Esforços nacionais baseados em modelos policiais para a diminuição da insegurança decorrente da criminalidade não têm tido o resultado esperado na América Latina. De fato, no Brasil os custos econômicos com o combate à criminalidade baseado em modelo policial e as suas consequências correspondem a mais de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, os esforços têm sido continuamente não exitosos e não conseguem diminuir dados alarmantes, já tendo sido atingida a marca de 64 mil homicídios em 2017.
Em países como República Dominicana, El Salvador, Guatemala e Honduras, a situação é ainda pior, a ponto de as pessoas estarem mais preocupadas com o crime do que com o desemprego e outros desafios econômicos, em que pese os altos custos diretos com a criminalidade chegarem a 20% do PIB em El Salvador, por exemplo.
Quando se observa a criminalidade sob o ponto de vista das condições socioeconômicas, nem sempre a melhoria destas resulta em diminuição da criminalidade. Nos últimos 20 anos, alguns países da América do Sul experimentaram melhorias socioeconômicas sem haver, entretanto, correspondente redução da criminalidade, contrariando as expectativas de muitos.
O Brasil é um exemplo disso.[1] Embora melhorias significativas de condições socioeconômicas tenham acontecido no país do ano 2000 até 2010, com diminuição da pobreza; a universalização do acesso à educação básica; a diminuição do analfabetismo; o incremento da expectativa de vida ao nascer, a queda da taxa de desemprego e a diminuição da desigualdade de distribuição de renda, a taxa de homicídios cresceu continuamente em todos aqueles anos, saindo de pouco mais de 20 homicídios por 100 mil habitantes no ano 2000, para chegar a pouco mais de 30 homicídios por 100 mil habitantes em 2010.
Algumas pesquisas demonstram haver forte associação entre condições socioeconômicas e criminalidade, mas outras mostram que esta associação não é significativa. Já em 1963, Belton Fleisher tratou de estudos que demonstravam uma positiva e significativa associação entre a delinquência juvenil e o mercado de trabalho. O mesmo Fleisher, em 1966, discutiu a influência da renda na decisão de cometer atos criminosos. Vários outros estudos indicam uma forte associação entre situação socioeconômica e criminalidade. Por outro lado, pesquisas igualmente sérias não encontram aquela associação como, aliás, se viu no Brasil de 2000 a 2010.
Certo é que pesquisas indicam haver incoerências e inconsistências na relação condições socioeconômicas/criminalidade.
O filósofo francês Merleau-Ponty, na sua Fenomenologia da Percepção, pensa o homem no meio natural, cultural e histórico, ou seja, como ser-no-mundo, mais do que como ser ideal. Para ele não é possível esquecer a contribuição que a percepção dá para concepção da verdade. A ação cotidiana do homem, com atos conscientes ou inconscientes, tem como fundamento a percepção do mundo: “a todo momento realizamos movimentos, gestos, ancorados numa crença perceptiva do mundo e das coisas que nos cercam, sem que a consciência tenha que refletir a todo momento sobre eles”.
Para Ponty, “não estamos diante das coisas como meros espectadores, mas entre as coisas, interagindo com elas”.
A leitura de Merleau-Ponty então nos sugere uma mudança de perspectiva relativamente à criminalidade. Ao invés de questionarmos a associação entre o dado socioeconômico e a criminalidade, é possível “colocar” o homem entre o dado socioeconômico e a criminalidade. Em outras palavras, é desafiador examinar como o homem percebe condições socioeconômicas e traduz a sua percepção em atos.
Colocado o homem (ou a sua percepção) entre as condições socioeconômicas e a criminalidade, a Teoria Prospectiva de Daniel Kahneman e Amos Tversky oferece um interessante instrumental teórico para o entendimento de como o homem reage, sob o ponto de vista da criminalidade não-organizada, diante da percepção de desigualdades, sendo que este arcabouço teórico se aplica tanto a espaços com alta desigualdade quanto àqueles com baixa desigualdade. No meu livro Sociedade (In) Segura, editora Lúmen Juris, 2020, eu trato do tema.
Ou seja, trazendo a perspectiva fundada em Ponty para o âmbito da Prospecty Theory, Kanehman e Tversky oferecem indicativos para comportamentos deliquentes, especialmente quando se trata da percepção de desigualdades de condições socioeconômicas. Isto é, enquanto as tentativas de associar condições socioeconômicas e criminalidade revelam resultados incoerentes e inconsistentes, quando o homem é posto entre as desigualdades socioeconômicas e a criminalidade, passa a haver uma certa harmonia (ao menos sob o ponto de vista teórico) entre a percepção de desigualdades e a criminalidade não-organizada.
Explicando de uma maneira simplificada, quanto maior a percepção de desigualdades, mais estabelecemos pontos de referências que configuram cenários de perdas (de bens, direitos, relações interpessoais, relações profissionais, relações afetivas etc) que tornam as pessoas favoráveis a condutas arriscadas – inclusive as criminosas - e mais propensas a receberem resultados desfavoráveis. Isso acontece porque geralmente somos atraídos pelo risco ao lidar com ganhos improváveis (isto é, num contexto de perdas) e somos avessos ao risco ao lidar com perdas improváveis (ou seja, num contexto de ganhos).
Para espaços onde a percepção de desigualdades é homogênea, a maioria de nós identifica os mesmos padrões de perdas e ganhos, e a mesma tendência a ações mais ou menos arriscadas, inclusive criminosas.
Assim, diante dos insucessos das tentativas de redução significativa da criminalidade sob o ponto de vista essencialmente policial e da inconsistência da associação entre condições socioeconômicas e criminalidade, parece razoável entender que esforços para contenção da criminalidade, especialmente a não-organizada, talvez passe não apenas pela conjunção de atuação policial com melhoria das condições socioeconômicas e diminuição das desigualdades, mas também pela compreensão de que a percepção de menos desigualdades tem papel relevante neste contexto.
[1] Leia o artigo de Luis Flávio Sapori: Avanço no socioeconômico, retrocesso na segurança pública: paradoxo brasileiro?