julgamento de recurso em processo de homologação de Sentença Estrangeira (SE 5.206).

A lei permite que as partes possam escolher um árbitro para solucionar litígios sobre direitos patrimoniais, sendo que o laudo arbitral resultante do acordo não precisa ser homologado por autoridade judicial.

O recurso é o caso piloto (leading case) sobre a matéria. Trata-se de uma ação movida a partir de 1995. A empresa, de origem estrangeira, pretendia homologar um laudo de sentença arbitral dada na Espanha, para que tivesse efeitos no Brasil. A princípio, o pedido havia sido indeferido. Entretanto, em 1996, foi promulgada a Lei 9.307, que dispensaria a homologação desse laudo na justiça do país de origem. Durante o julgamento do recurso, o ministro Moreira Alves levantou a questão da constitucionalidade da nova lei.

Apesar de todos os ministros terem votado pelo deferimento do recurso, no sentido de homologar o laudo arbitral espanhol no Brasil, houve discordância quanto ao incidente de inconstitucionalidade.

Sepúlveda Pertence, o relator do recurso, bem como Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves entenderam que a lei de arbitragem, em alguns de seus dispositivos, dificulta o acesso ao Judiciário, direito fundamental previsto pelo artigo quinto, inciso XXXV, da Constituição Federal.

A corrente vencedora, por outro lado, considera um grande avanço a lei e não vê nenhuma ofensa à Carta Magna. O ministro Carlos Velloso, em seu voto, salientou que se trata de direitos patrimoniais e, portanto, disponíveis. Segundo ele, as partes têm a faculdade de renunciar a seu direito de recorrer à Justiça. "O inciso XXXV representa um direito à ação, e não um dever."

O presidente do tribunal, ministro Marco Aurélio, após o término do julgamento, comentou a decisão dizendo esperar que seja dada confiança ao instituto da arbitragem e, a exemplo do que ocorreu em outros países, que essa prática "pegue no Brasil também". Segundo ele, presume-se uma atuação de boa-fé por parte dos árbitros, que devem ser credenciados para tanto.

A Lei de Arbitragem está em vigência desde a data de sua publicação.

Notícia republicada por equívoco na redação anterior

Revista Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2001, 19h04

 

O Código de Processo Civil de 2015, fortemente influenciado pela visão econômica do Direito, segundo a leitura da famosa Escola de Chicago, facilitou – diga-se, incentivou – o uso da arbitragem. A esse respeito Sergio Oliveira de Souza[17]comenta:

“O novo Código do Processo Civil em seu art. 3º, institui a Arbitragem como Jurisdição, permitindo a Arbitragem na forma da lei, no artigo 42º estabelece que “As causas cíveis serão processadas e decididas pelo órgão jurisdicional nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral, na forma da lei”, desta forma o novo CPC confirma a Arbitragem como um Instituto Jurisdicional reconhecido, garantido o direito das partes a optarem pela Jurisdição Arbitral, neste momento inclui-se no princípio da inafastabilidade de jurisdição, desta forma, coloca-se um fim na teoria de Sentença Arbitral ser Inconstitucional e a falta de reconhecimento como jurisdição, pois, outrora houve muitas discussões a respeito da legitimidade, validade, legalidade e aplicação da sentença Arbitral em caso concreto, sem dúvidas, estas mudanças trarão muitos benefícios para as partes que optarem pela Convenção de Arbitragem.”

 

Dúvida não há sobre a possibilidade do uso da arbitragem e da sua conveniência, incentivada pelo Estado, embora ainda seja algo em que os jurisdicionados não confiam plenamente.  Muito menos dúvida se tem sobre a constitucionalidade da lei, desde que observados os requisitos formais e substanciais de sua admissibilidade.

Além da matéria (somente direitos patrimoniais disponíveis podem ser alvos de procedimentos arbitrais), é imperiosa a voluntariedade. Para se falar em arbitragem é imprescindível verificar-se a livre e desimpedida vontade das partes, sem cuja autonomia não existe eleição, e sim imposição.

A arbitragem não pode de modo algum prejudicar o direito de acesso à jurisdição, que é garantia constitucional fundamental (art. 5º, XXXV).[18], até porque não existe renúncia tácita ao pleno exercício de um direito deste porte.

Como foi noticiado pelo ConJur, “o ministro Carlos Velloso, em seu voto, salientou que se trata de direitos patrimoniais e, portanto, disponíveis. Segundo ele, as partes têm a faculdade de renunciar a seu direito de recorrer à Justiça. "O inciso XXXV representa um direito à ação, e não um dever."

               Em se tratando de faculdade, não de dever, a voluntariedade é pressuposto de validade. À falta de um desejo claro de querer participar da arbitragem, a parte interessada poderá perfeitamente se opor à sua realização, invocando, a um só tempo, a ilegalidade e a inconstitucionalidade, para não dizer imoralidade, de eventual imposição. Diante disso, indaga-se: pode existir em contrato de adesão cláusula de arbitragem?

               Pode, desde que negociada individualmente. O compromisso arbitral não pode ser uma cláusula geral como as outras, mas tem que ser negociada caso a caso.      Não se trata apenas de interpretação sistêmica do tema, embora absolutamente correta, mas do que dispõe a própria Lei de Arbitragem do Brasil. Muito oportuna e didática a exposição de Vinícius Ubertti Pellizzaro[19]:

Leia-se o que prevê o artigo 4º, § 2º, da Lei de Arbitragem (9.307/96) - LArb, sobre sua aplicação nos contratos de adesão:

“§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”

Apenas a título de registro, é de se destacar que a cláusula compromissória é espécie, onde também é espécie o compromisso arbitral, do gênero “Convenção de Arbitragem”. A distinção diz respeito ao momento em que a convenção de arbitragem é estipulada; se contratualmente prevista, antes de um litígio judicial ou extrajudicial (antes da contenda surgir) é cláusula compromissória; se for posterior, quando as partes já estiverem com litígio iniciado, tanto judicial, quanto extrajudicial, é compromisso arbitral. Na legislação a distinção encontra guarida nos artigos 4º e 9º, da norma especial.

Nos termos observados do citado § 2º, do artigo 4º, da LArb, que recentemente sofreu grande alteração com a assunção da Lei nº 13.129, de 2015, o contrato de adesão conta com previsão específica, haja vista a presunção de desigualdade existente entre o policitante (ofertante) e o oblato (aderente), especialmente em razão da vulnerabilidade deste último.

A disposição legal em voga exige que para uma cláusula compromissória ter validade em um contrato de adesão, imprescindivelmente será necessário atender aos pressupostos previstos na norma – a subscrição de um documento anexo ao contrato (específico) ou, se no corpo do instrumento, a assinatura (ou rubrica) específica na cláusula, que deverá estar em negrito. Nada impede que mesmo não atendendo os requisitos referidos o oblato opte por instituir a arbitragem após o surgimento da contenda entre os contraentes, o que validaria, por isso mesmo, a cláusula em questão.

A clareza e a transparência das cláusulas que mitiguem (ou alterem substancialmente) o direito do oblato é matéria já há muito debatida em nossos tribunais, sendo na maioria das vezes atrelada ao direito consumerista, onde rotineiramente são subscritos contratos de adesão, sendo a vulnerabilidade presumida pelo Código de Direitos do Consumidor (lei nº 8.078 de 1990).

Em síntese: nos contratos civis e empresariais de adesão, a cláusula de arbitragem ou a de compromisso arbitral pode existir, desde que negociada individualmente com o aderente, de alguma forma apartada do conjunto geral de cláusulas.

Em outras palavras, há possibilidade desse tipo de cláusula, mas é fundamental a aquiescência prévia, formal, substancial, expressa do aderente, sendo que esta aquiescência não é aquela genérica que dá ao aderir ao pacote contratual, mas verdadeiramente diferenciada.

Sem isso, torna-se a cláusula nula de pleno direito, manifestamente abusiva, segundo a própria lex. No caso de um contrato de adesão de consumo, o rigor, por razões óbvias, é ainda maior. Novamente tomo como minhas as palavras de Pellizzaro[20]:

No âmbito do CDC encontra-se a previsão expressa coibindo a convenção de arbitragem como regra compulsória estipulada por uma das partes. Veja o que dispõe o artigo 51, VII:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;”

 

Em verdade, a disposição supra, se lida à revelia da perspectiva hermenêutica, parece não ter necessidade, uma vez que a cláusula compromissória para os contratos de adesão presume que ambas as partes contraentes estejam de acordo, não sendo permitido pela normatização vigente a estipulação unilateral de arbitragem – artigo 4º, § 2º, da LArb.

No entanto, comumente ocorre nos contratos de seguro, o artigo 51 traz uma proteção maior ao consumidor subscritor de um contrato de adesão, do qual não leu, não entendeu, não sabe do que se trata, mas mesmo assim o assinou ante a identificação de sua vulnerabilidade.

Nesta senda, a ‘compulsoriedade’ é presumida pela desigualdade existente entre os contraentes, não bastando que o Oblato assine o instrumento para que reconheça que o leu, o entendeu e sabia do que tratava aquela previsão.

A problemática doutrinária e jurisprudencial exsurge ao se questionar se as premissas dispostas no artigo 4º, § 2º, da LArb, seriam suficientes a retirar a compulsoriedade da utilização da arbitragem, ou se mesmo atendendo-se aqueles requisitos ainda assim o consumidor estaria em situação de desigualdade e vulnerabilidade.

 

Tanto nos contratos de consumo, como nos civis e empresariais, a forma adesiva de contratação exige destaque ao clausulado arbitral e expressa aquiescência, concordância em um grau maior, expresso, transparente, do que aquele que é empregado na mera adesão.

Isso porque, nunca é demais repetir, não existe renúncia tácita de jurisdição, não se tolera esvaziamento de direito e garantia constitucional fundamental.

É certo que o Código de Processo Civil de 2015 facilitou o uso da arbitragem e referendou a cláusula contratual de eleição exclusiva de foro estrangeiro nos contratos internacionais[21], mas não é menos certo que tanto uma como outra têm que ser voluntariamente decididas por todas as partes contratantes.

Sem a negociação prévia e expressa, não há validade e eficácia, senão nulidade, nas cláusulas que determinam arbitragem ou foro exclusivo estrangeiro.

O legislador não escolheu à toa a palavra eleição. Elege-se mútua e desimpedidamente a arbitragem, escolhe-se conjuntamente o foro estrangeiro, mas jamais se impõem um e/ou outro. A imposição ofende a ordem jurídica brasileira, desrespeita direitos e garantias fundamentais, causa prejuízos intoleráveis e compromete a saúde moral das relações contratuais.

Em contratos de adesão tudo isso é ainda mais verdadeiro e perceptível, e daí se exige controle mais rigoroso, o peso da nulidade ao clausulado que impõe ao aderente procedimentos e foros de solução de litígios que não sejam por expressamente desejados, seja ele pessoa natural, consumidor, sejam pessoa jurídica, ainda que empresa de grande porte, usuária de produto ou de serviço.

 

  1. Do caso particular do contrato internacional de transporte de carga

 

Há uma situação bem interessante e que interessa ao Direito de Transportes, ao Direito Marítimo, ao Direito de Seguros, ao Direito Contratual e ao Direito Processual Civil.

Fala-se dos litígios envolvendo donos de cargas ou seus seguradores sub-rogados e os transportadores marítimos de cargas. Fala-se ainda do contrato internacional de transporte marítimo de carga.

Em verdade, não deveria existir polêmica, dada a inegável abusividade da cláusula de imposição de arbitragem e/ou de foro estrangeiro, mas a partir de interpretação equivocada do novo sistema processual em vigor, a confusão tem protagonizado alguns litígios judiciais.

Vale a pena tratar dessa confusão, que é aparente, de maneira especialmente atenciosa.

Sirvo-me em grande parte de argumentos que já usei em ensaios e artigos anteriores, a fim de enfatizar ser nula de pleno direito a cláusula de imposição de foro estrangeiro e/ou de arbitragem no contrato de adesão de transporte de carga sem que haja a negociação individualizada pela parte aderente.

O novo Código Civil introduziu mudanças significativas no sistema processual brasileiro, exigindo um novo olhar por parte dos protagonistas do Direito.

Algumas dessas mudanças impactam diretamente no Direito Marítimo.

Pode-se dizer que os impactos são, em princípio, positivos.

Todavia, reclamam especial atenção para que essa visão otimista não seja manchada por erros interpretativos.

Se a boa hermenêutica se consubstanciar e não abandonar o exercício cotidiano do Direito, as mudanças somente gerarão coisas boas; todavia, eventuais descuidos serão potencialmente lesivos e prejudiciais não somente aos atores do Direito Marítimo, mas à própria economia do país e ao conceito de Justiça.

Um dos temas que mais reclamará a boa hermenêutica e o mergulho constante na tradição jurídica já consolidada pela jurisprudência é o que trata da cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional.

Uma novidade normativa é verdade, mas que se conecta intimamente à tradição já consolidada do Direito brasileiro no que tange ao repúdio às cláusulas contratuais abusivas presentes nos contratos de adesão.

Com efeito, embora a regra nova reconheça a validade e a eficácia da cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional, ela não abre mão da regularidade estrita dessa cláusula, tanto formal, como substancialmente, de tal modo que a regra processual não será hábil se a cláusula contratual não refletir negócio jurídico perfeito.

A cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional só será efetivamente reconhecida e aplicada se o seu conteúdo corresponder perfeitamente aos pressupostos de validade do negócio jurídico, bem como for imantada da inafastável voluntariedade.

Qualquer ofensa ou mesmo mitigação do princípio da autonomia da vontade tornará a referida cláusula inaplicável perante à nova ordem jurídico-processual.

Dentro desse contexto, portanto, tem-se, por exemplo, que nenhuma cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional imposta unilateralmente em contrato de adesão será objeto da nova regra processual.

Ora, considerando que todo contrato internacional de transporte marítimo de carga é um contrato de adesão, formatado exclusivamente pelo transportador, sem qualquer espécie de anuência do consignatário da carga, muito menos do seu segurador, não há que se falar no reconhecimento da cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro nele presente, até porque há muito a jurisprudência rotulou esse tipo de disposição contratual manifestamente abusiva e ilegal.

Outra coisa que não pode ser ignorada é a primazia da Justiça, sempre que reclamada sua participação, conforme garantia fundamental constitucional expressa.

Logo, mesmo cláusula eventualmente válida, plenamente voluntária, poderá ser deixada de lado quando houver concreta lesão ou ameaça de lesão com o afastamento do acesso à jurisdição.

Vê-se que o tema é, paradoxalmente, simples e complexo, palco para dúvidas práticas e concretas, as quais reclamam estudos mais detidos.

O artigo 25, “caput”, do novo Código de Processo Civil, em vigor desde 18 de março de 2016, ao tratar dos limites da jurisdição nacional, dispõe que: “Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação”.

Antes de ser iniciado o estudo da cláusula de eleição de foro e do eventual afastamento ou não da jurisdição nacional em favor da estrangeira, faz-se necessário entender o objeto de sua incidência, ou seja, o contrato internacional.

O contrato internacional é aquele que, de algum modo, promove a circulação de riquezas entre as nações, mesmo que por meio de atores puramente privados, envolvendo o fluxo regular, contínuo ou não, de bens, de capitais ou de serviços, tudo segundo o artigo 2º do Decreto-Lei nº 857/1969.

Sendo o contrato internacional, perfeitamente lícita, a priori, a eleição de foro exclusivo estrangeiro, desde que respeitada a soberania da jurisdição nacionais (casos com reserva legal) e o próprio ordenamento jurídico brasileiro como um todo. O artigo não possui correspondência no Código de Processo Civil de 1973 e constitui inovação da ordem jurídica processual brasileira.

Num primeiro momento, é digno de elogios.

Mas é preciso muito cuidado com a aplicação do artigo referido, pois ele não é cabível para todo e qualquer contrato.

Nos contratos de adesão e, em especial, nos de transporte marítimo de carga, não há que se falar na validade e na eficácia da cláusula de eleição de foro estrangeiro exclusivo, muito menos na cláusula compromissória de arbitragem, se forem descumpridos, como descumpridos são, os requisitos formais e substanciais de admissibilidade, basicamente resumidos na negociação individualizada.

A autonomia da vontade é imprescindível para o aperfeiçoamento do negócio jurídico e, nunca é demais repetir, condição inafastável para a validade e a eficácia da cláusula em estudo, sob pena de abusividade e grave prejuízo.

Isso porque a validade e a eficácia da norma legal não são passíveis de discussão, mas as da cláusula que forma sua hipótese de incidência, sim.

Para que a regra do artigo 25, “caput”, possa se subsumir a um dado negócio jurídico, há de se constatar a absoluta legalidade deste. Rigorosamente é o que se diz e até com mais razão da cláusula de arbitragem (ou de compromisso arbitral), segundo não só a lei processual, mas também conforme a própria Lei de Arbitragem brasileira, como antes exposto.

Assim, a cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro somente será alvo de pleno alcance da regra do artigo 25 se a sua forma e o seu conteúdo se ajustarem perfeitamente ao ordenamento jurídico brasileiro, sem qualquer vício ou abusividade.

O contrato internacional de transporte marítimo de carga é típico contrato de adesão, no qual uma das partes impõe sua vontade, por meio de cláusulas impressas, ao passo que a outra é obrigada a aceitar tais imposições, sob pena de não efetuar o transporte desejado.

Logo, ele não se ajusta à nova estampa legal processual.

E não se ajusta porque é: 1) contrato de adesão; 2) contrato com vício da plena autonomia da vontade de uma das partes da relação jurídica; 3) contrato com base em normas e convenções internacionais não reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro; 2) contrato com cláusulas manifestamente abusivas; 5) contrato sem simetria entre as partes.

No conhecimento marítimo de transporte, o instrumento do contrato internacional de transporte marítimo de carga, a cláusula de eleição de foro não é aquela que merece a chancela da cabeça do artigo 25 do novo Código de Processo Civil, mas a que abraça o conceito de cláusula hardship.

Exatamente por isso que a jurisprudência nunca foi de reconhecer as alegações feitas em lides forenses pelos transportadores marítimos no sentido de que as referidas cláusulas sejam reconhecidas e aplicáveis aos casos concretos. Muito pelo contrário: os tribunais brasileiros sempre enxergaram nessas cláusulas formas abusivas e incompatíveis com o Direito brasileiro, sobretudo no que tange a soberania da jurisdição nacional. Com efeito, sempre se posicionaram pela invalidade e ineficácia desse tipo de cláusula.

Trata-se, aliás, de verdadeira tradição da jurisprudência brasileira e de longa data que nos contratos de adesão, a cláusula de eleição do foro (ou a de arbitragem) tem declarada a nulidade por causa de sua grave condição abusiva

Abaixo, importante enunciando de Súmula do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo:

Súmula nº 14 do antigo 1º TACivSP, hoje TJSP: “Contrato de transporte. Seguradora subrogada – A cláusula de eleição de foro constante do contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz em relação à seguradora sub-rogada.”

 

E, no mesmo sentido, os julgados emblemáticos, presentes na RT 623/90 e RT 623/90, respectivamente:

“A cláusula de eleição de foro constante de contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz quanto à seguradora sub-rogada no crédito da remetente, pois não está a seguradora na posição contratual da remetente segurada, detendo apenas o crédito desta.”  (UJ 356.311 – TP – j. 7.5.87 – rel. Juiz Araújo Cintra)

“Os foros especiais e o do domicílio do réu são concorrentes, por conseguinte, concorrentes este último e o de eleição. E diz-se que a competência é concorrente quando simultaneamente vários foros forem competentes, podendo haver a escolha de um autor, em detrimento dos demais (...)”

“Proposta a ação, dá-se por escolhido o foro, pouco importando que o réu mude seu domicílio ou ocorra outra alteração de fato, pois esse é o momento da perpetuatio jurisdicitionis, que em nosso Direito não é simultâneo ao da prevenção, pela qual se fixa a competência do juízo, cristalizando-a (art. 86 e 219 do CPC).”

“O foro do domicílio geral; e concorrente com os demais, por não trazer à ação nele ajuizada prejuízo ao réu, que melhor poderá defender-se, devendo-se ressaltar haver normas expressas – que são consideradas de caráter geral – quanto ao foro de eleição (arts. 95, Segunda parte, do CPC e 846, parágrafo único, e 950, parágrafo único, do CC).”

 

Como dito antes, os julgados acima foram prolatados à luz do antigo Código de Processo Civil, mas cabem como luva à mão ao presente Código, porque, em verdade, nada mudou com a nova ordem processual, uma vez que o artigo 25, caput, só produzirá os efeitos jurídicos pretendidos pelo legislador se a cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no contrato internacional respeitar todos os elementos legais já expostos, notadamente a voluntariedade.

Aliás, destaca-se que os julgados destacados são representativos da orientação jurisprudencial, praticamente pacífica, no sentido de não ser reconhecida a cláusula contratual de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional de adesão (como é o contrato internacional de transporte marítimo de carga)

O Direito processual civil mudou, mas o contrato internacional de transporte marítimo de carga, não; sendo assim, tudo o que valia antes, continua valendo hoje e continuará a valer doravante, sem qualquer alteração significativa.

Em síntese, é possível afirmar que uma cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro somente será válida e eficaz se: 1) for respeitado o princípio da autonomia da vontade; 2) não for inserida em contrato de adesão; 3) respeitar todos os pressupostos essenciais do negócio jurídico perfeito; 4) carecer de qualquer ilicitude, ainda que apenas segundo a ordem moral; 5) não for abusiva.

Diante dos itens enumerados e destacados, tem-se como certo que o contrato internacional de transporte marítimo de carga – por ser típico contrato de adesão – não pode ver como válida e eficaz sua cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro, porque eivada do vício da voluntariedade e a reboque rotulada – conforme amplo entendimento jurisprudencial – como cláusula abusiva, nula de pleno direito.

Convém muito insistir que o tema sempre recebeu tratamento especial pelo Poder Judiciário brasileiro, antes mesmo da incidência do artigo 25 do novo Código de Processo Civil, diante da insistência do mercado dos transportadores marítimos em alegar a validade de uma cláusula imposta unilateralmente, de forma abusiva, em contrato de adesão, com a resposta jurisprudencial pela sua invalidade e sua ineficácia, senão o reconhecimento de nulidade.

Destaca-se, pois, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Agravo Regimental interposto no Agravo de Instrumento nº. 459.668-RJ (2002/0076056-3), julgado em 16 de dezembro de 2002, em que figurou como relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

“EMENTA: Agravo regimental. Recurso especial não admitido. Contrato. Transporte marítimo. Competência. Cláusula de eleição de foro estrangeiro.

1. O Acórdão recorrido, de forma expressa, afirmou que não enfrentaria o mérito da questão da sub-rogação. Sendo assim, a ausência de prequestionamento do tema contido no artigo 988 do Código Civil, em seu mérito, revela-se evidente, o que impede o seguimento do especial quanto ao ponto.

2. Dispôs o Acórdão recorrido que "uma cláusula de renúncia de direitos com tão graves consequências como a cláusula de eleição de foro estrangeiro não pode reputar-se aceita tacitamente, sem que haja qualquer evidência, por mínima que seja, de que o consentimento da parte foi específico e resultou de uma negociação consciente" (fls. 43). Esse fundamento do Acórdão, suficiente para sua manutenção, não sofreu impugnação, quer com base na alínea a), quer na alínea c) do permissivo constitucional. Os paradigmas versam apenas sobre a validade da cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, sem, contudo, tratar da situação específica verificada na hipótese destes autos, cláusula de eleição de foro estrangeiro, ofensa à ordem pública e à jurisdição brasileira, não havendo, portanto, a necessária identidade fática entre os julgados.

3. Agravo regimental desprovido.

AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 459.668 - RJ (2002/0076056-3)”

 

A situação se torna ainda mais complexa quando se leva em consideração a realidade prática do Direito Marítimo no âmbito judicial.

A maior parte das ações envolvendo os contratos internacionais de transportes marítimos de cargas é demanda por seguradoras, não pelos consignatários de cargas, segurados.

A dinâmica é mais ou menos a seguinte: o consignatário de carga (às vezes, o embarcador e exportador) contrata seguro do ramo de transporte internacional para cobrir os riscos de uma viagem marítimo. Diante de um sinistro, falta ou avaria, parcial ou total da carga, o segurador indeniza o segurado, proprietário da carga sinistrada, e se sub-roga na pretensão original deste contra o transportador marítimo que não cumpriu fielmente a obrigação contratual de resultado. Por conta da sub-rogação e o direito de regresso, o segurador veste-se com o manto da legitimidade ativa ad causam, e é ele quem deflagra a disputa judicial mediante provocação formal do Estado-juiz, não podendo esse segurador abraçar um ônus de uma relação contratual da qual não foi parte.

A cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro no corpo do conhecimento marítimo é considerada abusiva, portanto, nula, relativamente ao segurado, embarcador e/ou consignatário da carga; e, em sendo assim, é igualmente nula relativamente ao segurador. Se o é para o mais, também o é para o menos.

Em outras palavras: não pode o segurador legalmente sub-rogado na pretensão do segurado ser obrigado a obedecer à disposição de um negócio jurídico do qual não foi parte em sentido estrito, muito menos com ele anuiu.

A ilegalidade, abusividade, flagrante em relação ao aderente do contrato, revela-se ainda mais perniciosa e indevida ao segurador.

E nem se diga que a sub-rogação é via de dupla mão. A sub-rogação transmite legal e legitimamente direitos em seu aspecto material, mas não todos os deveres, sobretudo aqueles chancelados com os signos dos vícios, dos defeitos jurídicos e das ilicitudes.

Ora, em se tratando, num dado litígio forense, de autora seguradora legalmente sub-rogada na pretensão do segurado (embarcador ou consignatário da carga), a eventual aplicação da cláusula se revelaria ainda mais errada, daí a precisa e justa resposta jurisprudência, uniforme e muito consistente.

Seja para a parte efetivamente aderente do conhecimento marítimo (contrato internacional de transporte de carga), seja com mais razão ao segurador sub-rogado na pretensão do mesmo aderente, segurado de seguro de transporte internacional de carga, não há que se falar em subsunção à cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro, porque em flagrante descompasso com a ordem jurídica vigente, uma vez que inserida unilateralmente em contrato de adesão e marcada com a estampa incurável da abusividade, isto é, ilegalidade. Logo, impossível submeter essa cláusula ao comando da cabeça do art. 25 do Código de Processo Civil, assim como aos das normas específicas que tratam da arbitragem, cujo vício é ainda maior.[22]

Importante dizer que o direito de regresso do segurador não deriva do contrato de transporte, mas da sub-rogação, razão pela qual é ainda mais sem sentido lhe impor o ônus contratual, a despeito do reconhecimento ou não da sua abusividade.

Curioso que, além de tudo o que foi disposto neste trabalho, tem-se que o próprio art. 25 contém mecanismos de calibragem contra possíveis injustiças, negando vigência aos abusos.

Fala-se, pois, da regra do § 2º, cuja dicção é a seguinte: “Aplica-se à hipótese do caput o art. 63, §§ 1º a 4º.”.

O § 3º diz expressamente: “Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo de foro de domicílio do réu.”.

Ora, a mesma norma que autoriza o reconhecimento da cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional faz remissão a outra norma, que apresenta antídoto contra a cláusula que se mostrar abusiva, incompatível com a ordem jurídica.

Reconhecida a natureza abusiva, o juiz poderá, mesmo sem ser provocado, declarar sua nulidade e remeter os autos do Processo ao juízo de foro de domicílio do réu, lembrando que, em relação ao domicílio do transportador marítimo de carga, estrangeiro, tem-se como domicílio o lugar onde ele for representado por agente marítimo, mandatário comercial, no Brasil.

A importância dessa regra é imensa, uma vez que enfatiza, com o peso da legalidade, a impossibilidade de que essa cláusula sobreviva enquanto for abusiva, ilegal, despida de elementos vitais como a plena voluntariedade.

Mas, no caso específico do Direito Marítimo, ou melhor, do contrato internacional de transporte marítimo de carga, é o autor a parte imediatamente interessada no reconhecimento da abusividade clausular, pois que disposta de maneira adesiva pelo transportador, o réu de todo e qualquer litígio fundado no descumprimento da obrigação de resultado encerrada no mesmo contrato. Não obstante, a observação, com a inversão de polos, cabe como anel ao dedo e merece destaque em vista do peso da seguinte afirmação: “Constatada essa abusividade, a ineficiência da cláusula poderá ser declarada de ofício pelo juiz (...)”.

Com a regra em destaque, existe a certeza, também por lei, que a abusividade, muito comum em sede de contrato de adesão e ainda mais no corpo de todo e qualquer contrato internacional de transporte marítimo de carga, não tem cabimento no sistema legal brasileiro e não permite a incidência do artigo 25 do novo Código de Processo Civil.

Para terminar, é possível afirmar, de forma muito saudável e positiva, a despeito de certa ambiguidade da afirmação literária, que, apesar da aparência de mudança, absolutamente nada mudou, sendo de se invocar a memória do famoso romance de Tomasi di Lampedusa, “Il Gattopardo” e a antológica frase de Trancredi: “(...) se nós queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude (...)”.

O artigo 25 inovou, mudou, trouxe ao Direito brasileiro como um todo coisas boas, mas em nada mexeu, tampouco mexerá, nas lides envolvendo o Direito Marítimo, essencialmente informadas por relações contratuais internacionais, porque a jurisprudência, com excelência invulgar, supriu lacunas legais e sempre promoveu a Justiça, o melhor Direito e o bem comum e geral.

Manter as coisas como estão: eis o verdadeiro significado da segurança jurídica e da consagração da Justiça.

Por isso as cláusulas que impõem a arbitragem ou o foro estrangeiro nos contratos internacionais de transporte marítimo de carga são, a rigor, nulas de pleno direito, abusivas, se antes não houve negociação individualizada do seu conteúdo. Nulas porque abusivas, nulas porque inconstitucionais, nulas porque ofensivas à ordem moral.

Tendo ainda em conta a situação particular do segurador sub-rogado como protagonista da maior parte dos litígios, muito aproveita tratá-lo de modo diferenciado.

 

  1. O segurador sub-rogado não se submete aos termos do Bill of Lading

 

Que se afirme desde logo: o segurador sub-rogado não se submete à arbitragem imposta por meio do bill of lading (conhecimento de embarque).

E por quê?

Porque o exercício de direito próprio nascido da lei e do contrato de seguro que em nada se confunde com o contrato de transporte, do qual sequer é parte.

Há muito tempo defendo que, no Bill of Lading (B/L), a cláusula que impõe a arbitragem, normalmente no exterior, é abusiva, portanto, ilegal. Todo o mundo sabe que a voluntariedade é pressuposto de validade do compromisso arbitral. Mais do que pressuposto de validade, a voluntariedade é, como já se disse muitas vezes, imprescindível para a existência da arbitragem. Ao contrário da jurisdição – que se impõe –, a arbitragem tem que ser desejada pelas partes.

Por isso afirmo que a cláusula presente neste que é originalmente um título de crédito, e que faz as vezes de evidência do contrato de transporte internacional marítimo de carga, não se subsome ao art. 485, VII, do Código de Processo Civil (que trata da convenção de arbitragem como causa de extinção do Processo).

A despeito da condição do dono da carga (se pessoa natural ou jurídica e, se jurídica, de pequeno, grande ou médio porte), haverá sempre o domínio do armador na relação jurídica. O transporte se faz necessário, o modo de contratação é adesivo e ao dono da carga não compete qualquer alternativa senão aderir ao que lhe impõem os armadores, até porque todos estes apresentam basicamente o mesmo clausulado, com diferenças mínimas.

Daí a necessidade de a Justiça dosar corretamente os aspectos metajurídicos que influenciam nos aspectos jurídicos quando em situações de crise.

A situação se agrava, gosto muito de dizer, quando em disputa os legítimos direitos e interesses do segurador sub-rogado.

Normalmente, o dono da carga dispõe de um seguro de transporte. Havido o sinistro, comprovado e quantificado o dano, o segurador o indeniza e se sub-roga em seus direitos e ações, na forma do art. 786 do Código Civil.  Uma vez sub-rogado, o segurador tem o direito de buscar do causador do dano o devido reembolso.

Mais do que um direito, aliás, a busca do ressarcimento em regresso é um dever, um ato de lealdade do segurador ao colégio de segurados, razão pela qual se reveste de inegável interesse social.

Fala-se em interesse social porque o êxito do ressarcimento impacta positivamente na precificação do seguro, ao tempo em que obriga o causador do dano a responder por sua conduta.

Não fossem a sub-rogação e o ressarcimento, o causador do dano se veria injustamente desonerado de responder pelo dano, por causa da previdência do segurado, que pagou pela proteção, pela cobertura.

Por isso, o ressarcimento em regresso mediante sub-rogação e especialmente protegido pela lei.

Essa proteção me autoriza afirmar que, mesmo que fosse eficaz em relação ao dono da carga (segurado) a cláusula arbitral presente no bill of lading, na tal nota promissória do mar, jamais o seria para o segurador sub-rogado, por força do próprio art. 786, §2º do Código Civil que determina a ineficácia de qualquer ato, mesmo válido, prejudicial ao ressarcimento.

Vale conferir decisão central do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ilustre Ministro Massami Uyeda, que ainda é, em todos os tribunais do país, o julgado mais citado da Corte a propósito deste mesmo assunto:

 “RECURSO ESPECIAL - CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO - AÇÃO DE REGRESSO - SUB-ROGAÇÃO - CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DO FORO MATÉRIA PROCESSUAL - INOPONIBILIDADE AO SUB-ROGADO - AUSÊNCIA DE INSURGÊNCIA EM RELAÇÃO A TODOS OS FUNDAMENTOS DO V. ACÓRDÃO RECORRIDO - INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DO ENUNCIADO N. 283 DA SÚMULA/STF - RECURSO NÃO CONHECIDO. I - O instituto da sub-rogação transfere o crédito apenas com suas características de direito material. A cláusula de eleição do foro estabelecida no contrato entre segurado e transportador não opera efeitos com relação ao agente segurador sub-rogado. II - Acórdão assentado em mais de um fundamento, sem que todos tenham sido objeto de impugnação. Aplicação, por analogia, da Súmula n. 283/STF. III - Recurso especial não conhecido”. (RESp 1038607/SP - Relator Ministro MASSAMI UYEDA - TERCEIRA TURMA, j. 20/05/2008, DJe 05/08/2008).

 

A proteção ao ressarcimento nascido da sub-rogação – justamente por conta de sua invulgar dimensão social – é anterior ao atual Código Civil, tanto que sumulado pelo Supremo Tribunal Federal.

Há décadas que vigora no ordenamento jurídico brasileiro a Súmula 188/STF que diz: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.”

Logo, fere a tradição jurídica brasileira, porque antijurídico, qualquer argumento que objetive o esvaziamento da dignidade da ação regressiva do segurador sub-rogado contra o causador do dano.

Com embargo possível às opiniões em sentido contrário, parece-me claro que a imposição de procedimento arbitral no exterior diminui os direitos previstos no art. 786 e relembrados na Súmula 188 do STF, causando prejuízo ao segurador brasileiro.

Se parte do conteúdo clausular do Bill of Lading é abusivo, ilegal e inconstitucional ao aderente, dono da carga e segurado, com mais razão o é ao segurador sub-rogado, que sequer é parte do negócio jurídico de transporte.

Repita-se por necessário: o segurador não é parte do negócio de transporte, não possui vínculo jurídico prévio com o transportador, de tal forma que, válidos ou inválidos, abusivos ou não, os termos da contratação não lhe são oponíveis.

É nada razoável, para dizer o mínimo, exigir de quem não é parte de um negócio jurídico, a submissão aos seus dispositivos. Este tipo de submissão, se aplicada, ofenderá não só a lei, mas princípios importantes do Direito: razoabilidade, proporcionalidade, equidade, isonomia, além do bom senso, tanto é que existem, para afastar tais disposições, diversos julgados importantes no Tribunal de Justiça de São Paulo, como este, de relatoria da Nobre Desembargadora Lígia Bisogni:

“COMPETÊNCIA Cláusula de eleição de foro estrangeiro não oponível em ação fundada em sub-rogação de seguradora Competência concorrente entre o domicílio da sede da ré pessoa jurídica (CPC, art. 53, inc. III, "a"), ou do local do fato (CPC, art. 53, inc. IV, "a") Possibilidade de escolha pela autora Precedentes Preliminar rejeitada.” (TJ-SP, Apel. 1033752-13.2018.8.26.0002, 14ª Câmara de Direito Privado, j. 26.06.19)

 

No exercício do ressarcimento em regresso contra o armador, o direito do segurador sub-rogado não se funda no inadimplemento do contrato de transporte, mas na reparação civil do causador do dano. Em outras palavras: não há nada de Direito Marítimo no pleito, mas de Direito Civil e de Direito do Seguro.

Direito do Seguro, nascido do Direito Civil, é muito mais importante e amplo que o Direito Marítimo e, portanto, o protagonista dos litígios envolvendo danos de transportes.

Nesse sentido ainda recentíssima decisão da 23ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de relatoria do Ilustre Desembargador J.B. Franco de Godoi: “(...) a apelante veio a juízo pleitear direito próprio decorrente do contrato de seguro (fls. 48/63) e não de contrato de transporte marítimo que possui cláusula de compromisso arbitral”.

Declarou ainda o relator do Acórdão: “A sub-rogação da seguradora não é do mesmo direito material que emerge do contrato de transporte marítimo, mas sim do contrato de seguro”.

A decisão colegiada em destaque é de clareza solar, magnífica ao bem expor a diferença entre um direito nascido da lei e do negócio de seguro, e não no do contrato de transporte.

Considero especialmente importante a decisão porque não se limitou a declarar a abusividade da cláusula de arbitragem imposta pelo transportador, mas afirmou que o segurador nada tem a ver com o negócio de transporte; seus direitos são de outra ordem, outra grandeza e qualificação jurídicas.

Um enquadramento correto que se enfronha na seguinte pergunta: se o direito do segurador sub-rogado nasce por conta do contrato de seguro — e principalmente da lei —, e não do de transporte, por qual motivo se pretende que aquele obedeça aos termos deste?

A pergunta contém em si a resposta e evidencia o quão errado é impor ao segurador a arbitragem prevista em um instrumento do qual não figura.

Reconhecer a cláusula de compromisso arbitral (imposta unilateralmente num título de crédito que evidencia um contrato de adesão) é esvaziar a dignidade da sub-rogação, prejudicar o mútuo, impor ônus pesado àquele que não anuiu com sua existência e ferir a garantia constitucional fundamental do acesso à jurisdição que toda vítima de dano (ainda que reflexa) tem.

Ainda sobre o excelente voto do Desembargador J.B. Franco de Godoi, integralmente acolhido por seus pares, convém destacar a seguinte parte, que remete a outras decisões, também com excelentes fundamentos:

“Desse entendimento é que surge o direito da apelante de pleitear o ressarcimento dos prejuízos sofridos!

Neste sentido:

“O Código de Processo Civil reconhece a possibilidade e a validade da arbitragem desde que expressamente observada a forma legal, conforme dispõe o parágrafo 1º do artigo 3º: “É permitida arbitragem na forma da lei”. No caso, a seguradora não aderiu à referida cláusula, de forma que não se seguiu à risca a legislação brasileira no requisito da aceitação da parte sujeitar-se ao juízo arbitral. No caso, a indicação da arbitragem foi feita no contrato de transporte e ainda que a seguradora esteja litigando com fundamento no direito de regresso, sub-rogada nos direitos e ações da segurada, essa cláusula contratual não lhe alcança.” (Apel. nº 1002847-62.2016.8.26.0562 Rel. Des. MIGUEL PETRONI NETO 16ª Câmara de Direito Privado j. 21/08/2 018)

“RESPONSABILIDADE CIVIL. Indenizatória. Ação regressiva decorrente de contrato de seguro. Cláusula arbitral instituída com a segurada e não com as seguradoras. Hipótese em que a resolução de conflitos por arbitragem só obriga as partes contratantes e não terceiros. Aplicação da legislação estrangeira, por esse mesmo motivo, que só poderia ser reconhecida em demanda própria entre aqueles que figuraram no primitivo contrato de prestação de serviços. Extinção do processo inadmissível. Impossibilidade de se negar a incidência da lei nacional. Sub-rogação da seguradora que se limita ao direito à ação processual que teria a segurada, mas não do direito material. Recurso improvido.” (Ag. Inst. nº 0091567 16.2003.8.26.0000 4ª Câmara. Extinto 1º TAC - Des. Rel. PAULO ROBERTO DE SANTANA j. 23.06.2 004)

Assim, de rigor o afastamento da extinção do processo, o qual está em termos para ser julgado, conforme estabelece o art. 1.013, § 3º, I, do Código de Processo Civil.

 

A ementa do Acórdão, aliás, já é uma espécie de pequena catequese de Direito do Seguro e merece, aqui, reprodução, sendo dispensáveis maiores comentários:

”RESPONSABILIDADE CIVIL Indenização – Ação regressiva decorrente de contrato de seguro - Cláusula arbitral instituída com a segurada e não com a seguradora – Hipótese em que a resolução de conflitos por arbitragem só obriga as partes contratantes e não terceiros - Extinção do processo inadmissível - Sub-rogação da seguradora que se limita ao direito processual que teria a segurada, mas não ao direito material - Preliminar rejeitada Recurso provido. CONTRATO Transporte marítimo Ação ajuizada pela seguradora-apelante contra a transportadora-apelada Avarias decorrentes do transporte Pagamento do valor do sinistro pela seguradora-apelante - Inexistência de apresentação, por parte da transportadora, de prova de qualquer excludente de sua responsabilidade Dever da transportadora de pagar o valor sub-rogado, apontado na conclusão da vistoria – Ação procedente Recurso provido.”

 

Espero que a decisão faça escola e que os fundamentos do Acórdão possam contribuir no juízo de outros casos.

O entendimento do ilustre relator é antigo, tanto que reverberado por outros magistrados. O eminente Desembargador e doutrinador de Direito Empresarial Carlos Henrique Abrão cita-o em uma de suas ótimas decisões:

“Inaplicável, vale dizer, a convenção arbitral e previsões arguidas de legislação alienígena, isto porque a empresa estrangeira está sendo demandada por intermédio do representante e parceiro no Brasil para reembolso de indenização paga à segurada, sendo a cláusula de arbitragem instituída com esta, obrigando apenas as partes contratantes, a propósito do entendimento consubstanciado na Apelação Cível nº 0030807-20.2010.8.26.0562, sob relatoria do Desembargador J. B. Franco de Godoi.”

Há muita confusão no ar em virtude de certa decisão do órgão colegiado do Superior Tribunal de Justiça que nada tem a ver com o transporte de cargas e a sub-rogação em geral.

A verdade que salta aos olhos é que o segurador sub-rogado não é obrigado ao procedimento arbitral previsto (imposto) no B/L, às vezes pretensamente incorporado a ele pela charter-party (carta-partida), que diz respeito ao afretamento anterior ao transporte.

Esse é, por exemplo, o entendimento do renomado jurista Ives Gandra da Silva Martins, conforme opinião legal recentemente emitida, bem ao encontro do que sempre defendi:

1) “O segurador sub-rogado não integra o contrato de transporte, desconhece a cláusula de eleição de foro, que só lhe será comunicada, se e quando houver o sinistro por si reparado, gerando, daí, seu direito de regresso. Não lhe pode ser imposta cláusula de eleição de foro que não contou com sua anuência, sob pena de ofensa do direito individual fundamental de acesso à jurisdição“ (fl. 27)

2) “A cláusula de eleição de foro é inválida também com relação ao segurado (tomador do serviço de transporte marítimo internacional de carga) pelos fundamentos supra aduzidos; O segurador sub-roga-se no crédito do segurado, mas não na sua posição jurídica no contrato firmado com o prestado do serviço internacional de transporte marítimo, especialmente no que toca a restrições processuais.” (fl. 27) 

3) “Sim, a cláusula de eleição de foro, nos contratos internacionais de transporte marítimo de carga, é abusiva porque imposta pela parte que detém posição comercialmente privilegiada em relação ao tomador do serviço, o hipossuficiente nessa relação. São poucos os armadores no mundo e atuam em mercado no qual não se pode falar em liberdade de escolha pelo dono da carga. Ademais, impor ao dono da carga foro alienígena é onerar, desproporcionalmente, o direito fundamental de acesso à jurisdição, prejudicando a prestação jurisdicional.” (fl.51)

4) “Todas as considerações do presente trabalho relativas à cláusula de eleição de foro são ainda mais agudas, quando a hipótese versar sobre de compromisso arbitral. A doutrina ressalta “que a filosofia da arbitragem se relaciona exclusivamente com a questão da autonomia da vontade, sendo correto dizer-se que a Lei da Arbitragem teve apenas o propósito de regular uma forma de manifestação da vontade, ...”. Pretender impor procedimento arbitral sem formal, prévia e expressa aceitação é violar o direito fundamental de acesso ao Judiciário e a soberania nacionais.” (fl. 52)

 

E a conclusão do famoso jurisconsulto é de clareza solar:

“Clara está, pois, a invalidade da cláusula de eleição de foro, nos contratos internacionais de transporte marítimo de cargas em face das seguradoras sub-rogadas, uma vez que:

1.    Trata-se de contrato de adesão, sem liberdade na pactuação da cláusula;

2.    O foro adotado nos conhecimentos internacionais de transporte implica não só inconveniente para aquele que precisar demandar judicialmente o armador, mas em verdadeiro impeditivo à jurisdição, afetando esse direito fundamental e, também, a soberania nacional;

3.    O segurador não é parte no contrato de transporte, não anuiu com a cláusula de eleição de foro;

4.    A sub-rogação da seguradora se limita aos aspectos materiais do crédito e não, aos aspectos procedimentais do contrato firmado entre o transportador e o tomador do serviço.” (fl. 36)

 

O famoso constitucionalista não está só nesse poderoso entendimento. Dele comunga a maior banca de processualistas do Brasil, a prestigiada Arruda Alvim, que assim se posicionou em dois magníficos pareceres, os quais, por delicadeza e respeito, não reproduzo neste ensaio porque emitidos em casos específicos, contratados pelos autores das ações; posição de cuja existência dou fiel testemunho.

A melhor doutrina e a jurisprudência dominante apontam a impossibilidade de se obrigar o segurador sub-rogado ao procedimento arbitral imposto mediante o Bill of Lading.

Para lá dos fortes argumentos sobre a natureza abusiva do clausulado – que desobedece a própria lei brasileira de arbitragem –, há algo incontestável: o segurador sub-rogado não busca o ressarcimento pelo inadimplemento da obrigação de transporte, mas do dano que gerou indenização de seguro. Ele não quer o reembolso do transportador marítimo propriamente dito, mas do autor de ato ilícito, qualquer um. Ponto.

Para o segurador sub-rogado, não há diferença entre a pessoa natural que causa um acidente automobilístico, gerando prejuízo ao segurado e o armador que avaria ou extravia carga. Ambos são causadores da danos e prejuízos. A dinâmica da busca do ressarcimento de um é rigorosamente a mesma do outro.

Circunstâncias e perspectiva absolutamente similares, diferenciando-se apenas nas crônicas dos fatos e em alguns poucos elementos de responsabilidade civil.

O importante é respeitar a métrica há muito estabelecida pelo Direito Romano de dar a um exatamente o que é seu, e de não se ofender a preferência incontestável da jurisdição nacional.

 

 

 

Não há como não se lembrar do famoso autor inglês, G.K. Chesterton: “Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde.”. Hoje, diante das reiteradas investidas visando a induzir a erro o Poder Judiciário, penso que esse dia chegou.

E porque chegou ponho fim ao comentário, lembrando uma das primeiras lições que aprendi quando, muitos anos atrás, estudei Direito das Obrigações: o contrato faz lei entre as partes e, a rigor, não produz efeitos erga omnis.

Parece incrível, mas hoje é necessário enfatizar que quem não é parte de um contrato não pode ser obrigado a respeitar suas disposições, especialmente quando estas são manifestamente abusivas, ilegais, e pretendem esvaziar um dos mais importantes institutos do Direito do Seguro, a sub-rogação — que não as incorpora jamais.

 

 

  1. Conclusão

 

 

Embora o texto e a argumentação tenham sido extensos, a conclusão é breve e sumária. E assim é porque, expostos os fundamentos legais e jurídicos da argumentação, não há como concluir de forma diferente do que, aliás, já se fez constar acima e em momentos diferentes.

Ao contrato de adesão se opõem todas as formas de controle necessárias para a extirpação de suas cláusulas gerais daqueles com estampa de abusivas. Cláusula abusiva é a que fere a lógica jurídica, atenta contra a boa-fé objetiva, ignora que o contrato tem função social e que o desequilíbrio entre as partes é insuportável.

Todo contrato, adesivo ou não, de consumo ou não, tem que primar pela assimetria entre as partes, pelo equilíbrio entre seus direitos e obrigações. Todo contrato tem; o de adesão, ainda mais.

No contrato de adesão, os mecanismos de calibragem — por partirem do pressuposto da não negociação individualizada (princípio de la presunción de no negociación) — têm que proteger a parte aderente, que é hipossuficiente por determinação legal, incondicionalmente de sua condição fática.

Consumidor ou não, pessoa natural ou jurídica, o aderente tem que ser especialmente tutelado, a fim de não sofrer lesão por imposição indevida de cláusula abusiva. As cláusulas gerais são admitidas pelo Direito e até mesmo necessárias, importantes para a viabilização de negócios jurídicos em sociedades de massa e de riscos, mas jamais podem se converter em abusivas.

 

 

 

A distância entre a cláusula geral e a abusiva, como mostram bem a experiência cotidiana e a literatura jurídica, é menor do que a entre a sanidade e a loucura. Por esse motivo, à menor evidência de abusividade, a cláusula há de ser declarada nula e de pleno direito.

Essa é a visão geral do assunto.

No plano particular, interessante o que ocorre nos contratos de transporte, especialmente os internacionais marítimos de cargas. Neles, existem cláusulas de imposição de arbitragem e de foro exclusivo estrangeiro.

Essas cláusulas sempre foram consideradas inválidas, ineficazes, inoperantes e nulas. Elas e outras, como a que pretende limitar a responsabilidade do transportador causador de danos, autor de atos ilícitos civis-contratuais.

Por interpretação equivocada de algumas normas do novo Código de Processo Civil, surgiram no cenário jurídico brasileiro poucas, mas já preocupantes decisões, reconhecendo indevidamente sua validade e sua eficácia.

Indevidamente porque a lei processual mudou, mas o contrato de transporte não. Continua a ser de adesão e as cláusulas de que dispõe sobre arbitragem e/ou foro estrangeiro são impostas, não eleitas. Mesmo sem remeter ao sistema de proteção consumerista, a abusividade é escancarada e implica ofensa constitucional, diante da garantia de acesso à jurisdição.

O fato de o aderente ser normalmente pessoa jurídica – no contrato internacional de transporte marítimo de carga – em nada altera a condição abusiva dessas cláusulas. A arbitragem e/ou o foro estrangeiro não são eleitos, não são convencionados, não são livremente aceitos e queridos pelos aderentes, mas impostos unilateralmente pelos armadores (transportadores).

A ausência de negociação individualizada é o grande vício a se declarar. Situação que só se agrava quando a parte litigante não é mais o aderente propriamente dito, mas, por força do contrato de seguro de transporte e da sub-rogação, o segurador.

O direito de regresso do segurador não deriva do inadimplemento do contrato de transporte, mas da lei e do contrato de seguro, da determinação expressa do art. 786 do Código Civil e, diante do sinistro, do pagamento da indenização à vítima do dano. O segurador demanda contra todo causador do dano, não exatamente contra o devedor de obrigação de transporte.

E se o segurador nada tem a ver com o contrato de transporte, é certo dizer que não se submete a qualquer de suas cláusulas, sobretudo uma abusiva, ilegal, inconstitucional, que pretende impedi-lo de acessar a própria Jurisdição, garantia fundamental constitucional.

O desequilíbrio é tão gritante que emprestar validade a esse tipo de cláusula é desprestigiar o Direito como um todo. Desprestigiam-se as normas específicas que controlam a abusividade de cláusulas em contrato de adesão, e ainda mais a teoria geral do Direito, os princípios fundamentais e todos os valores reconhecidos nos últimos quase dois milênios de civilização ocidental, com poderosos ecos na cultura oriental.

 

 

Se fosse possível resumir todo o presente estudo em única sentença, seria esta: opor-se a cláusulas abusivas em contratos de adesão não é senão questão de justiça e de defesa da ordem moral.

 

Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Informações sobre o texto

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