Quando se fala em contrato de transporte, fala-se principalmente na responsabilidade civil do transportador, nas fontes legais que o disciplinam, segundo os diferentes modos de transporte e os seus tipos, se nacional ou internacional.
Em transportes de pessoas, a resposta costuma ser mais simples: a fonte legal primaz, senão única, é o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, excetuando o caso do transporte aéreo internacional, em que, sobrepondo-se ao CDC, prevalece a Convenção de Montreal[1].
Em relação ao transporte de carga, a situação é mais complexa e exige maior atenção.
Isso porque a fonte aplicável dependerá do modo de transporte e de seu âmbito. Breve análise do art. 732 do Código Civil se faz importante para a boa compreensão do assunto.
Vejamos:
Art. 732. Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais.
Dos muitos ramos do Direito, talvez o dedicado aos transportes é o que mais se alinha ao conceito de diálogo entre as fontes.
E no que consiste esse conceito?
Consiste na aplicação simultânea de várias fontes legais a determinado ato-fato jurídico, sem que uma exclua outra, sem se falar em conflito aparente de normas. E, importante dizer, uma aplicação simultânea sem que haja descaracterização de qualquer das fontes aplicadas, sob pena de ofensas sistêmicas como a exposta pelo princípio de que os juízes não fazem a lei (Judges do not make Law).
Diálogo entre as fontes não é escolher a parte que interessa de uma norma e a parte conveniente de outra, mas invocar as duas, integralmente, para o fortalecimento de argumento jurídico e a consequente defesa de direitos.
Mais do que um conceito, o diálogo entre as fontes é teoria consagrada internacionalmente. Sergio Malta Prado bem a explica[2]:
A ideia de que as leis devem ser aplicadas de forma isolada umas das outras é afastada pela teoria do diálogo das fontes, segundo a qual o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma unitária. A teoria do diálogo das fontes foi idealizada na Alemanha pelo jurista Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg e trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A teoria surge para fomentar a ideia de que o Direito deve ser interpretado como um todo de forma sistemática e coordenada. Segundo a teoria, uma norma jurídica não excluiria a aplicação da outra, como acontece com a adoção dos critérios clássicos para solução dos conflitos de normas (antinomias jurídicas) idealizados por Norberto Bobbio. Pela teoria, as normas não se excluiriam, mas se complementariam. Nas palavras do professor Flávio Tartuce, "a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no futuro".
A jurista Claudia Lima Marques, após discorrer sobre a exclusão da norma pela aplicação dos critérios clássicos de solução de antinomias, ensina que a "doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão."
E tomando as palavras da jurista Claudia Lima Marques[3], ainda destaca em seu ótimo artigo:
"É o chamado 'diálogo das fontes' (di + a = dois ou mais; logos = lógica ou modo de pensar), expressão criada por Erik Jayme, em seu curso de Haia (Jayme, Recueil des Cours, 251, p. 259), significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro-saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais.
Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que, em face do atual 'pluralismo pós-moderno' de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo (Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, II, p. 60 e 251 e ss.).
O uso da expressão do mestre, 'diálogo das fontes', é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada 'coerência derivada ou restaurada' (cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a 'antinomia', a 'incompatibilidade' ou a 'não coerência'.
'Diálogo' porque há influências recíprocas, 'diálogo' porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato - solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)".
Voluntaria ou involuntariamente, parece-me que o legislador civil brasileiro abraçou a teoria na redação do artigo, visto que permite a aplicação de leis especiais e de tratados e convenções internacionais, embora faça uma ressalva importantíssima: “desde que não contrariem as disposições deste Código”.
Trata-se do que ora é chamado de diálogo entre as fontes condicional. Sim, há o diálogo, mas há ainda – e mais – uma condição que é taxativa e pressuposto de sua validade: a harmonia com as disposições codificadas. E quando se fala em disposições do Código não se fala apenas daquelas inserida na parte especial destinada ao contrato de transporte, mas de todas, absolutamente todas.
Assim, não sinto constrangimento algum em dizer que nenhuma norma, especial ou convencional, pode limitar a responsabilidade do transportador. A limitação ofende diretamente o princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 944[4].
Princípio que não é apenas civil, mas também constitucional, previsto no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais.
O art. 5º, V, da Constituição Federal diz expressamente que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Embora conectada ao direito de resposta, a ideia de proporcionalidade é direcionada ao Direito como um todo, prévia da seguinte afirmação: o Brasil reconhece a reparação de dano ampla e integral.
E não há proporcionalidade, não há reparação ampla e integral se o causador do dano for de algum modo beneficiado por norma limitadora de sua responsabilidade, ainda que disposta em lei especial ou em convenção internacional. A primazia do Código Civil é inquestionável.
Igualmente, nenhuma norma extravagante de Direito de Transportes pode prejudicar o ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado, já que seu direito contra o transportador deriva menos do descumprimento do contrato de transporte e mais do adimplemento do contrato de seguro.
Leis especiais ou convenções internacionais que tratam do transporte de coisas não são exigíveis ao segurador sub-rogado quando na busca do ressarcimento em regresso contra o transportador.
Se oponíveis ao segurador sub-rogado, a saúde do negócio de seguro estaria sob grave risco e o mútuo seria severamente prejudicado. A regra do art. 786 do Código Civil[5], que dispõe sobre a sub-rogação e o direito-dever de ressarcimento, não pode ser prejudicada minimamente.
Há muitas leis especiais que tratam de transportes no Brasil. O famoso Decreto das Estradas de Ferro, 2.681/1912; o Decreto-lei 116/1967, que dispõe sobre as operações inerentes ao transporte de mercadorias por via d'água nos portos brasileiros, delimitando suas responsabilidades e tratando das faltas e avarias, a Lei 11.442/2007, que trata do transporte rodoviário de cargas, entre tantas outras.
No plano internacional há poucas. Algumas normas do Mercosul sobre o transporte rodoviário, mas que em nada conflitam com a ordem jurídica brasileira, e, no caso específico do transporte aéreo, a Convenção de Montreal, que bisou a de Varsóvia, e que é alvo de muitas controvérsias, como se exporá melhor adiante.
Já no transporte marítimo não há qualquer convenção internacional vigente. O Brasil, felizmente, não incorporou nenhuma delas ao seu ordenamento jurídico. Aliás, salvo a de Hamburgo, dos anos 70 do século passado, nem mesmo signatário foi.
Isso faz que o país tenha um dos sistemas jurídicos mais eficazes e justos no trato de temas de Direito Marítimo, sobretudo em relação à responsabilidade civil do transportador.
Enfim, a teoria do diálogo entre as fontes é uma realidade e produz bons resultados. Normas especiais e convencionais podem e devem ser aplicadas no trato das questões de Direito de Transportes, desde que não colidam minimamente com as disposições e o próprio espírito do Código Civil.
Feitas essas considerações gerais, passa-se a dizer, de modo sumário que:
- Ao transporte rodoviário se aplicam as regras da Lei Federal 11.442/2007 e o Código Civil (arts. 743 a 756), quando nacional e, além destas regras, as normas do Mercosul, quando internacional.
- Ao transporte ferroviário, o Decreto 2.681/1912 e os artigos 743 a 756 do Código Civil, sendo que só existe (e pouco, de sublinhar) transporte nacional.
- Ao transporte aéreo, quando nacional, aplicam-se o CBA – Código Brasileiro de Aeronáutica, em caráter principal, e o Código Civil subsidiariamente. Já no transporte internacional prevalece, com os devidos cuidados interpretativos, a Convenção de Montreal, que bisou a de Varsóvia. Há de se ter especial cuidado para o Código Civil não ser contrariado. Aqui se fala destacadamente do princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 944, alvo de constantes polêmicas quando confrontado com a previsão convencional de limitação de responsabilidade do transportador aéreo.
- Ao transporte marítimo se aplicam sempre as regras do Código Civil e as do Decreto 116/1967, seja o nacional, seja o internacional. Amplia-se a ideia de transporte marítimo para a de aquaviário, incluindo-se o fluvial. O transporte internacional (navegação de longo-curso) é disciplinado pelas regras brasileiras porque o Brasil não incorporou ao seu sistema legal nenhuma das Convenções Internacionais de Direito Marítimo. Para os transportes contratados, iniciados ou finalizados no Brasil têm-se somente as regras legais brasileiras como hábeis e incidentes.
Para concluir é como exposto antes, é de se ressaltar que o art. 732 é claro e taxativo ao dispor que nenhuma regra do Código Civil pode ser contrariada pelas leis especiais ou convenções internacionais.
Assim, na responsabilidade civil do transportador de carga pelos danos derivados do descumprimento do contrato de transporte, devem estes ser medidos e reparados em sua devida extensão, observando o princípio da reparação civil integral (art. 944 do Código Civil).
Sem que se tenham por ofendidos os conceitos vetores das regras de solução dos conflitos aparentes de normas, o Código Civil sempre gozará de primazia, ainda que para isso muitos torçam o nariz. Essa afirmada primazia não decorre da vontade do intérprete de ocasião, mas do que a lei expressamente determina ao dispor “desde que não contrariem as disposições deste Código).
E como último comentário: é de se evidenciar a autonomia do contrato de seguro relativamente ao de transporte.
Reafirma-se essa autonomia porque a maior parte dos litígios envolvendo a responsabilidade civil do transportador de carga inadimplente, autor de ato ilícito, é promovida por seguradores sub-rogados. Embora o ato-fato de um litígio dessa ordem seja o dano contratual, há de se lembrar que o direito de regresso de um segurador não deriva da falta do transportador na execução do seu contrato, mas da lei, do fenômeno da sub-rogação.
Busca o segurador o ressarcimento em regresso contra o causador do dano, não exatamente contra a pessoa específica do transportador inadimplente, por mais que as duas figuras se confundam em muitos casos concretos. Beneficia-se o segurador da imputação objetiva de responsabilidade do transportador não exatamente porque devedor de obrigação contratual de resultado, mas por causador de dano dentro de um contexto de manejador de fonte de risco, o que todo transportador é.
Tais sutilezas jurídicas não se se fazem por casuísmo, mas em homenagem à verdade e ao correto enquadramento jurídico de casa coisa, segundo sua natureza. O transporte de cargas é atividade de risco por excelência, e por isso, quando protagonista de danos e prejuízos, o transportador responde sempre objetivamente, dada sua singular condição de exercente de atividade de risco, como bem dispõe o art. 927 do Código Civil.
Todo o esforço há de ser empreendido para se preservar o direito do credor insatisfeito, da vítima do dano, levando-se em conta a imputação objetiva de responsabilidade do danador e seu dever de reparação civil integral.
[1] Tema 210 de repercussão geral
[2] https://migalhas.uol.com.br/depeso/171735/da-teoria-do-dialogo-das-fontes
[3] In Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90. apud https://migalhas.uol.com.br/depeso/171735/da-teoria-do-dialogo-das-fontes
[4] Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.
[5] Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
§1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.
§2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.