1. INTRODUÇÃO
Os direitos e garantias fundamentais exercem, na atualidade, um importante papel. Não é por outro motivo que as Constituições modernas, em quase sua totalidade, dispensam especial atenção às garantias e liberdades fundamentais.
Não obstante, há situações em que a violação a tais direitos é clara e se faz necessária a intervenção do Poder Judiciário para fazer cessar a lesão e restaurar os direitos violados.
As Cortes Constitucionais, nesse cenário, exercem importante papel, seja nas ações voltadas ao controle de constitucionalidade abstrato, seja quando da realização de tal controle no caso concreto, sem ignorar os institutos específicos voltados a salvaguardar os direitos e garantias fundamentais.
No ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, a lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção é tutelada pelo instituto do habeas corpus. Há institutos outros que tutelam os direitos fundamentais quando da omissão do legislador ou de violação de direitos ou garantias fundamentais, tal como ocorre, respectivamente, com o Mandado de Injunção e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Nesse contexto, o presente estudo subdivide-se em três partes, todas umbilicalmente ligadas. A primeira aborda as características gerais do recurso de amparo com espeque no ordenamento jurídico espanhol, no qual esse instituto foi consagrado no texto constitucional desde o ano de 1970, exercendo papel inquestionável na tutela dos direitos fundamentais. A segunda discorre sobre a ausência, no âmbito da Justiça Constitucional, de instituto similar ao recurso de amparo no ordenamento português, situação que fomenta críticas ao sistema português de fiscalização da constitucionalidade. Na terceira e última parte, destaca-se a importância do recurso de amparo e os principais obstáculos à sua consagração no ordenamento jurídico português, obstáculos esses, vale dizer, que podem ser superados.
Para tanto, adota-se como método de abordagem o dedutivo e como técnica de pesquisa a documental indireta, pois se busca na doutrina, legislação, artigos, dentre outras fontes, elementos para a compreensão do problema.
2. ASPECTOS GERAIS DO RECURSO DE AMPARO CONSTITUCIONAL A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESPANHOL
O recurso de amparo, em apertada síntese, tem por objetivo a tutela dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, o direito à igualdade e o direito à vida, dentre outros desta mesma natureza.
Ricardo Jorge da Ascensão Lopes Correia1 apresenta três características principais do recurso de amparo. Para o autor a primeira delas é que o recurso tem natureza subsidiária, só podendo ser utilizado quando esgotadas as vias ordinárias judiciais. A segunda característica é a especialização que reveste o instituto, já que o objetivo é o exame de eventuais violações de direitos constitucionais, não sendo possível a análise de legislação ordinária. A terceira e última característica consiste no seu caráter extraordinário, ou seja, não é um simples mecanismo de proteção aos direitos fundamentais, exatamente porque se faz necessário esgotar as demais vias para fazer cessar qualquer violação a direitos.
De acordo com Ricardo Correia2, desde o ano de 1978 a Constituição Espanhola consagra o recurso de amparo, influenciada, a um só tempo, pela própria legislação espanhola, pela consagração do instituto no Direito Mexicano3 e, também, por institutos similares, como a queixa constitucional no ordenamento jurídico alemão e pelo recurso de direito público na legislação sueca.
Nos termos do art. 53º, nº 2, da Constituição Espanhola, qualquer cidadão do povo pode obter a tutela das liberdades e dos direitos a que se referem o art. 14º e a 1ª Seção do Capítulo II, perante os Tribunais ordinários, por meio de um procedimento pautado nos princípios da preferência e sumariedade e, se for o caso, através do recurso de amparo, este diretamente no Tribunal Constitucional4.
Na Espanha, o Tribunal Constitucional funciona em duas câmaras: a primeira é composta pelo presidente do tribunal e mais cinco membros; a segunda pelo vice-presidente e outros cinco membros, nomeados pelo Tribunal Pleno por maioria de votos. Tais câmaras são encarregadas de julgar recursos de amparo5.
No direito espanhol a lesão a direito fundamental, a ser amparado pelo amparo constitucional, pode ser de natureza objetiva ou subjetiva. Sendo subjetiva, tem legitimidade para interpor o recurso de amparo aquele que foi particularmente lesado. Porém, se a lesão for de natureza objetiva, ou seja, inerente a toda uma comunidade, também são legitimados o Ministério Público e o Defensor do Povo6.
Ricardo Correia7 discorre sobre os pressupostos para a interposição do recurso de amparo no ordenamento espanhol. Ressalta o autor que se faz necessária efetiva violação a um direito ou liberdade fundamental. Esse pressuposto decorre da excepcionalidade do recurso de amparo que tem caráter extraordinário, o que também veda que o Tribunal venha a conhecer assuntos relativos à legalidade das normas.
O segundo requisito para a interposição consiste na constatação de violação a direito ou liberdade fundamental e que esta violação não tenha sido reparada nas vias ordinárias. Logo, é imprescindível, para a interposição do recurso de amparo, que o indivíduo tenha esgotados os recursos adequados ao reparo da lesão8.
Ademais, o recurso de amparo tem natureza subsidiária, motivo pelo qual a existência de outro recurso hábil a sanar a violação a liberdades ou direitos fundamentais obsta a sua interposição.
Desta feita, como se extrai das considerações supra, não pode o recurso de amparo ser interposto contra ato legislativo. Tal questão é criticada por Ricardo Correia9, que disserta tratar-se de uma forma de minimizar a “figura da auto-questão de inconstitucionalidade”.
O autor prossegue citando que em Portugal os atos legislativos podem ser analisados pelo Tribunal Constitucional. Logo, após ser uma norma declarada inconstitucional ou ilegal, no caso concreto, em três situações distintas, deve o Tribunal Constitucional declará-la inconstitucional ou ilegal10.
Dando seguimento à análise das peculiaridades do instituto e sua disciplina no direito espanhol, verifica-se a problemática do prazo, não uniformizado, tendo em vista que o recurso de amparo pode ser intentado em vias processuais diversas.
Tem-se, assim, o prazo de vinte dias, a contar da decisão proferida em processo judicial, quando a violação do direito ou liberdade tem origem em ação ou omissão da Administração Pública; é de trinta dias o prazo, a contar da notificação da decisão proferida em sede judicial, quando a lesão a direitos ou liberdades for proveniente de ato ou omissão de um órgão judicial; é de três meses o prazo para interposição quando a violação a direito ou liberdade tenha como fundamento decisão ou ato desprovido de valor legal11.
Anote-se que em se tratando de ação ou omissão de um órgão judicial, o recurso de amparo somente pode ser proposto após esgotadas todas as vias ordinárias.
No que tange decisão ou atos desprovidos de valor legal, não se faz necessário esgotar a via judicial, ou seja, o recurso de amparo pode ser interposto diretamente junto ao Tribunal Constitucional Espanhol. Trata-se de exceção à regra.
Mister esclarecer, ainda, que o requerente, por expressa determinação legal, ao interpor o recurso de amparo deve apresentar, de forma clara, curta e concisa, os fatos que sustentam o recurso e, ainda, indicar quais os preceitos constitucionais foram violados, sem prejuízo de fixação do amparo que busca junto à Corte Constitucional para restaurar ou conservar o direito ou liberdade, objeto da lesão.
Há, em outros ordenamentos jurídicos, institutos semelhantes ao recurso de amparo, a exemplo da queixa constitucional no Direito Alemão. Todavia, como observa Ricardo Correia12, o amparo constitucional espanhol é mais abrangente, já que a queixa constitucional alemã conduz tão somente à anulação da decisão recorrida e ao consequente reenvio dos autos ao tribunal competente, enquanto o recurso de amparo espanhol conduz à declaração de nulidade da decisão, ato ou resolução, ao reconhecimento do direito ou liberdade pública e, ainda, ao reestabelecimento da integridade do direito ou liberdade lesionado. Para tanto, a legislação prevê mecanismos para a conservação dos direitos.
Finalmente, cumpre registrar que a decisão proferida no recurso de amparo gera efeito apenas entre as partes, ou seja, não conduz à declaração de inconstitucionalidade da lei, semelhante ao que ocorre no controle de inconstitucionalidade difuso, no Direito Brasileiro.
3. CLAMOR DO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS POR UM RECURSO DE AMPARO
As Constituições modernas têm, como característica marcante, a consagração de direitos e garantias fundamentais, a exemplo da Constituição brasileira de 1988, que se destaca pelo amplo rol de direitos fundamentais assegurados não apenas no art. 5º, mas também em outros dispositivos constitucionais. E, para resguardar tais direitos, também prevê institutos para a sua tutela.
O Brasil, de acordo com Marcus Firmino Santiago, Renata de Assis Calsing e Júlio Edstron S. A Santos13, no que tange o modelo de controle de constitucionalidade, se inspirou no modelo norte-americano, o que possibilita a verificação da validade e adequação constitucional das normas por duas vias; a difusa, por qualquer instância do Poder Judiciário; e a concentrada, pela Corte Constitucional.
O controle de constitucionalidade ampara-se na supremacia e na rigidez da Constituição, com o objetivo de preservar os fundamentos basilares do Estado de Direito e garantir a unidade do sistema, por meio da proibição de normas infraconstitucionais que se apresentem incompatíveis com as regras e princípios constantes na Lei Maior.
É para fazer valer a supremacia da Constituição que existe o controle de constitucionalidade, e este possui várias classificações segundo a doutrina. Uma dessas classificações é quanto ao momento, podendo ser preventivo ou repressivo.
Continuam os autores destacando que apesar desta característica, em alguns pontos o sistema de controle de constitucionalidade se filia ao modelo europeu, que atribui exclusividade à uma Corte Constitucional para averiguar, de forma concentrada e abstrata, a adequação constitucional das normas14. A Corte Constitucional, nesse caso, é instância apartada dos demais Poderes.
Mais adiante Santiago, Calsing e Santos15 destacam que essa tendência verificada no Brasil, de adotar exclusivamente o controle concentrado de constitucionalidade, “discrepa da tendência verificada em diversos países europeus”, que apresentam, já há algum tempo, tendência em romper com as concepções tradicionais que cunharam a jurisdição constitucional europeia.
A Constituição Portuguesa também dispensa especial atenção aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, consoante dessume-se dos seus arts. 24.º e seguintes. Porém, o particular possui somente uma forma, indireta, de buscar a tutela constitucional em caso de violação aos direitos fundamentais, situação que torna difícil a concretização destes direitos. Apesar disso, e das tentativas de se constitucionalizar o recurso de amparo, até o presente momento não se conseguiu consagrá-lo.
No ordenamento jurídico brasileiro não há previsão de um recurso de amparo, todavia, outros mecanismos se apresentem viáveis à tutela dos direitos e garantias fundamentais perante a Corte Constitucional (STF).
Consoante Carlos Frederico Bastos Pereira16, embora o Brasil não conte com um recurso de amparo, há entendimento de que os recursos constitucionais buscam claramente tutelar os aspectos objetivo e subjetivos dos direitos fundamentais, em resposta aos modernos sistemas de Corte Constitucional.
Tal como o Brasil, o Direito Português também não conta com o recurso de amparo, mas há críticas quanto à eficiência dos instrumentos hoje existentes para a salvaguarda dos direitos, garantias e liberdades fundamentais no solo português.
Ricardo Correia17 ressalta que o recurso de amparo é responsável pelo fortalecimento dos direitos fundamentais, pois os operadores do direito e cidadãos reconhecem, na atualidade, a importância de tais direitos.
A despeito da importância do recurso de amparo no direito espanhol, o ordenamento jurídico português não conta com semelhante instituto.
Com efeito, Jorge Reis Novais apresenta um interessante paradoxo que deslumbra a relevância do tema: “se um cidadão português vê um seu direito fundamental constitucional ser desconsiderado (pela administração, por um magistrado, por um particular, por um legislador omissivo) pode recorrer ao Tribunal Constitucional de Estrasburgo, mas não pode recorrente ao Tribunal Constitucional de Bairro Alto”18.
Diante disso, Jorge Reis Novais19 reconhece a existência de uma lacuna no sistema português de fiscalização da constitucionalidade, porquanto a justiça constitucional tem – ou ao menos deveria ter - como foco a defesa da Constituição, sobretudo dos direitos, garantias e liberdades nela elencados. Todavia, ao Tribunal Constitucional português compete tão-somente a fiscalização das normas, vale dizer, o Tribunal Constitucional não tem competência para apreciar lesão a garantias constitucionais decorrente de decisões e atos concretos perpetrados pela Administração Pública, Poder Judiciário ou pelos próprios particulares, por exemplo.
Nota-se, pois, que estão imunes à fiscalização de constitucionalidade, pelo Tribunal Constitucional português, “os atos políticos, os atos administrativos, as decisões jurisdicionais e os atos jurídico-privados”20. Isso ocorre justamente pela inexistência, no ordenamento jurídico português, de um recurso de amparo21.
Não destoando, Pedro Trovão do Rosário22 salienta que o Tribunal Constitucional se limita à apreciação da conformidade constitucional de normas jurídicas, de modo que o ordenamento português não conhece o recurso de amparo.
Portanto, falta no ordenamento jurídico português “um instituto processual do tipo da “queixa constitucional” ou equivalente”23 com o escopo de salvaguardar as garantias constitucionais do arbítrio do Estado-Juiz, do Estado-Administrador, do Estado-Legislador e dos próprios particulares. Aliás, a ausência desse instrumento coloca em xeque o direito à tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º da Constituição Portuguesa, pois, consoante afirma José Joaquim Gomes Canotilho24, não há falar-se em existência de proteção judicial efetiva em relação às decisões judicias que lesionam direitos, evidentemente porque tais decisões não podem – elas propriamente ditas – ser questionadas perante o Tribunal Constitucional.
A propósito, Pedro Trovão do Rosário25 leciona que o direito à tutela jurisdicional efetiva positivada na Constituição Portuguesa abriu “a porta à introdução de processos específicos de defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, nomeadamente, o recurso de amparo”.
Antes disso, chegou a existir, em determinados momentos, tentativas de constitucionalização de um instrumento voltado ao controle de constitucionalidade e defesa de direitos, liberdade e garantis fundamentais.
Segundo Ricardo Correia26, no ano de 1989, quando da revisão constitucional, por influência do Partido Comunista Português discutiu-se tal medida de forma mais aprofundada, sem, contudo, lograr êxito. Apesar disso, continua o autor, a referida reforma foi responsável por uma série de alterações no que tange o Direito Constitucional em Portugal.
Anos depois, quando foi novamente revista a Constituição Portuguesa no ano de 1997, foram aditados alguns dispositivos. Na oportunidade, por exemplo, assegurou-se aos cidadãos procedimentos mais céleres voltados a evitar ameaça ou lesão a direitos, liberdades e garantias pessoais. Apesar disso, o ponto que tratava da constitucionalização do recurso de amparo, ou mesmo de uma ação constitucional de defesa de tais direitos, não foi aprovado27.
Em 2004, quando realizada a penúltima revisão constitucional, tentou-se novamente revisar o disposto no art. 20º, para então constitucionalizar o recurso de amparo28. Assim, foi introduzido o art. 20º-A, conferido ao Tribunal Constitucional a competência para julgar o recurso de defesa dos atos ou omissões que violassem liberdades ou garantias fundamentais. No entanto, a proposta recebeu “o regozijo do PS, do PSD e do CDS-PP e a reprovação dos restantes partidos com assento na Assembleia”.
Na atualidade, “É reconhecido que o actual sistema de tutela dos direitos fundamentais é insensível ao “primado da pessoa na Constituição” uma vez que, numa situação de ofensa a um bem jusfundamental da pessoa humana, levado a cabo por um poder público, não goza de nenhuma tutela especial por parte da justiça constitucional. O que, perante o actual sistema de recurso em fiscalização concreta, é um pouco antinómico”29.
Em meio a esse cenário, matérias não tão importantes ficam a cargo do Tribunal Constitucional, enquanto não há mecanismos adequados para os casos de violação de direitos, garantias e liberdades fundamentais30. Nas palavras de Pedro Trovão do Rosário, pode-se citar, à guisa de exemplo, o mesmo que “ter uma Ferrari na Ilha do Corvo (...)”31, notadamente pela expertise dos membros que compõe o Tribunal Constitucional e a ausência de protagonismo na defesa dos direitos, garantias e liberdades fundamentais no que toca aos atos do Estado-Juiz, do Estado-Administrador, do Estado-Legislador e dos próprios particulares.
Cumpre registrar que o Tribunal Constitucional somente foi criado na Revisão Constitucional de 1982. Originariamente, a Constituição de 1976 atribuiu ao Conselho da Revolução a apreciação da constitucionalidade das normas e, inclusive, declarar sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral32.
Com a militarização do então “Tribunal Constitucional”, ressoa até compreensível a inexistência de um recurso de amparo no texto inicial da Constituição Portuguesa, sobretudo porque admitia-se “a subsistência até à primeira revisão constitucional de um órgão de soberania composto por militares”33.
No entanto, a partir da primeira revisão (1982), com a criação do Tribunal Constitucional, não se encontra razão jurídico-constitucional plausível para sustentar a inexistência de um recurso de amparo.
Resta evidente, portanto, que os questionamentos quanto à não consagração do recurso de amparo não se justificam, mormente ante a ineficácia dos institutos atualmente consagrados no Direito Português.