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Da concessão de liminar nos Incidentes de Desconsideração da Personalidade Jurídica

Agenda 18/03/2021 às 14:48

O presente artigo visa analisar a recorrente realidade processual de concessão de liminares para bloqueios e indisponibilidade nos pedidos de redirecionamento das cobranças aos sócios por meio do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Como se sabe, o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), cujo procedimento encontra-se previsto nos artigos 133 a 137 do CPC vigente, veio ao sistema para oportunizar o exercício dos Princípios Constitucionais do Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa, inclusive no âmbito dos executivos fiscais.

Tal mudança de paradigma se deu por conta da pragmática processual tributária. Expliquemos: se o contribuinte é intimado a se manifestar e tem 30 dias para ingressar com uma impugnação administrativa, somado ainda a um recurso hierárquico, logicamente que tal exegese também deve ser aplicada ao responsável tributário. Contudo, parece que quanto ao responsável, habitualmente, nada é observado e tais princípios constitucionais são esquecidos. Desta feita, o IDPJ seria a primeira oportunidade de prova e de exercício dos princípios constitucionais nos casos de redirecionamento. O IDPJ veio ao sistema, justamente, para atenuar a aberração jurídica constituída por redirecionamentos sem a participação do responsável.

A razão para tal exegese é simples. A Jurisprudência1 entende que a exceção de pré-executividade não é veículo processual apto à defesa de redirecionamentos e matérias a respeito de responsabilização tributária, justamente pela necessidade de dilação probatória. Assim, restaria apenas a via dos embargos à execução fiscal e a necessidade de garantia do juízo, mesmo que parcial, para que se pudesse cogitar em efetivo exercício de defesa por parte do responsável tributário.

Desta feita, a aplicação do IDPJ para os executivos fiscais significa, em outros termos, oferecer a primeira oportunidade de se conceder o contraditório ao responsável, nos executivos fiscais, sem a garantia de juízo, tal como já determinado pelo julgamento do STF2. Tal constatação parece privilegiar os princípios e valores maiores da Constituição, especialmente os da dignidade à pessoa humana.

Sob esse aspecto, interessante destacarmos que o §3º do art. 134 estabelece que a “instauração do incidente suspenderá o processo, [...]”, bem como, o art. 135 estabelece que instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será “citado para manifestar-se e requer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze dias).” Esta é a interpretação que mais se coaduna com o CTN, vez que as condutas que acarretam a responsabilização tributária, cuja natureza jurídica é sancionatória, dependem de apuração em procedimento prévio e próprio, já que não estamos diante de responsabilidade objetiva.

A respeito da aplicação do incidente aos executivos fiscais, vejamos o posicionamento de Renato Lopes Becho:

Como se percebe, esse incidente faz com que seja superada a doutrina que indicava não haver a possibilidade do contraditório no processo executivo fiscal. Agora haverá, com todas as implicações daí decorrentes. Haverá a suspensão da execução (art. 134, parágrafo 3º_ e uma fase probatória (art. 135), que poderá incluir audiências, com depoimento pessoal e oitiva de testemunhas, etc. [...] de nossa parte, acreditamos que o legislador, no novo CPC, foi positivamente criativo. Referido incidente vai melhorar o sistema de defesa dos apontados como responsáveis tributários. Portanto, sua aplicação melhorará a pratica atual nas execuções fiscais, no que tange à responsabilização tributária.3

A importância de se observar tais diretrizes é patente. Como se sabe, o princípio do Devido Processo Legal se mostra de importância fulcral no âmbito de toda atividade que envolva a cobrança de tributos, sendo, inclusive, resultado de conflitos envolvendo o tema tributário no âmbito da relação Estado e indivíduo. Sempre que os direitos humanos da vida, da liberdade e da propriedade estiverem em jogo, será necessário observar a aplicação de um devido processo legal para que se legitime a invasão ou a supressão de tais direitos.

O devido processo legal, como o significado das palavras foi desenvolvido nas decisões americanas, implica a administração de leis igualitárias de acordo com regras estabelecidas, que não violem os princípios fundamentais dos direitos individuais, por um tribunal competente que tenha jurisdição do caso e proceda por provocação e com a oitiva das partes. A frase é e tem sido desde longa data exatamente equivalente e convertida com a expressão antiga ‘Lei da Terra’. 4 É natural que as civilizações evoluídas pensem assim, uma vez que no passado a observância de tal princípio não se fazia necessária, pois, pura e simplesmente, o mais poderoso, o mais forte e aquele que detinha o poder realizava o que bem entendia com a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos sem respeitar qualquer tipo de regra ou procedimento estabelecido.

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O caso é tão bizarro que vale destacar que a origem histórica do devido processo legal, que deriva5 da Magna Carta cunhada, em 1215, pelo Rei João Sem Terra. No Brasil, o acolhimento expresso do princípio em texto constitucional se deu apenas com a Constituição de 1988, pois as Constituições anteriores, ora faziam referência apenas à área criminal, ora optavam pela sua completa ausência, a exemplo das Constituições da época ditatorial (1967 e 1969), o que significa um grande atraso na recepção de tal princípio por nosso ordenamento positivo. Não obstante tal constatação, Alberto Nogueira6 afirma que a doutrina pátria já fazia referência à sua aplicação desde longa data, conforme textos colacionados de José Frederico Marques7 e Geraldo Ataliba.8

A importância da consagração expressa do princípio do devido processo legal no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, resulta das profundas e marcantes feridas advindas dos regimes ditatoriais anteriores. O que se buscou na Assembleia Constituinte de 1985 foi o estabelecimento de um bloqueio contra a manifestação exorbitante do poder e as constantes ingerências desautorizadas do Estado nas liberdades e nos direitos humanos mais caros dos cidadãos. É assim que foi desenhada a cláusula atual do devido processo legal, constante do artigo 5º, inciso LIV, nos seguintes termos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O devido processo legal significa a própria necessidade de processualização como condição legítima para que se possa impor a alguém a perda ou algum tipo de restrição de seu patrimônio ou liberdade, de maneira que se constitui direito fundamental do cidadão, que, antes de qualquer aplicação de tais limitações, haja a observância de um encadeamento de atos previamente definidos em lei por meio de uma autoridade competente para decidir a demanda: “o direito ao processo corresponde a uma estrutura lógica de garantias, seus princípios, no regime constitucional brasileiro exprimem uma amálgama de garantias individuais de raiz constitucional”.9

Em sentido semelhante, Nery ressalta que “genericamente, o princípio do due process of lawcaracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, vale dizer, tem-se o direito de tutela aqueles bens da vida em seu sentido mais amplo e genérico”, de forma que “tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da due process clause”.10

O devido processo legal, em sua visão original e processual, visa garantir que qualquer ato emanado do poder estatal, que tenha por fim tocar no trinômio vida-liberdade-propriedade, seja ele judicial, legislativo ou executivo, deve observar um conjunto de procedimentos previamente estabelecidos, de forma que poderá ser exercido um controle daquele ato estatal, o que por si só visa garantir não apenas o cidadão destinatário, mas também o conceito de processo justo. Dentro dessa cláusula geral, estão ínsitos os direitos de se defender, alegar, provar, peticionar à autoridade competente, de forma que este encadeamento de atos deverá buscar a valorização da dignidade humana até seu mais nobre estágio.

Tal relação se acentua no âmbito do direito tributário. E é por esse motivo que Cais ressalta: “em matéria tributária, o princípio do devido processo legal adquire contornos específicos, de extraordinário importância diante da relação fisco/contribuinte [...]”.11 Por sua vez, Ávila considera o princípio do devido processo legal, enquanto princípio, como uma Limitação de 1º grau, ressaltando que sempre deverá ser observada sua aplicação, de forma que “se há uma regra, mas incapaz de garantir defesa ao contribuinte, deve ser reinterpretada ou mesmo afastada; se não há, deve ser criada diante do caso concreto”.12

Em nossa CF/88, a cláusula geral do devido processo legal não se confunde com os princípios mais específicos, como a ampla defesa (condições efetivas e concretas de se defender) e o contraditório (ciência e resistência), que são a reafirmação e a especificação da importância de se observar determinadas garantias constitucionais antes de privar o cidadão de seus direitos constitucionalmente estabelecidos. É por isso que a CF/88 estabelece, em sede própria, os princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, no art. 5º, inciso LV, nos seguintes termos “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes [...].”

Basicamente, tais princípios garantem que as partes têm o direito ao conhecimento do que lhes está sendo imputado, podendo apresentar alegações, contra-argumentar, acompanhar a produção de provas, mediante a produção e a contra produção de provas; também contemplando o direito a defesa técnica a ser exercida por um advogado e o direito de recorrer de eventual decisão desfavorável.

A observância de tais princípios deve sempre ser respeitada no âmbito de qualquer ingerência do Estado Fiscal no patrimônio do contribuinte e está, em última análise, de acordo com as conquistas e anseios do neoconstitucionalismo, privilegiando a dignidade humana.

Contudo, ao deferir atos executivos sem nem mesmo ocorrer a citação dos supostos devedores (geralmente sócios das pessoas jurídicas) a que se pretenda redirecionar, acaba por acarretar a plena desnaturação do IDPJ. Inclusive, nestes mesmos termos, confira o posicionamento da doutrina:

Por isso, a melhor interpretação é a de que atos executivos em face do sócio (ou da pessoa jurídica, quando se tratar de “desconsideração inversa”) não podem ser praticados antes da resolução do incidente.13

Como se vê, merecem ser reformadas pelos Tribunais as decisões concedendo ordens de bloqueio, sisbajud e demais indisponibilidade de bens, para que possam ser exercidos, de forma efetiva, os princípios constitucionais descritos.


Notas

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 1.110.925/SP, rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ. 22/04/2009. Disponível em: <https://www.stj.jus.br>. Acesso em: 20 set. 2017.

2 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, AG.REG. RE n. 608.426/PR, rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJE 21/10/2011.

3 BECHO, Renato Lopes. Alterações mais importantes do processo civil em matéria tributária e o novo CPC. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2015, p. 390-392.

4 McGEHEE, Lucius Polk. Due process of law under the federal Constitution. New York: Edward Thompson Company, 1906, p. 1.

5 DORIA, Antonio Sampaio. Direito constitucional tributário e “Due Process of Law”. Ensaio sobre o controle judicial da razoabilidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 9.

6 NOGUEIRA, Alberto. Devido Processo Legal Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1.

7 MARQUES, José Frederico. A garantia do “due process of law” no direito tributário. In: Revista de Direito Público, v. 2, ano 5, 1968, p. 28-33.

8 ATALIBA, Geraldo. Penalidade Tributária – processo administrativo tributário – princípios – due process o law. In: Estudos e pareceres de direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, v. 2, p. 238: “É que no direito pátrio está implícita, entre as garantias constitucionais, a do chamado due process of law (art. 150, § 35 da Constituição Federal). Desse modo, também entre nós, ninguém será privado da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido processo legal.”

9 MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 168.

10 NERY Jr. Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 35

11 CAIS, Cleide Previtalli. O Processo tributário. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 90.

12 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173.

13 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Procesusal Civil. São Paulo: Saraiva, 2020, item 4.6.6.

Sobre o autor
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Pós-Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) com bolsa integral concedida pela CAPES. Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) com bolsa integral concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ, governo federal), Visiting Researcher oficialmente convidado pelo International Bureau of Fiscal Documentation (IBFD - Amsterdam). Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). LLM em Direito Societário pelo INSPER. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET/USP), Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), MBA em Legal Administration pela Escola Paulista de Direito (EPD), Pós-graduado em International Tax Law pelo International Tax Center (ITC) Leiden, Holanda, Pós-graduado em Teoria Geral do Direito (IBET), Pós-graduado em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV SP), Técnico em Gestão/graduação universitária (Unisul), Professor palestrante e Professor orientador da Pós-graduação Lato Sensu em Direito Processual Tributário da PUC-SP/COGEAE, Professor Assistente da Graduação em Direito (PUC-SP), Assistente da Pós graduação Stricto Sensu no Mestrado em Direito Processual Tributário (PUC SP), Professor do Mestrado CEDES/SP, Professor de Direito Tributário convidado CIESA/Manaus, Palestrante convidado em diversos cursos de Pós-graduação pelo Brasil, tais como OAB, rede de ensino LFG e Escola da Magistratura da Terceira Região ( Emag TRF3), Experiência na atuação jurídico consultivo internacional nos âmbitos comercial, indenizatório e fiscal, Autor de livros e artigos em Direito Tributário, com destaque para a obra Execução Fiscal e Dignidade da Pessoa Humana com primeira edição esgotada em todo o Brasil, Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Tributário IBDT sob o número 2179, Membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Fiscal ABDF, Membro efetivo da International Fiscal Association IFA sob o número 41822

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