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Diálogos da Lava Jato: a perturbadora mensagem que transmitem

Agenda 31/03/2021 às 16:31

A tortura, embora lamentável presença recorrente no Brasil, encontrou na lava-jato uma inovação, a sua legitimação, desde a lógica da tortura aceitável, produzindo pela primeira vez, no Brasil República, a normalização da tortura.

"essa reportagem só me convence de que a OAS tem que mijar sangue para voltar para a mesa".

(Membro do Ministério Público Federal, integrante da força tarefa Lava Jato)

"Ex-presos reconhecem locais em que funcionaram o Doi-Codi ...No Doi, Ramos viu Fernando Augusto Valente da Fonseca, o Fernando Sandália, ser torturado até a morte. "Ele teve as mãos algemadas na grade da sala de tortura. Os torturadores sabiam que ele tinha um grave problema nos rins e após os golpes, ele passou a mijar sangue.

(https://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outrosdestaques/558-ex-presos-reconhecem-locais-em-que-funcionaram-o-doi-codi-e-o-dops-no-recife))

"CONDEPE PREPARA DOSSIÊ SOBRE TORTURA NA FEBEM DE BAURU (SP)

O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) vai divulgar nos próximos dias um relatório com os casos de tortura, espancamentos e humilhações cometidos contra menores da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem) de Bauru, a 343 km de São Paulo.Um dos infratores da Unidade de Internação apanhou tanto que sofreu descolamento de retina e ficou cego do olho esquerdo. Outro menor levou socos e pontapés até urinar sangue".

(https://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,AA1368073-5598,00.html).

"A União foi condenada a pagar R$ 93 mil por causa de tortura ocorrida em um quartel em Caicó (RN)... ele chegou a urinar sangue com a agressão.

(https://www.conjur.com.br/2009-fev-11/uniao-condenada-pagar-93-mil-tortura-quartel-exercito).


A cultura da tortura tem presença marcante no Brasil, sendo seguro afirmar que a imposição de sofrimentos extremos, como forma de gerar submissão de pessoas, transformando-as em coisas, servis ao agressor, esteve presente em diferentes momentos históricos no país.

O prolongado e horrendo processo escravagista brasileiro teve na sua agressividade descontrolada uma das marcas, sendo comum, os açoites, as mutilações, as violações sexuais e até mesmo, há indícios, do canibalismo por bandeirantes contra recém nascidos negros.

Muitos anos depois, a ditadura militar brasileira notabilizou-se, até mesmo em comparação com a existente nos demais países latino-americanos, pela pulverização do emprego da tortura, com a extrema capacidade dos torturadores, representantes do Estado, de encontrar meios para gerar dor e pânico, envolvendo choques elétricos, violações sexuais, espancamentos, afogamentos, enfim, métodos os mais variados para transformar pessoas em coisas.

O torturador brasileiro sempre atuou com afinco para atingir um momento derradeiro, marco de sua habilidade em infligir sofrimento, aquele em que o seviciado defeca ou urina sangue.

O urinar sangue, sem deixar muitas marcas externas, seria, na lógica da tortura, uma espécie de galardão, pois o torturador com sua habilidade consegue destroçar o torturado por dentro, sem deixar pistas que possam comprometê-lo, mantendo as estruturas estatais de poder incólumes, como se a confissão produzida fosse verdadeira, os fatos narrados espelhassem a realidade e as instituições realmente funcionassem, o sistema fosse perfeito.

Na lava-jato, muitas conversas absolutamente chocantes e em nada republicanas, entre os membros da “força tarefa”, já foram reveladas, mas uma frase talvez consiga sintetizar tudo, quando um dos seus integrantes diz que realmente para conseguirem construir as provas que desejam, incriminar os que já, desde o início, antes de qualquer processo já haviam sido escolhidos como culpados, é preciso fazer mijar sangue.

Não se diga que é mera força de expressão, não, não costuma o brasileiro em suas relações interpessoais dizer que é importante fazer os outros mijar sangue, a expressão realmente demonstra a completa construção de um novo sistema de tortura, ancorado em prisões processuais intermináveis e sem fundamentos legais, delações premiadas de agentes delitivos dispostos a comprometer quem os acusadores desejassem que fossem condenados, omissão de provas benéficas para a defesa e até mesmo bloqueio de sua atuação, enfim, a tortura meio para a satisfação do objetivo processual da confissão, da delação, condenação sem provas, em definitivo, qualquer coisa, desde que o acusados deixem sua condição de sujeito para transformarem-se em objetos de um poder punitivo estatal descontrolado.

Quando em 2018, no auge da idolatria nacional à lava jato, publiquei o livro Contra Lava Jato, muitos, até mesmo sem o ler, questionavam, como poderia eu ser contra a lava jato, então seria eu a favor da corrupção.

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A questão, porém, nunca foi a corrupção, porque a estrutura do Estado em que as instituições abdicam da impessoalidade e da imparcialidade é tão, ou mais corrupta, que o mal que pretendem conjurar; a questão sempre foi a retomada do poder punitivo descontrolado, a aceitação do abandono do processo democrático em nome de se punirem alguns, o gerar de cultura judicial baseada na figura do juiz justiceiro e do direito em que as interpretações, mesmo as mais absurdas, justificam-se desde que contra o acusado e com função de garantir punições.

Na lava-jato, apesar da punição de algumas pessoas que aparentemente praticaram corrupção, algo muito mais grave aconteceu, outros tantos foram punidos com base em elementos no mínimo duvidosos de prática de qualquer delito, tendo sido construído sistema contemporâneo calcada na lógica da tortura aceitável.

Já ao início, a lava-jato fez o processo de preocupações com as condições dos encarcerados no Brasil, algo apontado por vários organismos internacionais como agressivo das condições humanitárias mínimas, sair da agenda nacional e mais que isto, estimulou a lógica da prisão-tortura, ou seja, o ideal é que realmente as condições carcerárias sejam ruins, que a pessoa aprisionada seja massacrada física e moralmente, pois, este passou a ser mecanismo de pressão para acusados confessarem qualquer coisa e também delatar o que fosse desejado pelos responsáveis pela persecução criminal.

Igualmente, a não garantia de aplicação das regras elementares do processo penal, para os acusados não colaboradores, criou a certeza de que a opção no âmbito processual passou a se estreitar, ou se confessa e delata o que querem os responsáveis pela persecução, ou se permanece indefinidamente em cárcere, sem qualquer garantia processual.

Nesse sentido, a lógica oficial passou a ser a de que o sistema seria bom, pois separaria pessoas entre colaboradores privilegiados pelo juiz da causa e não colaboradores, submetidos à tortura aceita, até também desejarem colaborador.

Quando se cria, no cárcere processual indefinido e sem reais e claros fundamentos processuais, um mecanismo de coação sobre o acusado, para confessar e delatar outras pessoas, por maiores que sejam as tentativas de purificação moral deste expediente, há que se reconhecer que, em verdade, tem-se pura e simplesmente o Estado desconhecedor de limites éticos o qual afã de atacar, torna-se mais perverso que qualquer criminoso.

A lógica da tortura aceitável tem poder de corrosão enorme, pois, como as pessoas rapidamente passam a com ela se acostumar, importante barreira é retirada da sociedade, a de que ninguém pode ser transformado em objeto, passando a ser aceita a objetivização humana e com isso a crescente agressão e violência contra pessoas criminalmente processadas.

Na lava-jato, todo o sistema processual é estruturado tendo o encarceramento processual como regra, em crimes sem violência ou grave ameaça, não tipificados como hediondos ou equiparados, com ausência completa de preocupação com a formação estruturante do sistema penal, pois toda a busca é limitada a fazer sofrer alguns, dentro das bases aceitas, ainda que o preço seja a destruição de todos os valores da sociedade e geração de perda da solidariedade e de qualquer preocupação com o outro.

Dessa forma, a questão sempre foi evidente na lava-jato, o ataque no processo à liberdade não é um mecanismo de cautela processual, mas mecanismo direto de tortura e coisificação das pessoas, por isso, independente da natureza do delito, das características do acusado, da existência de indícios probatórios mínimos, de qualquer necessidade, deve ser gerada a sensação de que a liberdade pode ser retirada repentinamente, por isso, o uso abusivo das conduções coercitivas e, em derradeiro, impor, de forma permanente e com o maior grau de sofrimento possível, a prisão processual.

A tortura, embora lamentável presença recorrente no Brasil, encontrou na lava-jato uma inovação, a sua legitimação, desde a lógica da tortura aceitável, produzindo pela primeira vez, no Brasil República, a normalização da tortura, franqueando a sua utilização, não somente como método obscuro e ilegítimo, mas como meio válido no processo penal, a partir da cessão à pura lógica utilitária, pela qual o que importa é punir, punir sempre mais pessoas e mais rigorosamente.

Assim, quando no diálogo entre os membros da força tarefa é dito que este ou aquele deve mijar sangue, a questão precisa realmente ser lida na sua real implicação, qual seja, a tortura precisa avançar, não deixar marcas, para parecer que o sistema funciona, que o processo é regular, mas, sobretudo, o seviciado precisa sofrer mais e, na frase do Delegado Fleury à Frei Tito, durante as torturas a que este era submetido, “ser quebrado por dentro.”

Com efeito, é bastante evidente ser a legitimação das práticas da lava-jato, a legitimação de condutas muito mais graves e corrosivas da cidadania e da sociedade brasileira que aquelas as quais referida operação dizia combater.

Não há que haver receio algum em reconhecer não ser a lava-jato válida, sob o ponto de vista do processo penal democrático e, mesmo com marcas e dores, resgatar o Brasil ao nível civilizatório do qual foi rebaixado, quando em nome de punições, as violências estatais forma aceitas e normalizadas, pois, muito mais grave seria, a despeito de todas as evidências de afronta aos valores básicos ao exercício do poder punitivo nos países democráticos, ignorá-las e ratificá-las, então, seria como dizer, “tudo bem que tortura houve, que o torturado urinou sangue, mas, o torturador foi habilidoso e não deixou marcas externas...vamos lá... merece um galardão.”

Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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