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A proibição da tese da legítima defesa da honra no feminicídio.

Analisa-se a decisão do STF que proibiu o uso da tese da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio, sob uma perspectiva da justiça hermenêutica.

No direito, é comum que a palavra interpretação, também conhecida como hermenêutica, seja empregada de forma estrita, indicando, a grosso modo, os sentidos atribuídos (ou extraídos, a depender da perspectiva adotada) de certo texto legal. Porém, o que muitas vezes passa despercebido é que a nossa vida cotidiana é cercada por uma constante prática interpretativa, na medida em que os fatos sociais que nos cercam, e nos quais estamos inseridos, somente podem ser compreendidos a partir de uma relação de interpretação. Portanto, a compreensão de certas experiências relatadas por uma pessoa, ou até mesmo nossas próprias experiências pessoais e únicas, dependem da forma como traduzimos aquilo que foi vivenciado através da linguagem corrente, estabelecendo-se uma narrativa coerente e inteligível a partir do recursos linguísticos e categorias analíticas que estão à nossa disposição.

A partir do momento em que a hermenêutica é vista desempenhando um papel central na vida em sociedade, torna-se possível perceber, com mais clareza, que as relações desiguais de poder não se limitam a produzir sistema de opressão naqueles eixos que estamos relativamente habituados a enxergar injustiças, como o político, econômico, sexual, racial, dentre outros. Isso porque, além dessas espécies “mais comuns” de opressão, grupos privilegiados da sociedade possuem um tipo específico e injusto de vantagem que consiste em estruturar nossas compreensões do mundo social. Tal estruturação ocorre em detrimento das perspectivas de grupos subalternizados, que não possuem as ferramentas operacionais de poder e nem ocupam os espaços discursivos legitimamente reconhecidos como geradores de visões de mundo. Esse cenário pode configurar uma situação de opressão hermenêutica[1].

A fim de ilustrar melhor a forma como tal opressão pode se manifestar, cabe trazer um exemplo histórico retirado do livro de memórias de uma das integrantes do Movimento de Libertação da Mulheres nos Estados Unidos: Carmita Wood, era uma mulher de cerca de quarenta anos pertencente à classe média norte-americana na década de 70, que trabalhava no departamento de física nuclear de uma universidade. De uma hora para a outra, passou a perceber que seu chefe passava muito tempo perto de sua mesa, olhando-a diretamente e, sempre que tinha a oportunidade, encostava nela de forma que a deixava constrangida. Sem compartilhar tal situação com ninguém, até por não entender exatamente o estava vivenciando, Carmita passou a desenvolver, com o passar do tempo, vários sintomas de estresse crônico e síndrome do pânico, principalmente quando entrava em seu ambiente de trabalho. Por não mais suportar aquela situação, tentou transferência de departamento, o que foi negado pelos superiores hierárquicos. Sem alternativas, foi obrigada a pedir demissão.

Ao pleitear o pagamento de um seguro desemprego, tentou explicar os motivos pelos quais havia se demitido, a fim de demonstrar que foi compelida a tomar essa decisão extrema por força das circunstâncias. Entretanto, por mais esforço que empreendesse, não era capaz de construir uma linha narrativa e argumentativa inteligível ao seu interlocutor, que estava ali para analisar a sua demanda. A experiência vivenciada não se encaixava em nenhuma categoria analítica ou termo linguístico então existente e, por esse motivo, o máximo que Carmita conseguiu dizer foi que a demissão se deu por motivos pessoais.

Após esse trágico episódio, que trouxe diversas consequências para sua vida, Carmita passou a frequentar reuniões de mulheres feministas que se preocupavam em dividir experiências pessoais, de forma a identificarem padrões semelhantes de opressão e formas de subalternização muitas vezes sutis e sofisticadas. Nessas reuniões, ao ouvirem o relato de Carmita, as mulheres presentes compartilharam diversas experiências muito parecidas, de aproximações sexuais inapropriadas por parte dos respectivos chefes, apesar de raramente terem compartilhado a situação com alguém. A narrativa de Carmita, ainda que utilizando termos não exatamente representativos do que deseja dizer, provocou um verdadeiro “click”, uma espécie de aha!! coletivo, pois as mulheres se deram conta de que suas experiências não eram únicas e isoladas, como pensavem.

Além disso, perceberam que a situação vivenciada transbordava qualquer tentativa de categorização através dos recursos linguísticos então existentes. Isso porque, elas haviam sido sujeitadas a algo que não se resumia a inocentes paqueras ou brincadeiras incovenientes no ambiente de trabalho (como geralmente seus raros interlocutores tentavam enquadrar essas experiências), era algo muito maior, prejudicial, injusto e violento. Diversas reuniões foram necessárias para que as mulheres finalmente conseguissem em conjunto cunhar um termo que desse conta de abranger toda uma gama de comportamentos, ao mesmo tempo, sutis e nada sutis, capazes de produzir humilhação e vergonha nas vítimas. Assim, “asssédio sexual” surgiu como o termo apropriado para explicar aquele tipo de experiência[2].

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A lacuna hermenêutica de Carmita para descrever inteligivelmente sua experiência está diretamente ligada à marginalização a qual as mulheres historicamente foram submetidas em relação à construção de significados sociais de uma forma geral, e, especificamente, sobre aqueles significados relacionados às relações interpessoais de cunho sexual. Obviamente que diferentes grupos podem estar em desvantagem hermenêutica por todos os tipos de razões, pois o mundo social em mudança frequentemente “gera novos tipos de experiência a respeito das quais nossa compreensão pode surgir apenas gradualmente, mas apenas algumas dessas desvantagens cognitivas parecerão injustas”[3].

A opressão hermenêutica se caracteriza como um tipo específico de injustiça, chamada de epistêmica, na medida em que uma pessoa hermeuticamente marginalizada é impedida de gerar significados pertencentes a algumas áreas do mundo social, deixando de desenvolver uma participação plena e equitativa em relação aos demais indivíduos da sociedade. Portanto, sua condição de sujeito epistêmico, isto é, sujeito que constrói e compartilha conhecimentos, é diretamente atingido, provocando danos não apenas para sua pessoa, mas também para a sociedade, que é privada de um novo olhar capaz de alterar a percepção sobre práticas já naturalizadas[4].  

Porém, para ser uma injustiça epistêmica, a opressão hermenêutica deve ser, além de prejudicial, também discriminatória ou preconceituosa, sendo representativa de um quadro social sistemático, pois a pessoa marginalizada geralmente estará sujeita a outros tipos de injustiça que a rastreiam em razão de seus marcadores sociais, como gênero, raça, classe e origem[5]. No exemplo dado, assediador e assediada estavam cognitivamente prejudicados pela lacuna hermenêutica – pois o chefe não tinha da mesma forma conhecimento da categoria “assédio sexual” - mas a deficiência cognitiva do assediador não representava uma desvantagem significativa para ele[6]. Inclusive, a depender da relação de opressão estabelecida, a lacuna hermenêutica da pessoa mais impotente pode ser uma vantagem ao opressor na perpetuação do processo de abuso.

É possível que a opressão hermenêutica ocorra quando um termo que já existe na linguagem corrente supostamente serve para descrever aquilo que se pretende comunicar. Porém, diante dos sentidos atribuídos ao termo, esse não dá conta de traduzir adequadamente o fato, ou a condição, ou o sentimento, vivenciado, pois os sentidos atribuídos ao termo derivam de narrativas hegemônicas da realidade que não levam em consideração os pontos de vista dos grupos situado à margem das relações de poder. Esse é o caso, por exemplo, do conceito de depressão pós-parto, onde a mera palavra depressão, ou tristeza, não era capaz de abranger a complexidade desse quadro muito peculiar que acomete especificamente mulheres, taxadas, muitas vezes, de histéricas ou loucas. Pode ocorrer ainda de os sentidos atribuídos a certo conceito serem tão pejorativos que nenhuma pessoa, ou grupo, gostaria de ter qualquer tipo de atrelamento ao mesmo, como seria o caso, por exemplo, de ser identificado como homossexual na sociedade conservadora da década de 50[7].   

Toda essa longa explanação serve para nos conduzir à decisão proferida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 15 de março de 2021, em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Nessa decisão, o STF, por unanimidade, firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra, usada pelos réus nos julgamentos pelo crime de feminicídio, é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humanda, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Dessa forma, foi dada interpretação conforme a Constituição a dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa, não podendo essa tese ser utilizada em nenhum fase do processo ou da investigação do crime.

Essa decisão de nossa Corte Suprema pode ser analisada a partir das mais diversas abordagens, privilegiando-se aspectos relacionados aos direitos humanos, à ética na atuação processual ou então aos valores consagrados por nossa Constituição e seus reflexos no direito material. A decisão de fato abrange todos esses aspectos, mas vai muito além disso, pois representa também uma verdadeira virada epistêmica na estruturação das compreensões compartilhadas sobre as relações de gênero em nossa sociedade.

Não se pode perder de vista que a “honra” foi, e continua sendo, mesmo após a decisão do STF, um bem que merece ser protegido pelo nosso sistema jurídico, basta ver que os crimes contra a honra continuam todos em vigor, assim como eventuais ações indenizatórias têm a possibilidade de serem direcionadas aos juízos cíveis quando for o caso de reparação por danos já causados. Da mesma forma, a legítima defesa continua sendo uma hipótese excludente de ilicitude capaz de justificar a prática de um crime, na medida em que conduta praticada sob essa excludente seria típica, mas não antijurídica. 

Admitir a válida existência dessas duas figuras jurídicas não significa que a honra de um homem pode ser protegida com o assassinato de uma mulher. Isso porque, essa construção argumentativa utiliza-se de uma premissa e de uma conclusão que se revelam inadmissíveis dentro de uma sociedade cuja Constituição estipula a igualdade nas relações entre os gêneros. A premissa do argumento é de que a conduta de uma mulher seria capaz de atingir a honra de um homem, e não a honra da própria mulher. Portanto, de acordo com esse raciocínio, a mulher seria uma extensão do próprio homem, espécie de propriedade, pois seus atos são relacionados não diretamente a ela, mas sim, reflexamente a ele. Além disso, a conclusão do argumento é a de que a vida de uma mulher vale menos do que a honra de um homem.

Diante do descabimento de tal linha argumentativa, que sujeita a mulher a uma condição de coisa, a defensora pública do Rio de Janeiro, Renata Tavares, já apontava, ao menos desde 2015, a incompatibilidade de a defesa patrocinada pela Defensoria Pública aderir a essa tese, tendo em vista as funções constitucionais dessa instituição com a promoção da pauta de direitos humanos. Assim, na visão de Tavares, isso não significaria que os réus de feminicídio devam ficar desassistidos, pois uma defesa pautada por valores éticos de atuação poderia se valer de teses defensivas que explorem a sujeição do homem acusado aos valores arcaicos do machismo, mostrando o quanto sua conduta foi pautada por estereótipos de gênero assimilados naturalmente em seu processo de socialização[8].

Ainda que com décadas de atraso, e ao custo de muitas vidas destroçadas, essa decisão do Supremo Tribunal Federal permite que as memórias das mulheres assassinadas sejam retiradas de uma situação de opressão hermenêutica, e, portanto, de injustiça epistêmica. Isso porque os relatos de suas experiências de morte deixam de ser contados a partir de termos e enquadramentos que se valem de uma lógica e estrutura argumentativa pautada por valores machistas e opressores, para serem inseridos dentro de uma moldura linguística e conceitual consentânea com os valores da dignidade da pessoa humana, da autonomia de vida e verdadeira igualdade entre os gêneros.

Privilegia-se, assim, a narrativa que não culpabiliza a mulher pela sua própria morte; pelo contrário, é reconhecido seu papel de verdadeira vítima, evitando-se, ao menos, o assassinato de sua reputação e honra. Cabe lembrar que o próprio termo “feminicídio” é um conceito relativamente novo em nosso sistema jurídico, inserido em nosso Código Penal em 2015, que também com muito atraso passou a produzir uma outra perspectiva hermenêutica sobre o homicídio praticado contra as mulheres única e exclusivamente por questão de gênero. Portanto, possível perceber que as situações de opressão hermenêutica tendem a perpetuar no tempo, apenas sendo rompidas quando atores, ou pontos de vista, antes invisibilizados, passam a circular, também, nas esferas institucionais discursivas de formação de sentido.  

Essa decisão do STF também serve para nos lembrar que construímos mundos através das palavras para depois habitá-lo. Então, que nós, profissionais do direito em geral, não percamos de vista o mundo que desejamos habitar, para que isso reflita nas escolhas conceituais e narrativas que empregamos em nossas práticas interpretativas cotidianas e, sobretudo, profissionais.


Referências:

BROWNMILLER, Susan, In Our Time: Memoir of a Revolution, New York: Dial Press, 1990.

FRICKER, Miranda. Epistemic Opression and Epistemic Privilege. Canadian Journal Philosophy, v. 29, pp. 191-210, 1998.

FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice. Power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007.

FRICKER, Miranda. Powerlessness and Social Interpretation. Episteme, v. 3, n. 1-2, pp.96-108, 2012.

FRICKER, Miranda. Epistemic justice as a condition of political freedom? Synthese, The Epistemology of inclusiveness, v. 190, n. 07, Maio de 2013, pp. 1317-1332, 2013.

TAVARES, Renata. Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. Disponível em https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/wp-content/uploads/sites/4/2016/03/OS-DIREITOS-HUMANOS-COMO-LIMITE-%C3%89TICO-NA-DEFESA-DOS-ACUSADOS.pdf. Acesso em 19/03/2021


[1] Essa é a um dos pilares centrais da teoria de Miranda Fricker, uma professora inglesa da área da epistemologia que trabalha com o tema de injustiça epistêmicas. FRICKER, Miranda. Epistemic Oppression and Epistemic Privilege. In Canadian Journal Philosophy, v. 29, pp. 191-210.

[2] Todo esse relato consta de forma pormenorizada no livro BROWNMILLER, Susan. In Our Time: Memoir of a Revolution. New York: Dial Press, 1990, p. 272.

[3] FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice. Power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007, p.107.

[4] FRICKER, Miranda. Epistemic justice as a condition of political freedom? Synthese, The Epistemology of inclusiveness, v. 190, n. 07, Maio de 2013, pp. 1317-1332, 2013, p.1320.

[5] Ibid., p.27.

[6] FRICKER, Miranda. Epistemic justice as a condition of political freedom? Synthese, The Epistemology of inclusiveness, v. 190, n. 07, Maio de 2013, pp. 1317-1332, 2013.

[7] Exemplo dado por Fricker no texto Powerlessness and Social Interpretation. Episteme, v. 3, n. 1-2, pp.96-108, 2012, p. 105.

[8] TAVARES, Renata. Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. Disponível em https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/wp-content/uploads/sites/4/2016/03/OS-DIREITOS-HUMANOS-COMO-LIMITE-%C3%89TICO-NA-DEFESA-DOS-ACUSADOS.pdf. Acesso em 19/03/2021.

Sobre a autora
Carolina Soares Castelliano Lucena de Castro

Defensora Pública Federal, Mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ, Doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas na UFRJ na linha de teorias da decisão, da interpretação e justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Carolina Soares Castelliano Lucena. A proibição da tese da legítima defesa da honra no feminicídio.: Uma virada hermenêutica necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6476, 25 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89323. Acesso em: 23 nov. 2024.

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