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A indispensabilidade da escritura pública na essência do art. 108 do Código Civil

Agenda 25/09/2006 às 00:00

Não há dúvida que o legislador se distraiu da essência do artigo 108 do Código Civil quando flexibilizou a indispensabilidade da escritura pública para negócios jurídicos levando em conta o valor do imóvel.

O artigo 108 do Código Civil encerra a regra geral da forma instrumentária essencial à validade dos negócios imobiliários, ao dizer: "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País".

Dita norma tem grande relevância no campo dos negócios jurídicos imobiliários, exigindo indivisa atenção dos profissionais do direito, sobretudo daqueles que mourejam nas atividades notariais e registrais, pois baliza forma indispensável à produção dos efeitos pretendidos sempre que o negócio se referir a direitos reais sobre imóveis, onde a regra é a escritura pública, excetuando-se os casos previstos em lei especial - sendo especial, não é aplicável a hipóteses não contempladas - e os casos em que o valor do imóvel não ultrapassar a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Fora isso, nenhum negócio envolvendo direitos reais sobre imóveis pode ser realizado sem escritura pública, sob pena de ser tido como não realizado, por inobservância da forma prescrita em lei, essencial à validade do negócio, não podendo, inclusive, e a toda evidência, ser registrado no Cartório do Registro de Imóveis, por submissão ao princípio da legalidade.


Casos especiais de exceções à escritura pública

As hipóteses em que é possível prescindir da escritura pública para a validade do negócio jurídico são: o compromisso de compra e venda de imóveis loteados (Lei nº 6.766/79, art. 26 (urbano); e art. 7º, Dec.Lei 2.375/87 (rural)), a venda e compra de imóvel de qualquer valor com financiamento mediante a contratação da alienação fiduciária em garantia, o mútuo com alienação fiduciária em garantia imobiliária, nos termos do SFI (Lei nº 9.514/97, arts. 38 e Parágrafo único do art. 22, com redação dada pela Lei nº 11.076/2004), a compra e venda de imóvel de qualquer valor com financiamento do SFH (art. 1º da Lei nº 5.049/66, que alterou o art. 61 da Lei nº 4.380/64), e, naturalmente, qualquer negócio jurídico envolvendo imóvel de valor igual ou inferior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País, por força da exceção trazida no artigo 108 do Código Civil.

Contudo, nem sempre se tem observado a indispensabilidade da Escritura Pública para a formalização dos negócios envolvendo direitos reais sobre imóveis, cuja conseqüência inarredável é a invalidade desses negócios, ainda que sejam registrados no competente Registro de Imóveis, posto que o registro não tem o condão de validar negócios nulos, nos quais se enquadram os formalizados sem revestirem a "forma prescrita em lei" (art. 166, IV, NCC; art. 82 e 130, CC 1916). Vejamos alguns exemplos.


Compra e Venda com o FGTS sem parcela financiamento

A compra e venda de imóvel com utilização de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, sem financiamento de parcela do preço por instituição integrante do SFH deve ser formalizada por escritura pública, nos termos do artigo 108 do Código Civil. Ocorre que muitos desses negócios são formalizados mediante instrumento particular, invocando-se para tanto o disposto no art. 1º da Lei nº 5.049/66, pelo fato da CEF comparecer nesses contratos.

O art. 1º da Lei 5.049/66, que incluiu o § 5º ao art. 66 da Lei nº 4.380/64, diz: "Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil (1916), atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei." (Grifamos)

Para compreendermos o alcance da norma acima, e não incorrermos num desvio de finalidade da lei, deve-se destacar que a Lei nº 4.380/64 teve por finalidade instituir "a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria", criar "o Banco Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo" e dar "outras providências". Ou seja: em nenhum tópico da lei ela tem por finalidade regular negócios com utilização dos recursos do FGTS do próprio trabalhador, para cujo desiderato é despiciendo ser o agente operador integrante do SFH. Essa base é essencial para compreensão da extensão da norma autorizadora da realização dos negócios imobiliários mediante instrumento particular.

Aliás, o tópico destinado ao "Elemento Teleológico", na Hermenêutica e Aplicação do Direito, Carlos Maximiliano (Forense, 2001) diz: "Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi redigida". (Grifos originais)

Destarte, para se aferir se há regularidade na formalização dos negócios de compra e venda de imóvel com utilização do FGTS, sem financiamento, através de contratos particulares, é necessário saber se esses negócios atendem à finalidade da lei que autoriza essa forma instrumentária, preenchendo os requisitos necessários, sem o que não encontram guarida para sua validade.

Nas partes sublinhadas do art. 1º da Lei nº 5.049/66, que é o que nos interessa, e tendo em mira as regras de hermenêutica citadas, podemos identificar dois elementos concorrentes para autorizar a formalização do negócio imobiliário por instrumento particular: 1) ser a entidade integrante do SFH parte no contrato, e 2) ser parte no contrato como integrante do SFH, ou seja: ser parte em razão de financiamento concedido para fins habitacionais, na forma e para os fins estabelecidos na Lei nº 4.380/64, pois não havendo financiamento razão não há para exigir-se a qualidade de "integrante do Sistema Financeiro da Habitação".

Contudo, nos negócios de compra e venda de imóvel com liberação dos recursos do FGTS sem financiamento, não há nenhuma necessidade de qualquer das partes ter a qualidade de "integrante do Sistema Financeiro da Habitação", e, se qualquer dos comparecentes tem essa qualidade, isso não tem o condão de ampliar o alcance do art. 1º da Lei nº 5.049/66 para hipóteses distintas do objetivo da Lei nº 4.380/64, de forma a alterar a essência do artigo 108 do Código Civil, dispensando-se a Escritura Pública. Ou seja: no contrato o que importa não é a qualidade de quem comparece, mas a qualidade com que comparece.

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Na liberação de recursos do FGTS para aquisição da casa própria a Caixa Econômica Federal (CEF) atua na qualidade de agente operadora do FGTS (art. 4º, Lei nº 8.036/90) - cujo gestor é o Ministério da Ação Social (art. 6º, Lei nº 8.036/90) - e não como integrante do SFH, que é o fundamento legal para a CEF firmar negócios imobiliários mediante instrumento particular. A qualidade da CEF de integrante do SFH nada tem a ver com a sua qualidade de agente operadora do FGTS. São atribuições distintas e autônomas. Ser a CEF integrante do SFH somente é relevante para a hipótese de aplicação dos recursos do FGTS em operações de financiamento, onde, evidentemente, os recursos utilizados não são os do próprio financiado, mas os da massa de trabalhadores, segundo critérios estabelecidos pelo Conselho Curador do FGTS, na forma fixada no art. 9º da Lei nº 8.036/90, o que é completamente distinto dos objetivos da Lei nº 4.380/64, aditada pelo art. 1º da Lei nº 5.049/66. De forma que, invocar-se aquele dispositivo legal para firmar contratos particulares quando não há financiamento revela-se desvio de finalidade que não pode anular a essência do artigo 108 do Código Civil.

Aliás, a Corregedoria da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através do MM. Juiz de Direito Auxiliar, Dr. Luiz de Mello Serra, em publicação do DOERJ de 14/12/2005, pág. 52, acolheu parecer do DEIAC, no sentido de que "nas hipóteses do pagamento total pela conta do FGTS, ou originando-se o seu complemento de quaisquer outras fontes que não as entidades supramencionadas" (leia-se: "BNH ou entidades integrantes do SFH"), "entendemos que não cabe ao dispositivo acima acolher o contrato em tela" (leia-se: "parágrafo 5º do artigo 61 da Lei 4380 de 21/8/1964, acrescentado pela Lei 5049 de 29/06/1966"), "devendo-se sim, proceder pela forma prescrita no artigo 108 do Código Civil Brasileiro", e determinou que devem "as serventias de Registro Imobiliário cumprirem as leis vigentes mencionadas".

Ademais, tendo-se em mira o conceito de que parte é "cada uma das pessoas que firmam entre si um contrato" (Michaelis), ou, ainda: "No sentido técnico-jurídico, seja na linguagem forense ou na terminologia usada em referência aos contratos, parte é toda pessoa que intervém ou participa de um ato jurídico ou processual, como interessado nele" (De Plácido e Silva) (grifamos), é questionável dizer que a CEF seja parte nos negócios onde comparece tão-somente para liberar os recursos do FGTS, assim como é questionável dizer que o Banco sacado é parte num negócio firmado entre o emitente de um cheque e o favorecido simplesmente pelo fato do pagamento do negócio ser realizado através do Banco sacado, ainda na hipótese de cheque administrativo, salvo no tocante à responsabilidade pela provisão do fundo (AgRg no Ag 32.939/RJ, Rel. Min. Antônio Torreão Braz, Quarta Turma, julgado em 26.10.1993, DJ 22.11.1993 p. 24960).

Por último, neste tópico, para o caso de se imaginar que a utilização do FGTS se enquadra nos objetivos da Lei nº 4.380/64 em razão do seu objetivo social de viabilizar a casa própria, não se pode olvidar que a casa própria focada pela mencionada lei é a da população de baixa renda, o que afasta de plano a maioria dos negócios realizados com recursos do FGTS sem financiamento, pois a conta do FGTS de pessoas de baixa renda quase sempre é insuficiente para adquirir imóvel sem financiamento. A regra, portanto, é a escritura pública.


Promessa de compra e venda

Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza, em "A Promessa de Compra e Venda no NCC", artigo publicado no Boletim Eletrônico do Colégio Notarial – Seção Federal (www.notariado.org.br), diz que "na vigência do Código Civil de 1.916 prevaleceu o entendimento de que a promessa de compra e venda de bem imóvel poderia ser celebrada, em qualquer hipótese, por instrumento particular. Não incluído no rol dos direitos reais na legislação então vigente o direito do promitente comprador, acabou por predominar a corrente que defendia não ser o instrumento público da substância do ato".

O ilustre articulista aponta o cerne da admissibilidade da promessa de compra e venda por documento particular na égide do Código revogado: o direito do compromissário não tinha natureza real. Assim, bastava o compromisso de compra e venda ser firmado em caráter irrevogável para viabilizar a ação de adjudicação do direito contratado com vistas à obtenção da carta de adjudicação e o conseqüente registro no ofício imobiliário.

Porém, o novo Código Civil elevou à categoria dos direitos reais o direito do promitente comprador do imóvel, nos termos do art. 1.225, VII, e estabeleceu, no art. 1.417, que esse direito real à aquisição do imóvel é adquirido quando a promessa, em que não se pactuou arrependimento, é registrada no Cartório de Registro de Imóveis.

A relevância do art. 1.417 é acentuada no art. 1.418, que condiciona o direito de exigir a outorga da escritura definitiva, ou, em havendo recusa na outorga, o direito a requerer a adjudicação judicial do imóvel, ao promitente comprador titular de direito real; ou seja: àquele que registrou a promessa de compra e venda no Registro de Imóveis, tanto por exigência especial do art. 1.417 como pela regra geral do art. 1.227 do Código Civil.

Com isso, temos que essa nova orientação do Código Civil torna sem efeito a Súmula 239 do STJ, que reconhece o direito à adjudicação compulsória independente do registro do compromisso de compra e venda, pois não é aceitável que entendimento jurisprudencial prevaleça contra norma legal, sobretudo quando é clara, específica e atual.

Aliás, o Dr. Eduardo Pacheco, no artigo citado, diz: "Assim, é requisito indispensável para a adjudicação compulsória, dentre outros [...] o registro do instrumento de promessa. A Súmula 239 do STJ perdeu, portanto, eficácia para os negócios celebrados na vigência do novo Código". E acrescenta: "Joel Dias Figueira Jr., em Novo Código Civil Comentado, coordenação de Ricardo Fiúza, Saraiva, ressalta a perda de eficácia da súmula em mira, assinalando que o registro "se trata de condição necessária definida no próprio art. 1.417 do CC, ou seja, requisito que se opera ex lege para a configuração do próprio direito real, não podendo ser rechaçado por orientação pretoriana, ainda que sumulada, nada obstante perfeitamente adequada, antes do advento no novo CC".

Ademais, o art. 1.417, por via de conseqüência, torna inafastável a observância do art. 108 do Código Civil quanto à forma de instrumentar os negócios de promessa de compra e venda, cuja forma irrecusável em todos os casos é a escritura pública, mas que se torna obrigatória para os casos em que a lei não prevê o escrito particular, como é o caso dos contratos de promessa de compra e venda de unidades integrantes de incorporação imobiliária, nos termos da Lei nº 4.591/64, diga-se: o grande universo das promessas de compra e venda; pois sem escritura pública não será possível viabilizar o registro do contrato no Registro de Imóveis, e sem registro do contrato o promitente comprador não será detentor dos direitos reais de aquisição do imóvel, mas mero detentor de um crédito, correspondente ao valor desembolsado para aquisição do imóvel. Como conseqüência, caso o promitente vendedor desista do negócio, por alguma razão que lhe seja conveniente, o promitente comprador terá apenas direito às PERDAS E DANOS resultantes da resilição do contrato, mas não poderá exigir a outorga da escritura definitiva, por lhe faltar o requisito básico à pretensão: o direito real à aquisição do imóvel, na forma do art. 1.418 do Código Civil.

Assim, quanto ao art. 1.417 do Código Civil, duas conclusões são patentes: 1) o registro da promessa no Cartório de Registro de Imóveis para fins de constituição do direito real à aquisição é exigível em todos os casos de promessa de compra e venda de imóvel, visto que o artigo faz referência à "promessa de compra e venda, [...] celebrada por instrumento público ou particular", ou seja: em qualquer hipótese, observando, naturalmente, a forma instrumental do negócio estabelecida na lei (escritura pública ou escrito particular); 2) o art. 1.417 não possui conteúdo de forma dos negócios de promessa de compra e venda, sobretudo envolvendo direitos reais sobre imóveis, cuja matéria é regulada no art. 108 do Código Civil, posto que o conteúdo do art. 1.417 é a natureza dos direitos do promitente comprador, conforme destacado no TÍTULO IX – DO DIREITO DO PROMITENTE COMPRADOR.

Eduardo Pacheco, ainda, expressa opinião similar ao dizer: "O direito do promitente comprador é direito real (art. 1.225, VII), que se adquire com o registro (art. 1.227). À evidência, a promessa de compra e venda visa a constituição de direito real sobre imóvel, e portanto é da substância do ato a escritura pública. A promessa só terá eficácia, que é a aptidão para produzir efeitos (e dentre eles o de constituir direito real pelo registro), se for lavrada por instrumento público, ressalvadas as exceções".

De forma que, salvo as exceções legais, o compromisso de compra e venda de imóvel nunca deve ser firmado por documento particular, mas sempre por escritura pública.


O papel do Registro de Imóveis

A Lei nº 6.015/73, em seu artigo 1º diz que "os serviços concernentes aos Registros Públicos [...] para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei", esclarecendo, ainda, a Lei nº 8.935/94, artigo 1º, que os "Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos".

Assim, sem que façamos digressões sobre inúmeros conceitos doutrinários e jurisprudenciais acerca do papel do Registro de Imóveis, mas sem nos distanciar desses conceitos, não há dúvida que o Registro de Imóveis exerce um papel fundamental na segurança e eficácia dos negócios jurídicos. Esse papel é desempenhado, sobretudo, através da qualificação dos títulos que lhe são apresentados, mediante a observância de vários princípios (há quem enumere 21 deles - ERPEN, Décio Antonio e LAMANA PAIVA, João Pedro. Princípios do Registro Imobiliário Formal. Introdução do Direito Notarial e Registral, saFE, Porto Alegre, RS, 2004), sobretudo do princípio da legalidade, que se impõe logo no primeiro artigo da lei especial, ao dizer que "os serviços concernentes aos Registros Públicos [...] ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei". Ou seja: a observância dos limites legais é essencial para que o Registro de Imóveis cumpra seu papel, que é o de guardião da segurança e eficácia dos negócios jurídicos de que é repositório, sob pena de não realizar essa sua função.

Dentre o regime estabelecido na Lei º 6.015/73 está o disciplinado no artigo 221, incisos I a IV, que lista os títulos passíveis de ingresso no fólio registral imobiliário. No inciso II lemos que somente podem ser registrados "escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas [...]" (grifamos).

A lei que autoriza o negócio através de "escrito particular" é a que cria e/ou rege o negócio jurídico de forma especial, ou o Código Civil, de modo geral. Não havendo autorização em nenhum desses repositórios legais, o negócio não poderá ser firmado por instrumento particular com vista a obter o registro do título no Registro de Imóveis.

Contudo, diante do artigo 108 do Código Civil, esse mister se torna mais espinhoso para o registrador de imóveis, pois há minúcias que podem conduzir a interpretações e a procedimentos equivocados, tornando temerário o ato praticado.

O ponto escorregadio diz respeito à admissibilidade do instrumento particular para negociar direitos reais sobre imóveis com fundamento na parte final do artigo 108 do Código Civil, cujo requisito é o valor do imóvel transacionado, o que não pode ser confundido com o preço do negócio. A toda evidência, valor do imóvel e preço do negócio são coisas distintas. Todo imóvel tem um valor, mas nem todo negócio tem um preço, como ocorre com a doação pura (sem ônus ou encargo).

A questão é: quando o registrador pode considerar preenchido o requisito do art. 108 do Código Civil, referente ao valor do imóvel, para autorizar a instrumentação o negócio por documento particular?

Nos negócios de doação, venda, permuta e dação em pagamento, pode-se considerar como valor do imóvel a avaliação da coletoria estadual (doação) ou municipal (venda, permuta, dação em pagamento) para fins de cobrança do imposto devido, e não, necessariamente, o valor atribuído ao imóvel nos contratos gratuitos ou o valor da transação (preço) declarado nos contratos onerosos, por razões óbvias: nem sempre o valor declarado é real.

Assim, num escrito particular em que a compra e venda é realizada por valor inferior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País e a guia do imposto de transmissão apresenta avaliação do imóvel com valor superior, está patente que o escrito particular não atende o disposto no artigo 108 do Código Civil, devendo ser exigida a escritura pública.

Nos negócios de constituição de garantia real, porém, não é possível utilizar o paradigma acima, em razão desses negócios não estarem sujeitos ao imposto de transmissão (art. 156, II, CR/88). Como o requisito do art. 108 não é o valor do negócio (preço), que no caso seria o valor do empréstimo, quase sempre inferior ao valor do imóvel, a aferição do requisito autorizador do escrito particular deverá ser o valor atribuído ao imóvel para fins de execução da dívida, ainda que em geral essa avaliação não corresponda ao valor efetivo do imóvel. O ideal, nesse caso, seria que se apresentasse junto com o título particular uma avaliação de um profissional habilitado. Porém, essa providência, além de onerosa, prescinde de fundamento legal.

Diante do exposto, destaca-se o papel do Registro de Imóveis em garantir a segurança e a eficácia dos negócios jurídicos que lhe são submetidos à qualificação para fins de constituição de direitos reais sobre imóveis, obstando, sem receio, o registro de documentos que não atendem o requisito de forma prescrita em lei, como é o caso dos escritos particulares de compra e venda de imóvel pagos, total ou parcialmente, com recursos do FGTS, mas sem o concomitante financiamento do SFH, haja visto a falta de autorização legal nesse sentido, como também de qualquer escrito particular de compromisso de compra e venda que não esteja precisamente amparado na lei, sejam os relativos às incorporações imobiliárias sejam os relativos ao valor do imóvel. A acolhida desses títulos sem a necessária autorização legal constitui violação que compromete a segurança e a eficácia dos negócios jurídicos imobiliários, nos termos da Lei dos Registros Públicos e do artigo 108 do Código Civil.


O valor da permissão do documento particular em razão do valor do imóvel

A ressalva na parte final do artigo 108 do Código Civil vem de certa forma perpetuar o disposto no art. 134, II, do Código Civil de 1916, de utilidade questionável. Perdeu o legislador uma boa oportunidade para ajustar aquela previsão legal a uma realidade prática que melhor atenda aos interesses sociais, regra de valor predominante em todo direito moderno, sem descuidar da segurança jurídica correspondente.

Basta fazermos um levantamento em todos os registros imobiliários do país para nos darmos conta do insignificante número de casos em que alguém se utilizou apropriadamente daquela previsão legal para instrumentar um negócio jurídico por documento particular. E as razões são óbvias.

Primeiro: quem negocia imóvel de tão baixo valor, em regra não tem a menor idéia que existe essa previsão legal. Segundo: quem sabe dessa previsão, raramente, mas muito raramente, conhece o Direito o suficiente para elaborar um documento particular de forma que possa ter ingresso no Registro de Imóveis, levando-se em consideração que esses contratos devem ser elaborados em sintonia com as disposições dos artigos 222 e 225 da Lei nº 6.015/73; com as normas concernentes à capacidade e representação das partes, nos termos do Código Civil, e demais legislação (lei, em sentido material e formal, provimentos, instruções normativas, etc) no que diz respeito aos documentos (pessoais e do imóvel) e aos tributos indispensáveis à prática do ato. Ou seja: um universo infinitamente reduzido de pessoas faz uso dessa previsão legal.

Assim, o melhor é sempre se valer da escritura pública para viabilizar a regularização do imóvel, valendo-se do indiscutível conhecimento do tabelião acerca da matéria, evitando-se aborrecimentos e desgastes por ocasião do registro do título no Registro de Imóveis. Contudo, a permissão do instrumento particular para negócios relativos a direitos reais sobre imóveis na hipótese do art. 108 releva descompasso com a realidade social quanto à melhor forma de se promover a regularização desses negócios. O mais lamentável é que isso ocorre exatamente quando há uma enorme consciência jurídica da importância da regularização fundiária como fator, sobretudo, e antes de tudo, de inclusão social, pois essa permissão desprestigia a regularização da forma mais simples e segura: a escritura pública.

Não há dúvida que o legislador se distraiu da essência do artigo 108 do Código Civil quando flexibilizou a indispensabilidade da escritura pública para negócios jurídicos levando em conta o valor do imóvel. Em vez disso, teria feito melhor se tivesse mantido o foco num valor de maior expressão que o valor do imóvel: a segurança jurídica dos negócios realizados através da escritura pública.

É viabilizando a escritura pública para todos os negócios jurídicos, com emolumentos condizentes com cada negócio, que se cumpre a essência do artigo 108 do Código Civil, e não dispensando a escritura pública exatamente para aqueles que mais necessitam dela: os menos favorecidos e ou leigos.

Sobre o autor
Valestan Milhomem da Costa

especializando em Direito Registral Imobiliário, tabelião, oficial substituto do 1º Ofício de Cabo Frio (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Valestan Milhomem. A indispensabilidade da escritura pública na essência do art. 108 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1181, 25 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8964. Acesso em: 5 nov. 2024.

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