RESUMO: Após o julgamento do Recurso Especial 1.860.791, ocorrido em 09/02/2021, de relatoria da Ministra Laurita Vaz da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o crime tipificado no art. 345 do CP se consuma pela tentativa. Nesse sentido, como a conduta constante no tipo penal é “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”, não é preciso sucesso na empreitada para caracterização da infração penal. A doutrina material ostenta divergência quanto ao tema, motivo pelo qual, o objetivo do presente artigo é analisar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer que o crime previsto no art. 345 do Código Penal é formal e não material, e se há implicações principiológicas neste novo posicionamento.
Palavras-Chave: Direito Penal. Modulação. Superior Tribunal de Justiça.
ABSTRACT: After the trial of Special Appeal 1.860.791, occurred on 02/09/201, of the rapporteurship of Minister Laurita Vaz of the 6th Panel of the Superior Court of Justice (STJ), the crime typified in art. 345 of the PC is consummated by the attempt. In this sense, as the constant conduct in the criminal type is "to take justice into our own hands, to satisfy pretense, although legitimate, except when the law permits", it is not necessary to succeed in the effort to characterize the criminal offense. The material doctrine bears divergence on the subject, which is why the objective of this article is to analyze the position of the Superior Court of Justice by recognizing that the crime provided for in art. 345 of the Penal Code is formal and not material, and whether there are principleimplications in this new position.
Keywords: Criminal Law. Modulation. Superior Court of Justice.
1. INTRODUÇÃO
Trata-se de Recurso Especial julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, especializada na grande-área de Direito Penal. De relatoria da Ministra Laurita Vaz, a Corte reconheceu, por modulação, que o crime previsto no art. 345 do Código Penal é formal, ou seja, para o reconhecimento do ilícito independe de consumação da atividade do agente.
A rigor, a origem do litígio dirimido pela corte, fora mediante interposição de Recurso Especial do apenado, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição da República, contra o acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios na Apelação Criminal n. 2017070033094 (0003156-13.2017.8.07.0007).
Ao se analisar o relatório do precedente, consta-se que o Juízo de primeiro grau condenou o então recorrente às penas de 21 (vinte e um) dias de detenção e de 28 (vinte e oito) dias de prisão simples, em regime aberto, bem assim ao pagamento de reparação por danos morais fixada em R$ 954,00 (novecentos e cinquenta e quatro reais), como incurso, respectivamente, no art. 345 do Código Penal e no art. 21 da Lei das Contravenções Penais, ambos c.c. os arts. 5.º e 7.º da Lei n. 11.340/2006.
Ademais, houve apelação somente defensiva, a qual foi parcialmente provida, a fim de absolver o recorrente, no tocante à contravenção penal, bem assim reduzir a sua reprimenda, quanto ao crime do art. 345 do Código Penal, para 21 (vinte e um) dias de detenção, com a concessão de sursis, além de diminuir a reparação por danos morais para R$ 300,00 (trezentos) reais. O acórdão recebeu a seguinte ementa (fls. 173-174).
Por sua vez, consta do relatório do precedente, que a corte de origem (Tribunal Estadual), já se filiava a este posicionamento, in verbis:
APELAÇÃO CRIMINAL. INFRAÇÕES PENAIS DE EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES E VIAS DE FATO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. INVIABILIDADE. PEDIDO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE EXPRESSA. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES PARA A MODALIDADE-TENTADA. INVIABILIDADE. PEDIDO DE AFASTAMENTO OU REDUÇÃO DA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REDUÇÃO DO VALOR MÍNIMO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Em infrações penais praticadas no âmbito doméstico e familiar, a palavra da vítima assume especial relevância. No caso dos autos, a vítima narrou de forma segura e harmônica que, após ter encontrado o réu na rua, este passou a exigir o seu aparelho celular, frisando que ele correu atrás dela e a puxou pelo cabelo e braço, não havendo que se falar em absolvição por insuficiência probatória. 2. Embora a denúncia e a sentença tenham imputado ao apelante a prática das infrações penais de exercício arbitrário das próprias razões e vias de fato, observa-se que a referida contravenção penal foi absorvida pelo delito previsto no artigo 345 do Código Penal, em virtude do princípio da subsidiariedade expressa. 3. Inviável acolher o pedido de desclassificação do crime de exercício arbitrário das próprias razões para a modalidade tentada, uma vez que, em que pese o réu não tenha conseguido pegar o celular da vítima, ele iniciou os meios de execução, ao puxar o cabelo e o braço da ofendida. 4. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, firmado no julgamento dos Recursos Especiais n° 1.643.051/MS e 1.675.874/MS, o Juízo criminal é competente para fixar o valor de reparação mínima a título de danos morais, em processos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, desde que haja pedido expresso na denúncia ou queixa, ainda que não especificada a quantia da indenização e sem necessidade de instrução probatória específica quanto à ocorrência do dano moral. 5. Considerando que a extensão do dano não foi grave, que a intensidade da dor experimentada pela vítima não excedeu à normalidade para o tipo penal,bem como se levando em consideração as condições econômicas do réu e da ofendida, mostra-se razoável a fixação como valor mínimo de reparação a título de danos morais a quantia de R$ 300,00 (trezentos reais). 6. Recurso conhecido e parcialmente provido para, mantida a condenação do apelante nas sanções do artigo 345 do Código Penal, na forma dos artigos 5° e 7°, ambos da Lei n° 11.340/2006, à pena de 21 (vinte e um) dias de detenção, em regime inicial aberto, suspensa a execução da pena pelo período de 02 (dois anos),absolvê-lo das sanções do artigo 21 do Decreto -Lei n° 3.688/1941, bem como para reduzir o valor mínimo de reparação a título de danos morais para R$ 300,00 (trezentos reais).
Ao se debruçar no presente case, o Superior Tribunal de Justiça fixou o entendimento, mesmo que inter partes, de que a conduta típica prevista na dinâmica do artigo 345 do Código Penal é formal e não material, ou seja, a sua consumação ocorre desde o acontecimento do fato e início dos meios de execução da conduta, independentemente do resultado.
2. DA ANÁLISE DO TIPO DO ART. 345 DO CÓDIGO PENAL
A tipificação do crime de exercício arbitrário das próprias razões ocorreu em vista da proibição da autotutela, conforme se lê no dispositivo. Por sua vez, em momentos remotos, a dinâmica para a solução de conflitos se consumava pelos próprios envolvidos ou de espécies de chefes de tribos, tratando-se de algo similar a uma justiça privada, que se denominava “autotutela”.
Visando trazer ao mundo jurídico tal reprimenda, o art. 345 do CP prevê:
Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único. Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
O crime material só se consuma com a produção do resultado naturalístico, como a morte no homicídio. O crime formal, por sua vez, não exige a produção do resultado para a consumação do crime, ainda que possível que ele ocorra. Exemplo de crime formal é a ameaça:
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Veja-se que o crime de ameaça apenas prevê a conduta de quem ameaça, não importando se o resultado da ameaça aconteceu, tão pouco se a pessoa se sentiu constrangida ou ameaçada. A intimidação é irrelevante para a consumação do delito.
SANCHES (2021) destaca que a doutrina diverge sobre o momento consumativo do crime. Isso porque, a primeira corrente sustenta que o delito é formal, consumando-se antecipadamente, com o emprego dos meios a fim de que seja satisfeita a pretensão.
Por sua vez, para a segunda corrente, o crime é material, exigindo, para a sua caracterização, a efetiva satisfação da pretensão, conforme ensinamentos de Nélson Hungria[1], Heleno Fragoso[2] e Mirabete[3].
SANCHES (2021) destaca, ainda, a existência de clara e apontada divergência doutrinária, conforme ensinamento de NORONHA[4], adepto da primeira orientação:
“Discordamos dos eminentes Profs. Nélson Hungria e Heleno C. Fragoso, ao sustentarem ponto de vista contrário: consuma-se com a satisfação da pretensão. A oração do Código não comporta esse entendimento: tal satisfação é o escopo ou fim do agente, constituindo o dolo específico; não necessita ser alcançado. Completa-se o crime com o emprego ou uso do meio arbitrário com o fim de satisfazer uma pretensão”.
Guilherme de Souza Nucci (2017, p. 1.184) destaca a existência da citada divergência doutrinária, mas assim como Noronha, se filia à primeira corrente: “Classificação: formal (há quem sustente ser material, de modo que só estaria consumado o crime se o agente satisfizesse a sua pretensão); de forma livre, comissivo, instantâneo; unissubjetivo; plurissubsistente”.
Pelo levantamento nos principais doutrinadores em Direito Penal, se atesta que o Superior Tribunal de Justiça se inclinou em mesmo sentido, em que pese a clássica gama de ensinamentos quanto ao crime suscitado recorram a caminho divergente.
3. DA INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA REALIZADA PELO STJ
Visando pacificar a séria divergência jurisprudencial e doutrinária quanto ao momento consumativo do presente tipo penal, em 09/02/2021, o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio da 6ª Turma de Direito Penal, estabeleceu que há consumação, quando iniciados os meios de execução do delito, independente do resultado.
Por assim dizer, o STJ considerou que o crime previsto no artigo 345 do CP é de natureza formal, ou seja, não comporta a dinâmica de crimes materiais, pois para o pretório, independe o preenchimento da finalidade do agente.
Nesse sentido, a Ministra Laurita Vaz destacou que:
No caso em análise, pretende-se a desclassificação do crime de exercício arbitrário das próprias razões para a modalidade tentada.
O delito de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no Código Penal, está assim tipificado: “Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.”
Embora haja controvérsia doutrinária acerca da natureza formal ou material do delito, com abalizados autores defendendo cada uma das posições, filia-se à corrente que defende o primeiro entendimento.
Pela interpretação da elementar “para satisfazer“, conclui-se ser suficiente, para a consumação do crime do art. 345 do Código Penal, que os atos que buscaram fazer justiça com as próprias mãos tenham visado obter a pretensão, mas não é necessário que o agente tenha conseguido efetivamente satisfazê-la, por meio da conduta arbitrária. A satisfação, se ocorrer, constitui mero exaurimento da conduta.
Sendo assim, por se tratar de crime formal, uma vez praticados todos os atos executórios, consumou-se o delito, a despeito de o autor da conduta não ter logrado êxito em sua pretensão, que, no caso, era a de pegar o celular de propriedade da vítima, a fim de satisfazer dívida que esta possuía com ele” (REsp 1.860.791, j. 09/02/2021)
Por força deste entendimento, a corte alçou o Informativo 685:
685 do STJ – Direito Penal.
Resumo: O crime de exercício arbitrário das próprias razões é formal e se consuma com o emprego do meio arbitrário, ainda que o agente não consiga satisfazer a sua pretensão
Em que pese a inexistência da sistemática de Recurso Repetitivo ou Sumulado, que retira o case de vinculação dos demais Tribunais do país, este entendimento serve de persuasão para com as jurisdições inferiores, sendo que a presente matéria adquirir uma robustez jurisprudencial muito maior e mais ampla que a de antes.
Havendo a disciplina do Superior Tribunal de Justiça por meio de informativo específico, e por decisão acordada à unanimidade por uma das turmas especializadas em Direito Penal, a tendencia de sedimentação do tema no país é visível e esperada.
Contudo, mesmo com a presente mutação que vem de muito, ainda é necessário se aprofundar mais e mais quanto ao tipo posto em análise, pois da leitura dogmática do artigo 345 do Código Penal, não consta a menção de um crime formal, filiando-se à clássica doutrina de Nelson Hungria, afinal, a expressão de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão”, seria, em tese, o momento consumativo do crime.
Do caso concreto, uma vez que não houve a consumação, pois inexistente a “justiça pelas próprias mãos” e insatisfeita a pretensão, não haveria conduta típica, na forma do art. 345 do CP, enquanto conduta dolosa.
Em contrassenso ao firmado, pode o STJ ter fixado uma interpretação gravosa, pois interpretar norma jurídica menos favorável ao réu é conduta não admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, nem a analogia denominada in malam partem, sob pena de grave afronta ao consagrado princípio da reserva legal (CR/88, art. 5º, XXXIX e CPB, art. 1°).
Reafirma-se que, alterar a redação do artigo 345 do CP, ao estender a sua redação, teleologicamente, de forma mais gravosa ao réu, haverá, portanto, evidente reflexo em relação ao poder punitivo estatal, o que não se coaduna com a possibilidade de incidência da analogia im malam partem, sob pena de grave afronta ao princípio da legalidade (LIMA, 2016).
4. CONCLUSÃO
Mediante o brevemente analisado, o Superior Tribunal de Justiça pacificou, mesmo que inter partes, o dilema de consumação do crime do art. 345 do Código Penal. Através da exegese realizada pela Ministra Laurita Vaz, o momento consumativo do crime independe do resultado pretendido, havendo a sua consumação com a simples ocorrência de atividades que indiquem o dolo em atingir o objeto.
Noutro giro, se demonstrou que a doutrina mais recente caminha em sentido simétrico ao entendimento do STJ. Contudo, ainda assim, para um entendimento do tipo e seus elementos subjetivos, com uma lente mais holitistica, não se deve desprezar o defendido pela clássica doutrina material penal, em especial ao defendido por Nelson Hungria, de que o presente tipo, em verdade, ocorre somente com a consumação, materialmente, a despeito do firmado.
Esta tese merece atenção, pela própria redação do art. 345 do Código Penal, afinal, a expressão de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão”, seria, em tese, o momento consumativo do crime.
Do caso concreto, uma vez que não houve a consumação, pois inexistente a “justiça pelas próprias mãos” e insatisfeita a pretensão, não haveria conduta típica, na forma do art. 345 do CP, enquanto conduta dolosa. Se, de fato, da redação do Código Penal há esta expressão, o STJ, em verdade, cravejou um entendimento vedado pela principiologia do Direito Penal, pois a interpretação realizada pela 6ª Turma de Direito Penal, encontra óbice pela analogia In Malam Partem.
REFERÊNCIAS
FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: José Bushatsky, v. 4 (1959), p. 1031;
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
MIRABETE. Manual de direito penal, v. 3, p. 418;
NORONHA, Direito penal, v. 4, p. 401;
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Editora Fórum, 2017;
SANCHES. 685: Exercício das próprias razõe.. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/03/02/685-exercicio-arbitrario-das-proprias-razoes-e-crime-formal-e-se-consuma-com-o-emprego-meio-arbitrario/; acesso em 07 mar 2021