RESUMO
O presente estudo representou uma análise do processo de aplicação de medidas judiciais aos que praticam o crime de aborto e sua repercussão na sociedade. O aborto é a interrupção da gravidez. Seja ele provocado, sofrido ou consentido, como regula o Código Penal. A prática de tal procedimento em nossa sociedade é frequentemente relacionado ao crime e ao pecado. Sua penalização pode ser interpretada como reflexo, às vezes inconsciente, de não se conceder à mulher o livre exercício de sua sexualidade.
Os direitos humanos da mulher vêm sendo demasiadamente defendido em todos os debates ao que tange o tema em estudo; o grande fator que vem sendo usado como alicerce desses debates é o caráter coercitivo da legislação que trata do aborto.
No primeiro capítulo temos as definições de aborto que a nossa legislação assegura, sua excludente de punibilidade e em quais situações se pode dizer que a prática do aborto é passível de não criminalização, tendo em vista, que tal prática não é liberada no ordenamento. É tratada ainda a anencefalia, a sua definição, o seu diagnóstico e os mecanismos que vem sendo utilizado para dirimir os conflitos nesta seara.
Em se tratando de conflitos, o capítulo segundo desse estudo traz ao lume o conflito maior, sendo discorrido dentro dos princípios constitucionais que busca elencar dois grandes pontos convergentes, o entendimento acerca dos Códigos Civil e Penal e o emanado pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Diante dessa divergência, temos o entendimento dos tribunais explanado no terceiro capítulo; a fim de que a matéria fosse pacificada e diante a inércia do Congresso Nacional foi ajuizada uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n° 54 – com a finalidade da descriminalização do aborto de feto anencéfalo, o que foi julgado pelo STF e aprovado por maioria de votos, merecendo assim uma explicação mais abrangente acerca do tema.
Na conclusão se tem uma síntese do que foi trabalhado e dos recursos utilizados para este estudo; o que se torna uma questão cada vez mais delicada e minuciosa, por cuidar de vários segmentos, sendo elencado inerentemente nos aspectos convergentes do tema e acima de tudo, como foco basilar o ponto de vista jurídico.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente estudo foi de examinar o atual modelo jurídico criado, ao longo da história, que norteia a questão da prática criminal do aborto.
Pretende-se, também, mostrar a aplicabilidade das medidas jurisdicionais elencadas no Código Penal e na Constituição da República Federativa do Brasil e consequentemente a sua efetividade.
Intenta, ainda, contribuir para o debate acerca do aborto de feto anencéfalo, demonstrando que este é um meio para que se possa amalgamar não somente uma visão ética, social e moral, por se tratar de um tema que expressa grande delicadeza em seus debates por abarcar a seara religiosa, filosófica, jurídica e social; acredita-se ainda que daí venha à complexidade do tema e a dificuldade dos legisladores em pacificar uma decisão que seja favorável ou contrária ao mesmo, ficando inerte de modo geral e dando tratamento apenas aos que buscam amparo no seio da justiça.
A figura do aborto tem-se tornado cada vez mais comum e presente na sociedade, tendo como característica a clandestinidade, o medo e a imprudência.
Ficar inerte no que diz respeito o tema é fazer com que ele permaneça escuso e presente na nossa sociedade de forma marginal.
Vale, também, repisar a importância do tema partindo da premissa de que qualquer ser humano pode se deparar com tal situação.
Há correntes que defendem o aborto de feto anencéfalo por se tratar de uma patologia irreversível, podendo ainda causar graves transtornos na saúde da gestante como é tratado no primeiro capítulo.
Houve a necessidade de se discutir esse tema de forma intensa com a sociedade civil e com as autoridades legislativas, sem esquecer os representantes de todas as classes profissionais que estão diretamente ou indiretamente envolvidos, daí observa-se o conflito que existe entre o que determina a Constituição da República Federativa do Brasil e seus dispositivos infraconstitucionais, abordados no segundo capítulo.
Por que se discutir anencefalia? Porque essa deficiência do feto vem sendo cada vez mais constante e a legislação ainda é silente no que concerne o tema; buscou então a efetiva prestação do poder jurisdicional e maior cobrança para que possa ser descaracterizado o crime, salvo, quando a gestante não estiver resguardada por liminar judicial para obter tal procedimento médico, o que tem sido cada vez mais frequente.
Diante dessa temática foi abordado ao longo do terceiro capítulo o atual entendimento do STF após ser julgada procedente por maioria dos votos, a ADPF n° 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde.
A conclusão é composta pela caracterização de forma objetiva ao fim de tudo que foi elaborado visando manter em foco o aspecto jurídico, a tratativa que os tribunais vinham dando em decorrência da matéria, os desafios que eram enfrentados pelas gestantes a fim de terem seu direito preservado conquistando-o assim, muitas vezes, através de liminares judiciais e como ficará hodiernamente com o advento da ADPF nº 54.
CAPÍTULO I
1.0 DEFINIÇÕES DE ABORTO
O aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, ou seja, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intrauterina. “É a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocado, do curso fisiológico da vida intrauterina.” De acordo com Aníbal Bruno “provocar aborto é interromper o processo fisiológico da gestação, com a simples expulsão prematura de feto ou a mera interrupção do processo de gestação, pois é indispensável que ocorra as duas coisas, acrescida a morte do feto, pois somente com a ocorrência desta o crime se consuma. Hélio Gomes (apud Bitencourt, 2008, pag. 138), nos dá a definição, a nosso juízo, mais completa do aborto criminoso, nos seguintes termos:” É a interrupção ilícita da prenhe, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto.” Portanto, essa definição além de destacar que a interrupção deve ser ilícita, ou seja, não autorizada por lei, sustenta, com absoluto acerto, a irrelevância de eventual expulsão do feto e estabelece o momento derradeiro em que a conduta pode tipificar o crime de aborto, qual seja, “momentos antes do parto”.
1.1 TIPOS DE ABORTO
O aborto pode ser caracterizado em dois tipos, o natural ou espontâneo e o provocado, seja ele doloso ou culposo.
A ação de provocar o aborto com a intenção de interromper a gestação e de eliminar o produto da concepção, se exerce sobre a gestante ou também sobre o próprio feto ou embrião. O crime só fica caracterizado quando o aborto for provocado, logo, se for espontâneo não fica caracterizado o crime, ocorre uma expulsão natural do próprio corpo independente do motivo que ocasionou o mesmo.
A seguir é explicado cada hipótese de aborto que hoje é tratada pelo nosso ordenamento, com o fito de elucidar as divergências de cada espécie.
1.2 O ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE OU COM SEU CONSENTIMENTO
O artigo 124 do Código Penal elenca as condutas das quais a gestante pode interromper a sua gravidez, causando assim a morte do feto; a primeira hipótese é na qual a gestante provoca o aborto; a segunda é que a gestante consente que o mesmo seja feito.
Diante das hipóteses, fica clara a configuração de crime de mão própria, mesmo no caso em que a gestante não o faça diretamente, mas o autoriza, o executor da ação deixa de configurar como partícipe e passar a configurar como autor do crime.
Existe a possibilidade de duas condutas nesse aspecto, a primeira é a conduta típica, ou seja, o ato de provocar o aborto em si mesmo; porém, a gestante pode praticar o mesmo crime com uma conduta atípica, sendo ela com o consentimento para que um terceiro cometa a prática do aborto. Essa exigirá dois elementos de tipo, o consentimento da gestante somado a execução do aborto por terceiro.
Há, contudo, uma diferença no regramento entre os dois executores do crime. A mulher que provoca o autoaborto será incidida no artigo 124 do Código Penal, enquanto quem a auxilia na prática do ato com seu consentimento será enquadrado ao que aduz o artigo 126 do mesmo diploma legal.
Portanto, podemos concluir que o aborto consentido não admite uma coautoria entre a gestante e o terceiro. Quem provoca aborto sem o consentimento da gestante será incorrido no artigo 125 do Código Penal, que trataremos a seguir.
1.3 ABORTO PROVOCADO SEM COSENTIMENTO DA GESTANTE
Esse é o tipo de aborto que é sofrido, elencado no artigo 125 do Código Penal; este recebe duas caracterizações: sem consentimento real ou ausência de consentimento presumido (menores de 14 anos, alienada ou débil mental). É notório que havendo consentimento da gestante essa tipificação ficará afastada.
No aborto que é provocado pelo agente sem consentimento da gestante aquele não responde por constrangimento ilegal.
Para que seja de fato caracterizada essa prática de aborto, basta que desconheça a gestante que está sendo realizada nela uma prática abortiva, ou seja, sendo corolário ao que elenca o artigo 125 do Código Penal. A gestante não tem conhecimento de que está sendo submetida a uma prática criminal, obviamente não sendo conivente, o que demonstra claro que não deverá ser imputado crime em decorrência deste ato, tendo em vista que, a gestante sofre de forma traumática resultante do procedimento realizado.
1.4 ABORTO PROVOCADO COM CONSENTIMENTO DA GESTANTE
Com o consentimento é merecido determinado grau de censura, ao passo que executar a conduta consentida, definida como crime de aborto com fulcro no artigo 126 do Código Penal, implica a comissão de aborto criminalizado. Pois a atitude da gestante é caracterizada como uma conduta omissiva, enquanto a ação do executor de provocar o aborto é configurada como uma conduta comissiva. Para o legislador a gestante que consente que um terceiro faça em si um aborto é consideravelmente menos exigida do que de quem pratica o crime, ou seja, quem efetivamente age na prática do crime tem uma exigibilidade maior em decorrência das atitudes, não desmerecendo a gestante de ser punida e em corolário sofrer as sanções penais previstas em nosso ordenamento.
2.0 EXCLUDENTES DE ILICITUDES DE ACORDO COM O CÓDIGO PENAL
O artigo 128 do Código Penal prevê duas modalidades de aborto legal, o aborto que pode ser praticado em virtude de autorização da lei; sendo aborto terapêutico ou profilático e aborto sentimental, humanitário ou ético (Franco apud Greco, 2008, p. 253).
Não se pode deixar de mencionar o aborto em estado necessário, isso posto que, a legislação é clara que em qualquer problema que haja na gestação ao que tange à saúde, caso seja necessário efetuar uma escolha entre a gestante e o feto, seguindo ao que prega o inciso I do artigo 128 do Código Penal será preservada a vida da gestante, tendo como lógica, que daquela pode-se extrair outras vidas, e se caso opte-se pela vida do feto, ceifa-se de plano a anuência de outras possíveis gestações.
Tanto a vida do feto, tanto a vida da gestante são protegidas juridicamente, contudo, em caso de uma escolha a ser feita como decisão derradeira, a lei penal optou por preservar a vida da gestante.
Desde que presente os requisitos elencados no artigo 124 do código penal, Frederico Marques diz que “nos termos em que o situou o código penal, no seu artigo 128, II, trata-se de fato típico penalmente lícito. Afasta a lei a antijuridicidade da ação de provocar aborto, por entender que a gravidez, no caso, produz dano altamente afrontoso para a pessoa da mulher, o que significa que é o estado de necessidade ratio essendi da impunidade do fato típico”. Essa é também a posição de Fragoso e Hungria, cuidando do aborto sentimental, que assevera: “nada justifica que se obriga a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida”. Segundo Binding (apud Greco, 2008. p. 253) seria profundamente iníqua a terrível exigência do direito de que a mulher suporte o fruto de sua involuntária desonra.
No aborto necessário ou terapêutico é constituído autêntico estado de necessidade, logo, justificam-se quando não houver outro meio para salvar a vida da gestante. São exigidos dois requisitos justificáveis: perigo de vida da gestante e a inexistência de outro meio para salvar a vida da gestante, caso contrário, o médico será responsabilizado pelo crime. O aborto necessário poderá ser realizado contra a vontade da gestante. A intervenção do médico é resguardada com fundamento legal nos artigos 128, I C/C art 24 C/C 146, §3º do Código Penal. O consentimento da gestante ou de seu representante legal só é exigido em aborto humanitário, o que é previsto pelo inciso II do artigo 128 do mesmo diploma legal.
Também é conhecido o aborto humanitário como ético ou sentimental este é autorizado quando se dá em consequência do crime de estupro e a gestante consente na sua realização. Pelo nosso Código Penal não há limitação temporal para a estuprada grávida decidir-se pelo abortamento (Bitencourt, 2009, p.147).
Para que o aborto seja autorizado são necessários os seguintes requisitos: gravidez resultante de estupro, prévio consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal. Caso a gestante esteja mentindo para se prevalecer de uma exclusão de ilicitude, responderá criminalmente, segundo o artigo 124, §2º do Código Penal; agindo ainda o médico munido de boa fé caracteriza-se erro de tipo, sendo excluído dele o dolo, afastando assim a tipicidade.
3.0 O QUE É ANENCEFALIA E COMO SE DÁ O DIAGNÓSTICO?
A anencefalia é a ausência do encéfalo, que é a parte do sistema nervoso central, contida na cavidade do crânio, e que abrange o cérebro, o cerebelo, a protuberância e o bulbo raquiano (Lima, 2010, 75).
Anencefalia é anomalia que torna incompatível a vida do feto destituído de encéfalo, dependente tão só da permanência no ventre materno, assim mesmo, a morte ocorre antes de decorrido o tempo gestacional. A morte é uma certeza e a possibilidade de vida extrauterina é a mais remota possível e geralmente muito curta.
Anomalia que pela ausência de encéfalo torna inviável a vida, pois nem mesmo perspectiva de curta vida, uma vez que ao nascer, apenas apresenta sinais vitais que cessarão, provavelmente com sobrevida de algumas horas, pois a partir daí passaria a ter uma vida autônoma, ou seja, fora do ventre, o que para o feto anencéfalo é crucial, pois é um ser altamente dependente. Além de não possuir cérebro, o feto sequer tem qualquer ossatura do crânio, o que demonstra total incompatibilidade com a vida, e os sinais vitais existentes é, exclusivamente, por encontrar-se no útero materno recebendo o fluido necessário para manter os batimentos cardíacos e um eventual crescimento.
As malformações do sistema nervoso central – centro propulsor e coordenador de todas as manifestações vitais, quais sejam, as intelectivas, as sensitivas e as vegetativas – geram inúmeras doenças. A anencefalia configura uma das malformações do encéfalo.
Em virtude dessa malformação o anencéfalo fica incapacitado para exercer funções que são relacionadas à consciência e à capacidade de percepção, de cognição, de comunicação, de afetividade e de emotividade. Não possui nenhum grau de consciência o que lhe condiciona a viver em estado vegetativo, quando a vida lhe é prolongada aquém das horas pós-parto.
O sistema nervoso central do anencéfalo é bastante carente, no entanto, por preservar o tronco encefálico, ou parte dele, mantém suas funções, como por exemplo, o sistema respiratório e o cardíaco; o anencéfalo é capaz também de realizar movimentos de sugação e de deglutição, porém, todas as suas reações são exclusivamente reflexas.
A corrente médica se divide em duas vertentes; há obviamente a corrente que defende o anencéfalo e o trata como um ser humano vivo, ou seja, com todas as prerrogativas inerentes a e ele.
Outro posicionamento é que não se trata de ferir qualquer direito que tenha o anencéfalo, mas sim dá o direito de escolha à mãe, afinal ela será a pessoa que terá de arcar com todos os recursos (financeiro, ético, moral e psicológico) para que possa trazer o mínimo de dignidade para o anencéfalo; outro aspecto bem claro é a questão da sobrevivência do mesmo, toda uma estrutura deverá ser montada para que possa ser dado um tratamento adequado a essa criança, isso quando ela consegue sobreviver.
Trata-se de doença relativamente comum, mas que vem decaindo nas últimas décadas de cinco para dois a cada 10 (dez) mil nascidos vivos (Gherpelle, apud Lima, 2010, p77).
Por se tratar de uma malformação letal, a sobrevida extrauterina é geralmente por um curto período de tempo, apenas alguns dos conceptos nascem com vida, e com raríssimas exceções falecem no período neonatal.
O anencéfalo quando sobrevive por um período mais do que a estimativa, ou seja, passa-se de dias e chega há meses tem gradativa deterioração de seu organismo até um perecimento total. Por se tratar de um quadro irreversível fica muito difícil a manutenção da vida de um anencéfalo.
Diante da nova tratativa dada pelo STF ao caso, o Conselho Federal de Medicina acerca das ponderações dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, promulgaram no Diário Oficial da União de 15/05/2012, na seção I, páginas 308 e 309 os fundamentos que deu origem a tal fundamentação.
Segundo o novo critério adotado pelo CFM para o diagnóstico deverá ser realizada ultrassonografia que será assinada por dois médicos ratificando-a, foi criada pelo CFM uma comissão com especialistas das áreas como ginecologia, obstetrícia, genética e bioética a fim de que fossem elaboradas as normas para então serem definidas as regras nas quais as gestantes deverão se enquadrar, para que possam realizar o procedimento do aborto de feto anencéfalo.
Tais regramentos encontram esteio na Resolução nº 1.989, de 10 de maio de 2012 sendo acostadas as assinaturas do presidente do conselho, Carlos Vital Tavares Corrêa, ainda pelo secretário-geral, Henrique Batista e Silva, e também pelo relator do caso, Henrique Fernando Maia.
Assevera o Conselho que o procedimento só deverá ser realizado quando tiver certeza absoluta de que se trata de feto anencéfalo. Aduz ainda que o exame ultrassonográfico deverá ser feito a partir da 12ª semana de gravidez o que dá três meses de gestação, registrando duas fotografias em posição sagital (que mostra o feto verticalmente) e outra em polo cefálico com corte transversal (detalhando a caixa encefálica) a fim de que não obste dúvidas da anomalia acometida pelo feto podendo ser resguardado todos os envolvidos na prática, para que não possa ser cometido erro em potencial. O grande temor é que com a liberação dessa modalidade de aborto, há no que se pensar justamente em todas as formas de se ter mais segurança na prática do mesmo, para que erros não possam ser cometidos e menos ainda, que tais gestações indesejadas não se mascarem com tal anomalia a fim de que não sejam eivadas as prerrogativas que custaram tanto tempo para ser conquistada. O CFM pede total apoio aos Conselhos Regionais pedindo que estes atuem como “julgadores e disciplinadores” da decisão seguindo sempre “a ética” para que não seja dissipado o real intuito pelo qual se tornou possível essa benesse àquelas que sofriam demasiadamente em ter que carregar uma gestação infrutífera. Será oferecido o tratamento médico adequado à gestante que decida interromper ou continuar com a gestação, sempre lhe sendo garantido o direito à escolha corroborada com o respaldo médico.
É importante destacar que o texto da Resolução assevera que: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano”, ou seja, não será obrigada a gestante que por ventura possua um feto anencéfalo realizar a prática do aborto, sendo dado a ela o mesmo suporte médico e psicológico que deverá ser dado pela que optar abortar. Deverá ser fundamentada em documento próprio a decisão da gestante o de quem por ela for responsável, ratificando assim a idoneidade do procedimento. O hospital devera ser adequado segundo o texto da Resolução para que se garanta a integridade física da gestante e o sucesso devido na realização do procedimento.
CAPÍTULO II
4.0 DO DIREITO À VIDA À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O direito fundamental de todo ser humano é a vida. A Constituição da República garante a tutela da vida humana de uma forma ampla e plena, a Constituição protege o ser humano desde o momento da sua concepção, pois no entendimento jurídico a partir daí há o direito à vida, o que vem fundamentado no artigo 5º, X.
O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 7º aduz que a criança e o adolescente têm direito à vida e a saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
A ciência médica hodiernamente comprova que os conceptos anencéfalos possuem vida humana, logo, se há vida ele é titular de direitos, por força do disposto na lei que garante o direito à vida; é indiscutível tal aspecto independente de qualquer malformação que o feto tenha.
Entretanto, a gestação de um feto anencéfalo requer toda uma avaliação sistemática, em face dos direitos e paralelamente dos choques com os deveres. Com esse quadro, temos duas hipóteses, a gestante consciente da malformação do feto desejar prosseguir com a gestação ou optar pelo aborto.
Vale repisar que a dignidade da pessoa humana independe do quanto e em quais condições vive, pois, ele naturalmente é titular da dignidade como preza com clareza a nossa Constituição da República Federativa do Brasil.
Caso opte pelo aborto, a gestante não poderá ser privada do direito de realizar tal prática, pois o direito a saúde não pode se materializar sem as políticas públicas que permitem a realização desse procedimento em hospitais públicos ou particulares, bem como todo o atendimento médico e psicológico necessário para que a saúde da mãe seja reestabelecida. A questão basilar do direito à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher o que garante a ela o direito de escolher entre manter ou interromper a gestação, tenho como pilar o princípio da dignidade da pessoa humana.
De acordo com a teoria abordada por Kant (apud Lima, 2010, p. 126) acerca da dignidade da pessoa humana “esta apresenta a justificativa mais plausível para o desrespeito aos direitos da mulher em decorrência do entendimento pela criminalização do aborto do anencéfalo”. Para o autor, todo ser humano tem dignidade e, por isso, deve ser considerado e tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio para a obtenção de determinado resultado. Não se justifica, portanto, em nenhuma situação, aceitar qualquer conduta que o instrumentalize ou o coisifique.
Há sempre no que se falar na valoração do ser humano, na priorização da vida, no ser como um todo, mas sem deixar de colocar em relevo o contrapeso para tanto, no caso em estudo adentra-se em uma seara que divide muitas opiniões sendo elas contrárias e favoráveis a fim de que seja preservada sempre a vida, basta sabermos de qual vida estamos falando, se do feto que está em fase potencial ou da gestante que pode ser colocada em iminente perigo em decorrência da necessidade exclusiva de sobrevivência do feto que com isso requer muito mais da sua genitora.
4.1 PRINCÍPIOS NORTEADORES
“Os princípios são normas que ordenam a realização de algo na sua melhor medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. São comandos de otimização e podem ser cumpridos em diferentes escalas. A medida do cumprimento de um princípio depende não só das possibilidades fáticas como também das jurídicas” (Lima, 2010, p. 154).
Os direitos e garantias fundamentais têm fundamentalmente a estrutura de princípios, ou seja, normas que podem ser cumpridas em diferentes graus visando sempre manter a coerência e o bom senso como fundamento basilar, sem desmerecer o anseio jurídico de que rege.
Os princípios nos servem de forma basilar a fim de que a legislação possa ser aplicada de forma isônoma, logo, tratando os desiguais de forma desigual. Um dos principais que mais se adequa, até mesmo pela sua generalidade e posteriormente suas ramificações é o Princípio da Proporcionalidade, princípio esse que vêm atravessando décadas sendo embasado em diferentes teorias; para Aristóteles, “a proporcionalidade fazia parte do conceito de justiça. Ao expor seus ensinamentos sobre o justo e a justiça, demonstrou a relação da justiça distributiva com o a proporção geométrica. Segundo ele, o justo é uma das espécies do gênero proporcional. E a proporcionalidade não é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, mas sim das quantidades em geral” (Aristóteles apud Lima, 2010, p. 150).
“O princípio, no âmbito jurídico, visa a aferir a constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais. Por meio da sua aplicação, o intérprete avalia a correlação entre os fins visados e os meios empregados nos atos do Poder Público, nas situações de conflitos de direitos fundamentais” (Pereira apud Lima, 2010, p. 153).
4.2 A PROPORCIOALIDADE E SEUS SUBPRINCÍPIOS
“O princípio da proporcionalidade, ao cuidar das restrições aos direitos fundamentais, pressupõe a estruturação de uma relação entre meio e fim. O fim consubstancia-se no objetivo ou na finalidade perseguida pela limitação. O meio, por seu turno, constitui a própria limitação, que pode ser uma norma ou uma decisão judicial que pretende tornar possível o alcance do fim buscado” (Steinmetz apud Lima, 2010, p. 156).
Este deve ser analisado nas situações de conflito de direitos fundamentais, contudo, o intérprete da legislação deve examinar se tal restrição a uma fática situação de direitos atende especificamente a tal princípio, ou, entretanto, a suas ramificações que são: Adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, quais veremos explicitados a seguir.
Como o próprio nome já diz o Princípio da proporcionalidade existe no intuito de tornar equilibrado o rigor da lei, ou seja, de forma que seja executado o que emana a Constituição da República Federativa do Brasil em consonância com o que prega o bom senso e o humanismo trazidos em sua essência. Não sendo assim, uma norma totalmente coercitiva.
4.3 O SUBPRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
O primeiro deles é o princípio da adequação, também conhecido como princípio da idoneidade ou princípio da conformidade. Segundo esse princípio, toda restrição aos direitos fundamentais deve ser idônea e adequada para atender a um fim constitucionalmente legítimo (Lima, 2010, p. 156).
Embasado em tal definição pode-se concluir que deverão ser observados dois requisitos importantes para que possa ser feita uma utilização mais precisa de tal princípio. Primeiro, a medida deve visar atingir um fim legítimo constitucionalmente, ou seja, que encontre amparo na Constituição. Segundo, os meios que serão utilizados para o fim estabelecido, tais meios deverão ser acima de tudo adequado, idôneo e realmente útil para a concretização do fim.
Uma importante observação a ser feita é que sempre se deve identificar qual fim é perseguido e buscar pela melhor forma de alcançar o fim colimado, estando esse de acordo com as normas constitucionais prezando assim, pelo meio mais idôneo.
No caso do aborto de feto anencéfalo o fim é preservar a saúde da mulher e sua liberdade de autonomia reprodutiva. Temos nessa situação hipotética um conflito aparente, ou faz-se a restrição do direito à vida intrauterina, ceifando a vida do anencéfalo, a fim de preservar os direitos à saúde e à liberdade de escolha da gestante, quando essa optar por não prosseguir com a gestação. Logo, podemos notar que em uma situação como a explicitada o único meio idôneo é o aborto, e configura-se a adequação a fim de que seja realizado por profissionais qualificados e de forma a não impor ainda mais, riscos à saúde da gestante.
4.4 O SUBPRINCÍPIO DA NECESSIDADE
“O princípio da necessidade também é conhecido como princípio da exigibilidade, da indisponibilidade, da menor ingerência possível e da intervenção mínima. Segundo ele, dentre as várias medidas restritivas de direitos fundamentais igualmente aptas para atingir o fim perseguido, a Constituição determina que o intérprete escolha aquela menos lesiva para os direitos. Por isso, dentre os diversos meios que podem levar ao fim buscado, deve-se escolher o menos gravoso para o direito afetado” (Barros apud Lima, 2010, p. 157).
Portanto, deve a medida ser compreendida como realmente necessária, e escassa as formas de fazê-lo, e sendo essa a menos gravosa para que se alcance o fim colimado. Entende-se por necessário quando não houver outro meio de alcançar o fim desejado, sendo certo que mesmo assim a forma menos gravosa deverá prevalecer.
Na situação do aborto anencéfalo, ele além de adequado como já explicitado no tópico anterior é necessário, pois, é o único meio que se possui de salvar a vida da gestante ou de lhe evitar maiores complicações em virtude do prosseguimento da gestação, tendo em vista a maior dependência que o feto anencefalo detém. O conflito entre o direito à vida intrauterina do anencéfalo versus o direito à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher, quando a mesma optar por interromper a gestação.
É forçoso salientar que tal situação nos reporta a uma dúvida, estaria se trocando uma vida por outra? Ao que se vêm estudando ao longo desse trabalho podemos dizer que não, o que acontece de fato é que não é uma questão apenas de escolha, como se trocássemos um produto com defeito por um novo, ou entre a escolha de dois produtos, um com defeito e um em perfeito funcionamento e tivéssemos que optar por um deles. O fato é bem mais complexo que isso, tanto que essas discursões vêm se arrastando ao longo dos tempos e somente agora foi pacificada pelo STF. O que fica muito latente é que, há um direito de escolha, ou prosseguir com uma gestação e condenar a mãe a postergar um sofrimento, pois ela sabe que o fruto daquela gestação é uma criança que irá requerer toda atenção, toda estrutura de forma geral (financeira, psicológica, familiar), e além de tudo muito mais amor. Infelizmente hoje, tal malformação conforme citado em tópicos anteriores assola principalmente pessoas com baixo poder aquisitivo, o que tecnicamente não possuirão recursos suficientes para arcar com todas as necessidades especiais que porventura a criança terá, tendo que levar em consideração ainda todo o tratamento gestacional, o qual requer maior cuidado e relevância.
Sejamos claros, ao ver uma mãe arrastando uma gravidez “indesejada” e na iminência de dar à luz a uma criança na qual ela não poderá dispor de todo o tratamento necessário é mais justo que se faça o aborto, desde que a mesma queira, seria mais fácil à recuperação, não desprezando a dor, que é grande em qualquer hipótese.
4.5 O SUBPRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO
O princípio da proporcionalidade em sentido estrito fala sobre a ponderação de bens. É nessa etapa realizada a solução dos conflitos entre os princípios fundamentais, que veiculam os direitos fundamentais. Segundo o que diz esse princípio, a restrição a algum tipo de direito fundamental somente encontra-se de acordo com a Constituição quando se legitima a restrição devido a uma relevância da satisfação de outro direito.
“No juízo de ponderação, analisam-se o grau de afetação do direito fundamental restringido e a importância da realização do direito que prevalece. O intérprete deve avaliar se a finalidade perseguida com a medida restritiva compensa os prejuízos que dela advenham para os direitos fundamentais restringidos ou sacrificados” (Lima, 2010, p.158).
Destarte, é possível que se faça uma análise entre os princípios que estão em colisão, com o objetivo de estabelecer qual deles prevalecerá no caso concreto e com qual fundamento. Daí, temos de um lado o direito fundamental restringido e, de outro, o direito fundamental cuja realização é almejada com a medida restritiva. Para que se possa chegar até aqui, os outros dois princípios estudados nos tópicos anteriores já deverão ter sido analisados e constatados quer sejam eles: Adequação e necessidade.
“A aplicação do juízo ponderativo dá-se em três etapas. Em primeiro, o intérprete verifica a intensidade da restrição ao direito fundamental. Na sequência, deverá justificar a importância da realização do direito antagônico. Por fim, deverá verificar se a importância da realização do fim pretendido é apta a justificar a intervenção no direito fundamental restringido. O processo de ponderação demanda a comparação entre os efeitos negativos e os efeitos positivos que a medida restritiva ocasiona” (Pereira apud Lima, 2010, p.158).
De acordo com o nosso ordenamento jurídico, tal direito se alicerça no Estado Democrático de Direito e prestigia todos os valores a ele relacionados. Tendo que se observar que, na análise dos direitos fundamentais, a interpretação constitucional, tanto na sistemática quanto na teológica, contribui para alcançar soluções compatíveis com os fins constitucionais.
O aborto do anencéfalo é ainda alvo de muita polêmica, isto posto que, há quem diga que não tem legitimidade, pois o Código Penal não atribui à essa modalidade específica, mas por analogia faz-se um gancho ao que diz no artigo 128 do mesmo diploma legal em seu inciso I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; logo, é forçoso constatar que a legislação não permite legalmente que o faça, mas ela não explicita quais são os fatores que ocasionam o iminente perigo à mãe, portanto, há no que se falar em constitucionalidade dessa modalidade especificamente, pois está em coerência com a legislação constitucional.
“Deve ser promovida a comparação entre a relevância da restrição do direito fundamental e a importância da realização do outro direito. Com a comparação, estabelece-se uma relação de precedência condicional entre os direitos, aplicável naquele caso concreto. Essa relação de precedência dá-se com a aplicação da lei de ponderação, que estabelece que quanto maior é o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem de ser a importância de satisfação do outro principio” (Lima, 2010, p. 161).
O grau de afetação ao direito à vida intrauterina do anencéfalo é total, uma vez que se legitima o aborto. Portanto, para legitimar-se o aborto, é necessário demonstrar a importância da realização dos direitos da mulher, por isso a avaliação e sua finalidade perseguida a preservação dos direitos da mulher, para que assim fosse consentido o direito do aborto de feto anencéfalo.
Na comprovação da anencefalia, o aborto consentido pela gestante não pode ser considerado exclusivamente do direito a vida intrauterina do anencéfalo, sob a pena de ignorarem-se todas as conjunturas sociais e pessoais, de saúde física, psíquica, e social da mulher bem como sua liberdade de escolha em sentido particular. Há de um lado uma gestante com imensurável sofrimento e de outro um ser anencéfalo com malformação letal, sentenciado a vida vegetativa e a iminente morte de fato, partindo da premissa que a encefálica já tem.
O fato de a mãe prosseguir com essa gestação pode profundamente afetar a saúde não só física como psíquica, por ser tratar de uma gestação de risco. Principalmente afetando o psicológico da mãe, pois ela se encontra presa a uma escolha; abortar e ceifar a vida de um ser humano, em decorrência de toda sua debilitação ou prosseguir com a gestação e ver seu filho sofrendo e padecendo gradativamente em virtude da malformação que vai levá-lo ao óbito em bem menos tempo do que ela gostaria que ocorresse, o que torna um massacre psicológico para a mãe.
Não se pode deixar de mencionar que quando a mãe opta pelo aborto e o mesmo lhe é negado, ou seja – lhe é negado o direito à liberdade – o sofrimento também é agravado e a saúde da mãe fica ainda mais afetada. Portanto, a escolha deve ser embasada nas necessidades específicas individuais de cada mulher, e ser dado a cada uma o direito de escolha dentro de suas escolhas.
Diante disto, pode-se dizer que “não atende ao princípio da proporcionalidade compelir uma mulher a gestar um ser anencéfalo, que apresenta malformação letal que o incapacita para as funções relacionadas à consciência e à capacidade de percepção, de cognição, de comunicação, de afetividade e de emotividade e que, por isso, jamais compartilhará da experiência humana” (Lima, 2010, p. 162).
Ocorre que tal imposição vai de encontro com o que prega o princípio da proporcionalidade, ou seja, se for imposto a uma gestante continuar gerando um ser que a única expectativa será de encomendar seu caixão e ao invés de estar preocupada com seu enxoval estará como seu mortuário, não há em que se falar em principio, menos ainda em sentimento humanitário, pois é um martírio oneroso demais ao psicológico dessa gestante, que pode ser evitado através de mecanismos jurídicos como vinham sendo feitos antes da aprovação pelo STF da ADPF nº 54, a gestante que mantinha o interesse da interrupção da gravidez procurava o judiciário munida de todas as documentações pertinentes e ajuizada o pedido de liminar para então ter preservado seu direito.
O grande paradigma que se tem é a garantia tanto da gestante, tanto do feto, se formos literais ao óbice da Constituição da República Federativa do Brasil e com o Código Civil, não há no que se falar em vida, pois para nosso ordenamento só há vida quando há funcionalidade vital na massa encefálica, então vejamos se não há massa encefálica, há a ausência deste, não há em que se falar em vida juridicamente tutelada.
CAPÍTULO III
5.0 O ABORTO E A ANENCEFALIA TRATADOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Atualmente no Brasil o aborto é considerado crime, exceto em duas hipóteses: a de estupro e o risco de vida da gestante. Há no que se falar de aborto em fetos com anomalias, porém, só temos no ordenamento jurídico, julgados esparsos sobre o tema.
Agora com o a procedência da ADPF nº 54 tal quadro será modificado.
Havia previsão para que fosse expedida liminar para que então ocorresse o procedimento do aborto desde que solicitado pela gestante, geralmente tais alvarás eram concedidos para atender a fetos com anomalias diversas, prevalecendo o anencéfalo. Alguns juízes não aceitavam a justificativa da gestante e não concediam a liminar por faltar um amparo legal no ordenamento, o que era recorrida a instância superior tendo o direito reconhecido. Há de modo geral um conflito de ideias, têm os que defendem o aborto alegando que é da mãe o direito de decidir sobre o seu corpo e que seja garantido a ela todos os requisitos para uma posterior e satisfatória recuperação e por outro lado, há os que defendem posição contrária condenando o aborto em qualquer hipótese.
O Código Penal declara a proibição do aborto. Entretanto, há como já mencionado as hipóteses em que o aborto não é punido, isso não quer dizer que ele seja permitido, porém, há uma exclusão da ilicitude.
Segundo, (Bitencourt, 2008, p. 146) “é uma forma diferente e especial de o legislador excluir a ilicitude de uma infração penal sem dizer que “não há crime”, como faz no art. 23 do mesmo diploma legal. Em outros termos, o Código Penal, quando diz que “não se pune o aborto”, está afirmando que o aborto é lícito naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame”.
Assim, dispõe o artigo 128, do Código Penal, in verbis:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou,
quando o incapaz, de seu representante lega
Diante disso, entramos em outro questionamento, a Constituição não protege de forma absoluta a vida do feto, logo, o artigo 128 do Código Penal seria declarado inconstitucional. Se nos reportarmos ao inciso I do mesmo diploma legal em comento é notório que, para salvar a saúde da mãe o aborto é permissível, desde que observados todos os aspectos necessários; agora se tratando de um feto anencéfalo a lei silencia, e por analogia nos reportamos paralelamente à Constituição combinada com o Código Penal a fim de, descaracterizar a tipificidade do crime, o que foi entendido pelo STF.
O entendimento dos Tribunais hoje é pacífico em autorizar o aborto de feto anencéfalo, como podemos ver na seguinte decisão:
A 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais autorizou que uma gestante fizesse aborto (qual é o nº do processo). A interrupção da gravidez havia sido negada pelo juiz Marco Antônio Feital Leite, da 1ª Vara Cível de Belo Horizonte. Os desembargadores Alberto Henrique (relator), Luiz Carlos Gomes da Mata e Francisco Kupidlowski determinaram a expedição imediata de alvará para a realização do procedimento.
O presidente da Câmara, desembargador Francisco Kupidlowski, ressaltou a urgência do caso e sua repercussão diante da sociedade e da imprensa nacional. O desembargador Alberto Henrique, relator do processo, destacou que o pedido de interrupção de gravidez foi instruído com pareceres médicos, todos recomendando o procedimento.
O relator enfatizou que a anencefalia é uma patologia sem cura e que o feto com a doença “não possui nenhuma expectativa de vida fora do útero materno”. Para ele, “não é justo que à mãe seja imposta a obrigação de continuar com essa gravidez-sacrifício” e que seria um martírio levá-la às últimas consequências. Nesse caso, “as convicções religiosas devem ser deixadas de lado”, defendeu.
Para o desembargador Luiz Carlos Gomes da Mata, o tema é tormentoso, envolvendo o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Para ele, “diante da absoluta ausência de perspectiva de vida do feto, não há como negar o pedido de autorização para a prática terapêutica recomendada pelos médicos que acompanham a gestante”. Segundo o desembargador, trata-se de um “fardo” que não se pode impor à mesma.
“Como a morte do feto logo após o parto já está prognosticada, não dispondo a medicina de meios para salvá-lo, toda preocupação deve ser voltada ao casal, que de forma corajosa, destemida e exemplar, bate às portas do Poder Judiciário em busca de uma solução jurídica”, finalizou.
O desembargador Francisco Kupidlowski, ponderou que, diante da comprovação por laudo médico de que o feto não possui calota crânio-encefálica e, portanto, sem expectativa de vida após o parto, seria desumana a manutenção da gestação. Com informação da Assessoria de Imprensa do TJ-MG.
A questão da anencefalia no STF vinha sendo protelada em virtude de sua complexidade, sendo contraposto duas vertentes que é a ciência e a religião.
O grande argumento é que a permanência de um feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa em função do elevado índice de mortes ainda durante a gestação, o que empresta à gravidez um caráter de risco.
“A Constituição estabelece um novo paradigma na relação entre o Direito Constitucional e o Direito Penal. Portanto, a função primordial do Direito Penal é a proteção dos chamados bens jurídicos, para a eleição desses bens jurídicos deve atender aos valores do Estado Democrático de Direito, resguardado pela Constituição Federal” (Lima, 2010, p. 163).
Para que seja considerado crime, é necessário que se tenha uma conduta típica, antijurídica e culpável. Através dessa definição, o operador do Direito encontra o caminho que se deve ser percorrido para ser constatar, em cada caso concreto, se tiver ou não a prática de um delito.
A permissão do aborto nos casos de anencefalia, desde que haja o consentimento da gestante, enquadra-se uma hipótese de um exercício regular do direito, causa-se excludente de ilicitude, conforme o inciso III do artigo 23 do Código Penal. Esta sendo falado no exercício regular de direito e nos princípios de interpretação constitucional dos direitos fundamentais, em especial no princípio da proporcionalidade. O exercício regular do direito, figura como excludente de ilicitude, que se manifesta quando há a transgressão do ordenamento jurídico por meio da prática do tipo penal.
A interrupção da gestação de fetos anencéfalos deixa claro, que não corresponde, rigorosamente, ao “aborto eugênico”, que ocorre quando constatada anomalia comprometedora da higidez mental e física do feto, mas com possibilidade de sobrevivência pós-parto, não importa se curta ou longa e interrompida a gravidez.
Para finalizar, o direito à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher deve prevalecer, uma vez que o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa humana, como valor essencial do Estado Democrático de Direito, representa, nessas convicções pessoais, independentemente da imposição de qualquer dogma, moral, religião ou verdade absoluta sobre a compreensão do mundo e da vida.
É evidente que configura e afronta o princípio da dignidade da pessoa humana submeter a gestante a tal sofrimento grave e desnecessário de levar em seu ventre um filho, que não poderá sobreviver; além de todo transtorno psicológico há de se falar ainda nos traumas físicos, pois, a gestação de um feto anômalo acaba requerendo da gestante um esforço físico ainda maior, pois os órgãos acabam trabalhando pelos dois.
5.1 O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS ANTES DA APROVAÇÃO DA ADPF N° 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O entendimento dos Tribunais vem sendo favorável ao aborto, por entenderem a real necessidade e quão sacrificante é para a gestante postergar uma gestação que gerará um fruto no qual não tem expectativa de vida, e mesmo que a vida extrauterina seja levada por algum período a mais, essa será em estado vegetativo.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro vem entendendo da seguinte forma:
2004.059.06681 – HABEAS CORPUS DES. SUELY LOPES MAGALHAES - Julgamento: 27/01/2005 - OITAVA CAMARA CRIMINAL HABEAS CORPUS - ANENCEFALIA ABORTO ALVARA DE AUTORIZACAO.
"Habeas Corpus". Anencefalia.
Alvará de autorização para intervenção cirúrgica. Presença do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora". Feto portador de anencefalia, observada a presença de diversas anomalias. A Comissão de Ética Medica do Instituto Fernandes Figueira, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, emitiu parecer favorável à interrupção da gravidez, por se tratar de concepto portador de graves más formações no sistema nervoso central, incompatíveis com a vida extrauterina, tornando a gestação frequentemente complicada por polidramia, que acarreta graves consequências à saúde da gestante. Precedentes jurisprudenciais. A intervenção se faz necessária, justificada a realização da intervenção cirúrgica para remoção de feto anencefálico pelo estado de necessidade, reconhecendo-se o perigo de grave dano à pessoa, em face das consequências morais, familiares e sociais do parto.
Conduta atípica por não atingir qualquer bem jurídico penalmente tutelado. Ordem concedida.
2003.050.05208- APELACAO CRIMINAL DES. GIZELDA LEITAO TEIXEIRA - Julgamento: 25/11/2003 – SEGUNDA CAMARA CRIMINAL ABORTO ANENCEFALIA AUTORIZACAO JUDICIAL AGRAVO REGIMENTAL NEGADO PROVIMENTO.
Agravo Regimental. Agravo interposto contra decisão que autorizara gestante a interromper a gravidez ante a patologia apresentada pelo feto, de natureza irreversível e incontornável, que impossibilita a vida pós-natal. Argumenta-se que a CF/88 assegura como inviolável o direito à vida, não condicionando "a norma à fase da vida em que se encontra o individuo humano". Dizem os agravantes que é discriminatório desconsiderar ou desrespeitar o direito à vida do nascituro. Juntam decisão anterior deste Tribunal e requerem a reconsideração da decisão que autorizara a interrupção da gravidez. Realmente não há previsão legal para a hipótese versada nos autos. Mas, atento ao principio da razoabilidade, tem-se como desumana e ilegal a decisão que, imotivadamente, suspendera os efeitos da autorização judicial concedida por esta Relatora. Desumana porque ignora totalmente o sofrimento suportado por uma jovem de apenas 18 anos (e seu marido), que tem plena ciência de carregar no ventre um ser condenado à morte, não havendo a menor possibilidade de sobrevivência, apos o parto. Ilegal porque somente esta Relatora (a quem, alias, foi dirigido o agravo regimental, conforme determina o art. 200 em seu paragrafo 2º Do Regimento Interno desta Corte) poderia nele se manifestar. Ressalte-se que a condição de Presidente da Câmara não confere ao prolator da decisão poderes para suspender decisão adotada por outro Desembargador, pelo simples motivo de inexistir hierarquia entre quaisquer dos membros da Câmara. Todos são Desembargadores: as decisões têm a mesma eficácia e um não pode revogar o que o outro decidiu. Só o Colegiado pode modificar o decidido monocraticamente. Se assim age, pratica invasão de competência e esta decisão nenhuma eficácia tem porque prolatada por quem não tinha competência para tal. A justificativa de que era o único membro da Câmara presente no Tribunal da' a falsa ideia de desídia dos demais integrantes da Câmara. A pauta do dia de hoje já tinha sido publicada, em 19 de novembro e dela constavam vários processos de que somos relatores e revisores. Logo, aqui estaríamos presentes (embora em ferias) e de pronto seria julgado o agravo regimental, mostrando-se desarrazoada a intervenção de outro Desembargador no feito.
Ressalte-se que a decisão de cunho suspensivo somente teve o efeito inquestionável de causar mais sofrimento e revolta ao casal, já tão fragilizado pela situação dolorosa que enfrentam. A decisão agravada (que autorizava a interrupção da gestação é de ser mantida por seus próprios fundamentos).
Não lograram os agravantes trazer qualquer argumento que evidenciasse equivoco na fundamentação da decisão guerreada. Invocam genericamente a Constituição como garantidora do direito à vida, nada mais. Ignoram completamente o desespero da mãe por saber frustrada a chegada de um filho, pois é positivado nos autos por laudo medico que o feto apresenta "malformação grave do sistema nervoso central (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar) que é incompatível com a vida pós-natal". Ora, versando os autos sobre questão cientifica, não cabem aqui divagações sobre o tema. Cabe sim ao Judiciário decidir e decidir sem medo de contrariar os que pensam diferente, pois o casal recorreu ao Judiciário buscando obter a interrupção legal da gestação. Não agiram na clandestinidade, demonstrando respeito pelas instituições e pela ordem jurídica vigente.
Não podem e não merecem permanecer com este sofrimento de saber que o filho tão desejado não sobreviverá tão logo venha ao mundo por padecer de patologia incontornável. Argumento algum foi invocado para justificar a reforma da decisão autorizadora da interrupção da gravidez. Os agravantes somente invocaram os velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida de quem já está inexoravelmente condenado à morte, ignorando-se por completo o sofrimento, a angustia dos pais e o risco de vida que corre a mãe, abatida por intensa depressão, a esta altura intensificada pela constatação dolorosa de que recorrer à Justiça nem sempre significa solução rápida para problemas cruciais. Nego provimento ao agravo e mantenho a autorização para que a agravada submeta-se ao aborto, interrompendo-se a gravidez em curso. Vencido o Des. J.C. Murta Ribeiro.
Ementário: 20/2005 – N° 01 – 22/06/2005.
Diante desse quadro, podemos constatar que as primeiras instâncias não se consideravam juridicamente capazes para proferir qualquer decisão que seja em relação ao tema, se notarmos todo o material jurisprudencial existente a grande maioria das decisões foram proferidas em segunda instância, o que no entendimento dos desembargadores a matéria além de muito complexa abrange uma série de controvérsias e que realmente carece de grande análise e de uma ótica mais apurada, para que não seja cometida nenhuma injustiça.
5.2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROCEDÊNCIA DA ADPF Nº 54.
Desde 2004 para ser julgada no Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 foi votada entre os dias 11 e 12 de abril de 2012, vencendo a descriminalização do aborto de feto anencéfalo, o que o atual Código Penal silencia.
A ADPF foi ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, com o fim de que a prática do aborto nos casos de feto anencefálico não fosse caracterizada como crime, tendo em vista que ela corrobora com o que prega o artigo 128, incisos I e II do Código Penal.
Com o Projeto de Lei do Senado nº 50 de 17/02/2011 - há no que se falar na prática do aborto terapêutico nos casos de anencefalia, entretanto, com o advento do julgado no STF existe uma pacificação nessa seara. A prática dos abortos já existe e até mesmo com o consentimento da justiça conforme as jurisprudências acostadas a este estudo e que norteiam tal entendimento agora unificado juridicamente falando, ocorre que tais decisões tinham e ainda têm uma demora demasiadamente excessiva quanto às decisões, essas que sempre eram indeferidas pelo juízo de primeira instância; o que era retificado pelo entendimento dos Tribunais de Justiça Estaduais, os juízes de primeira instância não a fim de não entrar no pleito da competência para dirimir tal conflito, se tornava silente, no sentido de proferir decisão favorável a gestante a fim de que ela pudesse recorrer à segunda instância e assim ter garantido seu direito.
O grande problema nesse árduo caminho além do desgaste físico e psicológico é a morosidade com a qual as ações tramitam no nosso judiciário, mais ainda no que tange a temática do aborto de feto anencéfalo, pois é claro de que estamos tratando de um bem juridicamente tutelado que é a vida. É sabido que tal decisão necessita de urgência e perde-se muito tempo no deslinde da decisão o que interfere de forma impactante na vida da gestante. Com essa decisão do STF autorizando o aborto nos casos em estudo ganha-se muito em questão de preservar o direito à escolha da gestante. Não há em que se falar que todas as gestantes que detectem que seu feto seja anencéfalo serão obrigadas a abortá-lo, não estamos pleiteando uma medida coercitiva, pelo contrário, queremos dar a liberdade de escolha, que seja levado em conta o desejo da gestante, que ela não seja obrigada a carregar uma gravidez que se tornará um fardo e que futuramente não lhe renderá frutos o que causa grande tormenta e frustra todas as expectativas, o maior anseio de uma mãe é ter seu filho acalantado em teus braços, é lhe dar carinho, amor, afeto, é dedicar uma vida em prol de um ser que depende totalmente até determinado estágio de sua vida de atenção. E vejamos, não é justo nem sequer humano obrigar uma mãe a postergar seu sofrimento sabendo que depois de alguns meses dará a luz a um ser que nem sequer terá a chance de passar um dia inteiro, em virtude da grande sensibilidade que o anencéfalo tem, chegando a sobreviver por horas.
A grande discussão que se tornou um divisor de águas é o bem maior a ser tutelado em jogo - avida – é óbvio que não queremos que o Estado seja conivente com uma carnificina fetal, mas sim que dê as gestantes o direito de escolher prosseguir ou não com uma gravidez que lhe ocasionará grande tormenta.
Diante disso, destaquei para melhor externar a questão em estudo os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, a fim de explanar os pontos mais relevantes o que corrobora com o contexto desse estudo.
É importante destacar que tal decisão proferida no STF se deu através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, que veremos a seguir uma sucinta explanação do que se trata tal instrumento para controle da constitucionalidade.
A ADPF foi implantada no nosso ordenamento jurídico com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, entretanto, só passou a ser regulada ao que tange o seu processo e julgamento com a promulgação da Lei nº 9.882 de 3/12/1999.
O artigo 1º da Lei em comento em seu inciso I nos aduz que, in verbis: “I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;” (Vade Mecum, 2011, p. 1.758).
É notório que a matéria quando envolve qualquer ser humano, tendo em vista que não ocorre em casos isolados, ou seja, qualquer mulher pode gerar um feto anencéfalo, basta somente ela poder ficar grávida. Não há garantia de que o feto a ser gerado será saudável e livre de qualquer malformação. O que posteriormente com exames amplos e eficazes será detectado. Nota-se que um dos fatores motivacionais para se ajuizar uma ADPF é motivo de grande relevância, tendo este sido silenciado por nosso ordenamento jurídico abrindo assim uma lacuna para discussão.
O artigo 5º da mesma Lei em comento nos diz que: “O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na arguição de descumprimento de preceito fundamental”. (Vade Mecum, 2011, p. 1.759).
É fácil verificarmos tal entendimento, tendo em vista que o STF aprovou por 8 (oito) votos a 2 (dois); em virtude de ter se manifestado publicamente a favor do aborto de feto anencéfalo quando era advogado-geral da União o Ministro Dias Toffoli se declarou impedido de votar.
Depois de decidido no STF, no caso em estudo julgada procedente a ADPF, a matéria se torna irrecorrível, ou seja, não poderá ser objeto de uma ação rescisória por exemplo.
É forçoso salientar a grande importância da conquista da liberdade que as gestantes ganharam com a descriminalização do aborto de feto anencefálico, será destacado a seguir o entendimento pessoal de cada Ministro e como se deu a justificativa do seu voto.
O relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela procedência da ADPF 54, para o relator não há no que se discutir quanto à vida, segundo o Ministro “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível”. A anencefalia cria uma anomalia ao feto, fazendo com que ele perca sua capacidade. No nosso ordenamento jurídico a vida, é tutelada como bem principal e mais, como o maior bem a ser tutelado em consonância com essa determinação o voto do Ministro é totalmente pertinente no aspecto de que, se não há vida em potencial não há em que se falar em aborto.
No âmbito de tentar defender o direito da gestante e acima de tudo o direito à escolha o relator assevera que: “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”. Não é dizer que com isso o Estado será favorável a uma chacina em massa, é óbvio que não! O fator primordial é dar a gestante o livre arbítrio em prosseguir ou não com a gestação, tendo em vista que essa será de risco.
O Código Penal para o relator é silente em virtude da época em que foi elaborado e promulgado. Nas décadas de 30 e 40 não tínhamos a evolução cientifica e tecnológica que dispomos hoje, logo, não se tinha sequer a possibilidade de presumir uma anomalia de tal proporção. O grande problema foi que por esses longos anos o Congresso permaneceu inerte a essa evolução histórica e não se adequou às mudanças pelas quais a sociedade estava passando e com elas não atendeu aos anseios de que precisava.
Outro aspecto de grande relevância que o Ministro aduz é a questão do direito estar posto a salvo das concepções religiosas, morais e filosóficas, pois por grande influência dessas ciências houve um retardo significativo no desenvolvimento de questões de grande repercussão e importância como este em estudo. Não é dizer que tais influências não contribuíram para que tivéssemos chegado a um entendimento moral e ético que temos hoje, ao nível de sociedade, mas daí deixar que as ramificações do direito sejam diretamente interferidas ou até mesmo desvirtuadas, como por exemplo, sacrificar todas as gestantes que queiram abortar não sendo favorável a descriminalização só porque existem umas que não queiram. A lei tem que ser flexível, não se deve coibir a ação, assim como não será obrigado aos que não concordem com a prática em fazê-lo, mas devemos primar o arbítrio, a liberdade de escolha acima de tudo. O que é claramente corroborada com as palavras do Ministro Relator “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”. Segundo o Ministro, houve grande necessidade do STF se pronunciar em virtude do grande número de autorizações judiciais que foram deferidas para que as gestações fossem interrompidas, como mencionado no início do capítulo, tal procedimento é deveras moroso o que ocasiona um transtorno ainda maior para a gestante.
A Ministra Rosa Weber, acompanhou o voto do relator, sendo favorável a interrupção da gravidez de feto anencéfalo. A Ministra assevera que: “de acordo com o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal”. Tal fundamentação encontra arrimo na Resolução Nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, em seu artigo 1º, in verbis: “A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias”. Com isso a Ministra quis dizer que, se o próprio Conselho Federal de Medicina alega que com a morte encefálica, não há em que se falar em vida, tendo em vista o comprometimento de todas as demais funções vitais, não há o aspecto de vida ceifada em decorrência da antecipação do parto.
O grande dilema na verdade, será em deixar que a mãe decida se ela quer postergar a gravidez sabendo que o feto nascerá morto ou poderá ter algumas horas de vida ou ainda, interromper a gestação evitando um desgaste físico e psicológico. Segundo ainda a Ministra, “um critério claro, seguro e garantido, que pode ser aplicado, por analogia, ao feto anencefálico” se reportando ao conceito de morte encefálica utilizado pela Resolução supramencionada do CFM.
A Ministra prega que tem que ser da gestante o direito a escolha, o Estado não pode intervir de forma direta a fim de decidir a vida que não lhe será confiada, ou seja, é a mãe que arcará com todos os dispêndios daquela situação, logo, nada mais justo do que a própria mãe ter o direito de decisão se opta ou não pela continuidade da gestação, seguindo a esse lume a Ministra diz que: “A postura contrária, a meu juízo, não se mostra sustentável, em nenhuma dessas perspectivas e à luz dos princípios maiores dos direitos, como o da dignidade da pessoa humana, consagrada em nossa Carta Maior, no seu artigo 1º, inciso III”, fala-se demasiadamente em vida, entretanto, resta claro que se for seguindo o ordenamento jurídico brasileiro, não temos que falar em vida.
O entendimento do Ministro Joaquim Barbosa, vai ao encontro dos já mencionados anteriormente, pois ele também é favorável à procedência da ADPF 54. O Ministro pautou um grande obstáculo que a matéria atravessa que é pautado no cunho religioso, nesse sentido o Ministro manifestou-se da seguinte forma: “A garantia do Estado laico obsta que dogmas de fé determinem o conteúdo de atos estatais. Concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada”, disse. “Ao Estado brasileiro é vedado promover qualquer religião.” Fica evidente que não devemos misturar ciência com religião, entretanto, hodiernamente os grandes posicionamentos contrários são fulcrados em teses que possuam um cunho religioso ou até mesmo filosófico. Porém, não podemos nos esquecer de que estamos em outras épocas, não podemos ficar engessados aos dogmas que determinavam os ditames de como agir e pensar. Não podemos viver em um arcabouço de ideias meramente decorativas ou até mesmo evasivas simplesmente a fim de cortejar aquele que tem uma maior influência social.
O Ministro Joaquim Barbosa, reiterou o seu voto proferido no ano de 2004 no julgamento do Habeas Corpus 84.025-6, Rio de Janeiro, no qual o Ministro foi relator fazendo apenas algumas ponderações que fora juntada oportunamente. “Gostaria de pedir a juntada desse meu voto para aderir ao brilhantíssimo voto do eminente relator”, afirmou.
O Ministro destacou que todo feto é merecedor de tutela judicial, entretanto, no caso do anencéfalo há a inviabilidade da vida, o que é claro não é correto pautar como crime contra a vida. Falar em tipicidade fica complexo demais, já que o aborto do anencéfalo é tratado de forma solta do que prega o Código Penal, encontrando respaldo na Constituição da República Federativa Brasileira e ainda no Código Civil.
Uma justificativa plausível para que seja utilizado de forma antagônica à sociedade hodierna, é que quando promulgado o Código Penal vigente em nosso país não se tinha essa concepção que se tem hoje e menos ainda, tantos casos de anencefalia. Daí conclui-se que realmente era difícil disciplinar uma matéria até então em desuso, ou até mesmo desconhecida, em virtude da pobreza de informações. Com o avanço da tecnologia e da ciência, se tem hoje todas as ferramentas possíveis para se diagnosticar doenças como a anencefalia, por exemplo, contudo, há ainda no que se falar que isso por si só não pode configurar como parâmetro para que seja levado com tamanho descaso os casos de fetos anencefálicos. É imprescindível que o Estado seja parceiro das gestantes que queiram proceder à prática da interrupção da gravidez, pelo simples fato de termos um número menor de clandestinidade, pois com ou sem autorização jurídica, a gestante que estiver determinada a fazê-lo o fará, de forma errada, mas o fará. Logo, é preferível que tais procedimentos sejam acompanhados por médicos especialistas, até mesmo o médico que acompanha a gestante, em lugar seguro e apto para tal prática para que não só seja realizado com segurança o aborto, mas como não venha este deixar sequelas na gestante a impedindo, por exemplo, de gerar outro ser, o que seria um fardo ainda maior.
O quarto voto proferido no julgamento do STF foi do Ministro Luiz Fux, que acompanhou o voto do relator e votou pela procedência da ADPF 54. O Ministro começa seu voto evocando a Constituição “Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal efetivamente equivale a uma tortura, vedada pela Constituição Federal”, disse. Diante dessa fala podemos constatar que a matéria em estudo está inerente à nossa Constituição, o grande abismo que há entre o Código Penal e a própria Carta Magna é que o Código silencia quanto ao caso específico da anencefalia abrindo assim um precedente para que o mesmo tome forma de acordo com quem o esteja interpretando. Com isso vejamos, se a matéria não é regulada em lei específica e a Lei Maior aduz que seus princípios e garantias fundamentais devem ser preservados acima de qualquer circunstância e acima de tudo a dignidade da pessoa humana temos aí um fragmento com o qual se pode interpretar a letra da lei como convir.
Pautando seu voto embasado em dois dos princípios constitucionais, o Ministro Fux, tem em vista que, não se pode simplesmente ignorar a saúde psíquica e física da gestante, pois esta fica terrivelmente abalada, não é dizer que com o aborto a dor se findará ou até mesmo não haverá sequelas na gestante, há sim no que falarmos em danos traumáticos, hipótese esta que é perceptível desde a identificação da anomalia até a decisão que será tomada pela gestante, quer seja pela interrupção da gravidez ou da sua continuidade. Tal entendimento é explicitado pela fala do Ministro quando ele diz que: “à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo relegar a gestante de um feto anencéfalo ‘aos bancos de um tribunal de júri’ para responder penalmente por aborto. Por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana? questionou”.
Para a gestante, é necessário: “todo apoio necessário em uma situação tão lastimável” e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer fundamento razoável. “Esta hipótese seria, no meu modo de ver, o punir pelo punir, como se o direito penal fosse a panaceia de todos os problemas sociais.” Para o Ministro, o problema se torna de caráter social merecendo ser tratado como tal, dando as gestantes um acompanhamento psíquico, sociológico, a fim de que a mesma seja instruída, não a prática do aborto, óbvio, mas sim a conduzir tal adversidade que quer queira quer não, interfere consideravelmente na vida de qualquer família que esbarre com esse dilema.
Uma das passagens significativas do voto do Ministro Fux, é a seguinte: “Se o infante não é natimorto, falece horas após o nascimento”, disse. Quão doloroso não dever ser para uma mãe ao invés de estar na expectativa de receber seu filho, de pegá-lo nos braços ou de organizar seu enxoval, organizar seu funeral, estar preocupada em encomendar seu caixão, o fato por si só já é tortura suficiente para a gestante, o ordenamento jurídico não tem direito em postergar tal sofrimento, não alegando aqui que a realização do aborto seja fácil ou que não acometa de sofrimento a gestante, mas que essa o faz de forma menos penosa.
Não está se discutindo quem é detentor da razão, entretanto, havia a necessidade de disciplinar juridicamente a matéria com o fim de dizimar qualquer controvérsia que por ventura ainda haja em relação ao aborto do feto anencéfalo. “No meu modo de ver, seria extremamente prematuro que o STF buscasse solucionar, como se legislador fosse, todas as premissas de um intenso debate que apenas se inicia na nossa sociedade, fruto do pluralismo que a caracteriza”, ponderou. Diante da inércia do Congresso Nacional o STF teve que ingressar nessa empreitada para dirimir todas as contravenções que ocorriam em detrimento ao que aduz a Constituição da República. Outro aspecto significativo que se terá com a procedência da ADPF 54 é que muitas gestantes deixarão de procurar de forma irracional e clandestina clínicas para que realizem a prática abortiva, não que o Estado seja favorável ao aborto, mas para aquelas que decidam optar por ele, que este lhes dê o apoio necessário para que seja feita tal prática sem maiores complicações para a gestante, tendo em vista, o grande fardo que já carrega.
A Ministra Cármen Lúcia, também votou favorável à procedência da ADPF 54, a Ministra começou enfatizando que esse julgamento reflete o momento democrático em que estamos vivendo, diante tamanha importância que a temática tem não só para o ordenamento brasileiro, mas para a sociedade como um todo, com isso vivemos claramente segundo a Ministra momentos “de pluralidade e de respeito absoluto pelas opiniões contrárias, o qual precisa ser dito exatamente na perspectiva constitucional”. Seguindo o voto do relator e fazendo coro com os Ministros que a antecederam, este é o quinto voto favorável a descriminalização do aborto de feto anencéfalo.
Um aspecto bem pautado pela Ministra e que deve ficar claro para a sociedade como um todo é que com a procedência da ADPF 54 o STF não está liberando o aborto e nem pactuando com a mortandade de fetos indesejados ou provenientes de anomalias e malformação. O que tem que ser levado em consideração é que o texto da ADPF em pleito trata exclusivamente da descriminalização dos casos de feto anencefálico, ou seja, a matéria é estrita, tendo em vista que cuida exclusivamente da anencefalia.
A Ministra fez questão de frisar que: “Estamos discutindo o direito à vida, à liberdade e à responsabilidade”, ou seja, com essa fala fica nítido que o que o STF quer é o direito de escolha em prosseguir com a gravidez compete à gestante, ao pai da criança, a família, porém a gestante é quem sofre bem mais diante de todos os transtornos psicológicos e físicos.
É forçoso destacar o trecho que segue da Ministra, a fim de elucidarmos um aspecto ainda muito controverso: “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também”, disse a ministra, destacando que, para ela, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não é criminalizável para que seja preservada a dignidade da vida “que é o que a Constituição assegura como o princípio fundamental do constitucionalismo contemporâneo”. A Ministra fundamenta o seu voto nos princípios constitucionais, principalmente no da dignidade da pessoa humana que vem sendo basilar para diversas fundamentações na casa. Não quer dizer que o fato da gestante optar pelo aborto que será fácil pra ela, de forma alguma, é uma expectativa frustrada de um filho, se a dor de carregar uma gestação por nove meses já é demasiadamente fadada imaginemos se a gestante tem a certeza de que aquela gravidez será infrutífera gerando um feto morto, ou com apenas algumas horas de vida. Aí é onde esbarramos em um grande abismo de concepções – Morte e vida – ocorre que, o nosso ordenamento jurídico em seu artigo 2º do Código Civil diz que “a personalidade jurídica da pessoa começa com o nascimento com vida...”, vejamos o artigo 6º do mesmo diploma legal, “A existência da pessoa natural termina com a morte;...”, o dicionário Caldas Aulete, Lexikon, 2009, pág. 546 define morte como: “1. Cessação de finitiva da vida ou da existência...”, temos ainda a Resolução Nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, em seu artigo 1º, in verbis: “A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias”. Diante da exposição dos dispositivos supra, é de fácil conclusão que as fundamentações se correlacionam com o fim de dirimir qualquer divergência que por ventura ainda haja, ou seja, não há em que se falar em morte porque o requisito para que ela seja caracterizada é a morte cerebral, e diante de um ser sem cérebro não há morte, nem se quer a vida. Há a manifestação de algumas funções vitais em virtude do tronco, mas tais ações são totalmente involuntárias, são independentes das funções cerebrais, ou seja, sem ter nenhuma concepção do que se faz. A ministra destacou que nada fragiliza mais o ser humano do que o medo e a vergonha. “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”, concluiu a ministra Cármen Lúcia. Segundo o discurso da Ministra, não se pode impor tamanho sofrimento à família obstruindo o direito de escolha; de modo geral, o grande objeto da ADPF, é a descriminalização do aborto de feto anencéfalo, entretanto, o que pauta de forma consubstanciada a divisão de opiniões é a questão da opção da gestante em dar ou não prosseguimento na sua gravidez, ou seja, não é fazer coro à permissão do aborto, mas, salvaguardar o livre arbítrio e o princípio da dignidade da pessoa humana que prega a Constituição da República Federativa do Brasil, mesmo que haja uma regulamentação de Lei Infraconstitucional, como é o caso do aborto dentro do Código Penal, a Carta Magna impera não absoluta, mas alicerçada a este com a finalidade de garantir unicamente o bem maior tutelado – a vida – que torna o objeto primordial de toda a discussão acerca da matéria.
O sexto a votar no STF, o Ministro Ricardo Lewandowski, defendeu a improcedência da ADPF 54; seu voto foi aberto abrindo um questionamento de que o judiciário não pode decidir matéria que deveria ser de competência do legislativo, ou seja, ele assevera que o judiciário está se prevalecendo do seu poder e invadindo matéria que não lhe competia. Tal alegação fica exposta na fala do Ministro extraída de seu voto: “O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição". No entendimento de Lewandowski o STF não era competente para dar tratativa à matéria, mesmo tendo sido atendidos os requisitos para que a ADPF fosse ajuizada. Ele ressalta ainda que, o judiciário agiu como se estivesse se apropriando de uma legitimidade que não detém quando fala que: “Não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”. Se o Congresso nacional se mantiver inerte a matérias que são de interesse relevante da sociedade no qual ocorre lacuna na Legislação, é de pertinência do judiciário intervir e sanar de formar uniforme qualquer divergência que possa ocorrer desde que, seja este provocado não sendo facultado por mera liberalidade resolver tomar partido sobre este ou aquele assunto.
“Nosso parlamento se encontra profundamente dividido, refletindo, aliás, a abissal cisão da própria sociedade brasileira em torno da matéria”, expondo essa fala o Ministro sustenta que em virtude da complexidade da matéria, o Congresso ainda não conseguiu nortear um meio de se discutir a matéria, como por exemplo, o PL 50 de 17/02/2011 que tramita no Senado Federal que não houve alteração. Nesse âmbito, o judiciário diante da provocação da ADPF 54 veio dirimir e pacificar a matéria, primeiro diante da inércia do Congresso e segundo em decorrência ao conflito de competência que ocorria quando se aludiam entre a Constituição Federal e o Código Penal, ou seja, diante da veemente necessidade de regulamentação do aborto de feto anencéfalo.
Ao seguir na explanação de seu voto, Lewandowski demonstra uma grande preocupação de como serão tratadas as demais anomalias que também sofrem por falta de regulamentação no ordenamento jurídico, ou seja, no ponto de vista do Ministro com a procedência da ADPF 54 abre-se precedente para que se possam julgar da mesma forma casos semelhantes sem estarem disciplinadas em dispositivos legais. O Ministro entende que é “discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico” tal autorização sendo importante colocar em relevo que podemos estar condenando o atual ordenamento a uma ação retrógada quando ele diz que: “Sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”.
Por fim, o voto do Ministro ressalva o conflitante entendimento entre alguns preceitos jurídicos que definem guarida acerca da vida intrauterina, merecendo relevo o artigo 2º do Código Civil no que disciplina e salvaguarda o nascituro “desde a sua concepção” e em ato contínuo os seus direitos. Segundo ele, essa também deveria ser considerada inconstitucional, pois em seu entendimento vai de encontro com a Constituição.
Passamos ao sétimo voto proferido no STF com o Ministro Gilmar Mendes, o mesmo foi pela procedência da ADPF, contudo, o Ministro pautou algumas considerações que ele entende relevante acerca da matéria e que devem ser tratadas com maior responsabilidade e veemência a fim de que não seja caracterizada qualquer anomalia como aborto incorrendo assim na prática ilícita do aborto.
Foi de pronto elencado uma dualidade na interpretação para o Ministro que entende que o aborto do feto anencéfalo fica juridicamente melhor se enquadrado como uma excludente de ilicitude que já é prevista no Código Penal, tendo em vista que tal modalidade de gestação causa à gestante grande risco à saúde e não como mais uma hipótese de aborto, pura e simplesmente. Diante desta premissa, o Ministro ressalta que o trabalho de diagnóstico da anomalia deve ser preciso e a partir de agora com o advento da ADPF 54, massificado para que se torne totalmente eficaz a fim de respaldar a seguridade jurídica e atender in totum ao que prega a ADF aprovada pelo STF, tendo de: “conferir segurança ao diagnóstico dessa espécie”. Ainda neste aspecto o Ministro destaca a relevância de se regular a anomalia para que assim, seja garantida de forma verosímil à gestante com fulcro no que prega a regulamentação: "a anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente seguras”.
Segundo o Ministro, o nosso Código Penal é silente ao que tange o aborto de feto anencéfalo, não por entender que a matéria não carecia de regulamentação, mas, em virtude do ano da promulgação do citado diploma legal não haver conhecimentos técnicos e específicos para dirimir qualquer dúvida que pudesse por ventura existir diante do quadro clínico de anencefalia. O que fica nítido quando o Ministro usa o termo: “Todavia, era inimaginável para o legislador de 1940 [ano da edição do Código Penal], em razão das próprias limitações tecnológicas existentes”, hodiernamente é fácil detectarmos a anomalia, contudo, no entendimento do Ministro a legislação não poderia permanecer inerte sem tratar da temática, e ainda com mais proporção tendo em vista o acesso mais fácil à justiça e consequentemente o ganho de autorização através de liminar para a intervenção da gestação.
Para Gilmar Mendes, compete à gestante decidir se prossegue ou não com a gravidez a partir do momento em que descobre que está gerando um feto anencéfalo, ou seja, com isso o Ministro diz que deve ser garantido o direito de escolha à gestante, fazendo coro com os votos anteriores, que esse direito se torna violado com a obrigação – já pretérita – de se prosseguir com a gestação o que infringe o direito físico, psíquico e mormente o direito de escolha da gestante. Destaca ainda, que o Estado deve intensificar: “com todo zelo, a questão relativa ao diagnóstico de anencefalia fetal, visto que ele é condição necessária à realização deste tipo de aborto”.
O oitavo voto da ADPF foi proferido pelo decano da casa, o Ministro Celso de Mello, ele foi totalmente favorável ao texto da arguição em pleito a fim de garantir o pleno direito à interrupção da gravidez, caso seja detectada a anomalia fetal. Contudo, para o Ministro deve ser considerado que “esta malformação fetal seja diagnostica e comprovadamente identificada por profissional médico legalmente habilitado”, reconhecendo à gestante “o direito de submeter-se a tal procedimento, sem necessidade de prévia obtenção de autorização judicial ou permissão outorgada por qualquer outro órgão do Estado”, salientou o Ministro concluindo seu voto.
Ressaltando ainda, que: “a Corte não estava impondo nada, mas reconhecendo pleno direito à mulher de escolher o caminho a seguir, em casos de anencefalia, inclusive o de conduzir a gravidez até o fim”, ou seja, mais uma vez o entendimento é no sentido de que a gestante tem total discernimento, quando este corroborado com o Código Civil, para escolher se quer ou não prosseguir com a gestação; baseado nesse direito a Corte entende que não pode compelir a gestante a submeter-se a uma prática penosa que lhe cause grande dor e sofrimento. Nessa seara o Ministro elenca total respaldo da Constituição a fim de que seja resguardado tal direito da mulher, pois, ele considera o corpo inviolável. Norteia tal entendimento fundamentando: “que a mulher, apoiada em razões fundadas nos seus direitos reprodutivos e protegida pela eficácia incontrastável dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, têm o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de parto nos casos de comprovada malformação fetal por anencefalia; ou então, legitimada por razões que decorrem de sua autonomia privada, o direito de manifestar sua liberdade individual, em clima da absoluta liberdade, pelo prosseguimento natural do processo fisiológico de gestação”, o STF assim, configura essencial a liberdade de escolha, e acima de tudo a relevância da opinião da gestante, até porque ela é quem girará como maior interessada no deslinde de todo processo, é importante destacar que quando falamos exclusivamente na gestante, vale salientar que está incluso nesse aspecto o genitor e até mesmo todo o seio familiar que dará esteio ao nascituro, não necessariamente, não caso de anencéfalo, tendo em vista sua incompatibilidade com a vida extrauterina. Tal observação se dá com a finalidade de elucidar qualquer desconforto ao que preze no sentido de sempre ser citado exclusivamente o termo – gestante – pois, ela é quem está diretamente ligada ao fato, ou seja, é dela o corpo violado e até então, que era imposto coercitivamente de forma imperiosa o prosseguimento da gestação, salvo, não manifestasse tal vontade de forma jurídica. Situação esta, que levou o STF ao realizar o julgamento da ADPF 54, disciplinando a matéria e tornando de forma uníssona o entendimento nos demais tribunais. A temática gira em torno de tantos valores e interesses gerais que o Ministro Celso de Mello caracterizou o julgamento da ADPF 54 como um dos: “mais importantes julgamentos que o Supremo Tribunal Federal já realizou, em toda a histórica republicana”.
O Ministro se reportou ainda à Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.752/2004 que nas considerações iniciais trata, in verbis: “CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica;” (Resolução CFM, nº 1752/2004, pub. No D.O.U. de 13 de setembro de 2004, seção I, p. 140).
“Por analogia, o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, porque não tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade cerebral.” Com esse comentário, o Ministro vai ao encontro do dispositivo citado anteriormente, ou seja, não há que se falar em vida dentro do âmbito jurídico. E pelo que aduz o Conselho de Medicina, também se tem essa concepção de forma médica. Não há em que se falar em tipicidade ou excludente de crime, e menos ainda em crime, pois se levarmos ao lume do nosso ordenamento e das fundamentações infraconstitucionais, não se tem o bem jurídico tutelado – a vida – Celso de Mello ao afirmar que: “Se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”, corrobora tal entendimento.
“Levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde a tortura, a tratamento cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir. O martírio é voluntário”. Com essas palavras o Ministro Ayres Britto iniciou o discurso do seu voto. No entendimento do Ministro, é um desgaste físico e psíquico oneroso demais para se impor a gestante. Para Ayres Britto, “a gravidez se destina à vida, e não à morte.” Trata ainda como uma questão “até lógica” a opção da mulher no sentido de interromper a gestação de um feto anencéfalo. “É preferível arrancar essa plantinha ainda tenra do chão do útero do que vê-la precipitar no abismo da sepultura”, afirmou.
Ayres Britto assim como o entendimento dos votos favoráveis, tem plena consciência de que é uma decisão muito difícil para gestante, seja ela optar pela interrupção da gravidez, seja em prosseguir com a mesma. O que não pode servir como parâmetro para isso é o Estado na figura de órgão garantidor de direitos, ceifar o livre arbítrio da gestante, impondo mais sofrimento do que já lhe é acometido. Com isso, tem-se claro que: “Se (a mulher) for pela interrupção da gravidez, (essa decisão) é ditada pelo mais forte e mais sábio dos amores: o amor materno”. Uma mulher não é menos mãe, caso decida interromper a gravidez, sabendo-se que dali restará infrutífera independente do estágio que se encontre. O fator determinante para qualquer decisão como bem sustenta Ayres Britto, é o amor materno, este sim, é o sustentáculo para que se tenha o anseio de prosseguir seja com a continuidade da gestação ou com a sua interrupção. Ressalta ainda que: “o amor materno é tão forte, tão sábio, tão incomparável em intensidade com qualquer outro amor, que é chamado por todos de instinto materno”. Com essa fala, conclui que essa decisão da mulher é “mais que inviolável, é sagrada”. O Ministro salientou que deve ficar claro que quanto à gravidez: “Ninguém está proibindo. É opcional”.
O presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, foi o último a proferir seu voto acerca da ADPF 54, sendo para ele totalmente improcedente a ação. Ele começa destacando que: “O anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”. O que para o Ministro se enquadra no que aduz o artigo 2º do Código Civil, que serve como fundamento basilar para seu voto. Foi destacado por ele um ponto controverso e excessivamente importante, segundo ele a matéria deve ser tratada com “cautela redobrada”, porque, ainda há dados e resultados imprecisos, segundo o Ministro, ao que tange a anencefalia. Com isso, o cuidado no diagnóstico deve ser ainda mais criterioso para que não seja caracterizado em um quadro clínico, feto com anomalia diferente ou até mesmo, com uma anomalia aparente, e ainda, diante de uma imprecisão de diagnosticar ser utilizado tal meio a fim de permitir o aborto.
Para o Ministro, tem que ser: “abstraída toda especulação quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina”, ou seja, no entendimento dele, tem que se lidar com fatos reais, não especular se uma vida irá ou não prosperar. O que em seu entendimento, mesmo diante de tudo que lhe foi apresentado, ainda é fator subjetivo, não determinante. Embasado no princípio da legalidade combinado com o princípio da liberdade, prega que: “são limitados pela existência das leis, e, nos casos tipificados como crime, não há, a seu ver, espaço de liberdade jurídica”. Cezar Peluso faz uma alusão da discriminação que compara o feto “à condição de lixo”. Para ele não é diferido dentro de sua perspectiva das outras formas de discriminar que prega a Constituição, ou seja, somente pela condição existencial o feto tem que ser descartado. Tal consequência não consubstancia ao que é pregado pela nossa Carta Magna.
O Ministro sustenta que: “não cabe ao STF atuar como legislador positivo, e que o Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses que, no artigo 124 do Código Penal autorizam o aborto”. Para o Ministro a Corte não deveria intervir em matéria estritamente, no seu ponto de vista, legislativa. Ocorre que, a temática deixa de ser meramente inerente ao Congresso e passa a ser um assunto que influi de forma direta e indireta na população, independente da comoção geral, a anencefalia vem ganhando espaço na seara médica e com isso se tem a necessidade de definir parâmetros com que se possa ter fundamentado e garantido como norteador o foco principal já diversas vezes repisado nesse estudo – o direito de escolha da gestante – a fim de que, esse princípio pessoal e jurídico, faz-se alusão ao principio da liberdade, se torne sólido e rígido vindo assim configurar como basilar na tomada de decisão seja ela qual for.
“Se o Congresso não o fez, parece legítimo que setores da sociedade lhe demandem atualização legislativa, mediante atos lícitos de pressão”, o Ministro com essa fala torna dificultoso o entendimento da matéria. Se o Congresso é silente quanto à anencefalia e o judiciário vem decidindo uma séria de ações favoráveis à interrupção do aborto e a com a finalidade de disciplinar a matéria, tendo em vista que ela atende aos requisitos para que o STF chame para si tal responsabilidade, é prudente que tal decisão seja proferida e mais, seja retirado esse fardo do Congresso, haja vista que, não foi interessante ate hoje ele se manifestar para não trazer para si o peso da responsabilidade da matéria, facilmente justificável agora pelo entendimento pacifico do STF, tal entendimento vai ao encontro do que o Ministro Cezar Peluso entende à respeito da inércia do Congresso quando aduz que: “É o Congresso Nacional que não quer assumir essa responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo”. Para o Ministro, a ação ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde é facilmente configurada para conter: “uma tentativa de contornar a má vontade”, esta em cuidar da matéria de forma legislativa proveniente do Congresso Nacional.
Com oito votos favoráveis e a divergência de dois votos apenas, a Corte do Supremo Tribunal Federal adquirindo assim, a maioria na casa necessária para que se proceda ao julgamento de uma ação, julgou procedente a ADPF 54, para que surta seus efeitos e garanta a descriminalização do aborto em casos de feto anencéfalos.
Destarte há de ressaltar, que este é um dos julgamentos mais importantes que a casa proferiu, sendo um marco para a história jurídica, social, médica; tendo em vista a delicadeza da matéria, esta levou oito anos até ser dirimida e regulamentada. Há ainda no que se falar em pontos conflitantes, mas, estes esbarram agora na esfera pessoal de cada ser humano, pois no entendimento jurídico a antecipação do parto do feto anencéfalo já esta finda e pacificada.
CONCLUSÃO
Com base no que foi exposto, pode-se constatar que o aborto é uma prática que sempre esteve presente na nossa sociedade, a partir de certa época, através da influência da religião o aborto passou a ser uma prática delituosa e deixou de ser dado à mulher o direito de escolha sobre a gestação, independente de qualquer problema que o feto pudesse apresentar, até mesmo porque à época não tínhamos tais definições médicas de todas as doenças existentes, muitas vezes as malformações nem eram classificadas.
O nosso antigo Código do Império, de 1930 não criminalizava a prática do aborto quando feito pela gestante, apenas punia quando provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. Era atenuado somente quando a prática tinha por fim ocultar desonra.
O código de 1940, nosso atual Código Penal, classifica três formas de aborto: o aborto provocado, sofrido e consentido. Tendo em vista que a sociedade vem sofrendo mutações constantes é impossível que o direito possa prever todas as mudanças paralelamente. O que acontece é que o direito vem se adequando para que possa atender as modificações da sociedade e assim consequentemente satisfazê-la.
A questão do aborto anencefálico não é recente na sociedade, porém o é no ordenamento jurídico, o que há uma divergência nos entendimentos o que gera alguns conflitos; ao longo do trabalho é fácil detectar que para os magistrados de primeira instância o tema não possuía um regramento legal o que na maioria dos casos eles indeferiam o pedido de liminar para a prática do aborto, que era recorrido à instância superior que vinha pacificando o entendimento sobre o tema e subsidiariamente autorizando o ato do aborto de feto anencéfalo. Hoje de forma solidificada com o advento da ADPF nº 54.
Logo, a questão não é nada simples, vejamos, de um lado há a inviolabilidade da vida do feto que é defendida na Constituição e de outro lado o direito à liberdade reprodutiva da gestante. Há uma controvérsia quando se coloca em foco esses dois princípios, o que geraria um conflito aparente, mas se observado o Código Penal ele não é inconstitucional, ou seja, há uma lacuna na legislação que permite tal prática, ao que dispõe o inciso II do código em comento, que o aborto não será punido quando a gravidez resultar em algum problema eminente à gestante. Além de todo o fator psicológico, que se torna um martírio para a gestante há o fator físico, a saúde da gestante deve ser preservada.
Destarte, o direito não pode obrigar uma pessoa a prosseguir com uma gravidez na qual irá gerar uma cadeia de problemas, o que pode ser amenizado caso ocorra de tal modo o aborto. Não vamos falar aqui em teorias pessoais, em entendimentos religiosos, cada um sabe o que é melhor pra si, só que tal decisão deve ser de cunho pessoal, caso a gestante resolva prosseguir com a gravidez mesmo ciente de que carrega um feto que poderá não durar mais do que algumas horas depois do parto, isso quando já não nasce morto, é um direito dela, agora o que não pode ser obrigado é que todas as gestantes carreguem com si uma gravidez na qual lhe trará uma série de sofrimentos que podem ser amenizados.
Como exposto, o nosso ordenamento não permite essa prática, porém, ele configura como excludente de ilicitude; a legislação penal trata sem eu artigo 128, I e II de forma genérica, vejamos, se caso a gestante foi estuprada ela pode recorrer a um médico e a prática é realizada sem que ambos sofram sanções penais; no inciso II ele trata de forma ampla, porém evasiva, ele diz que caso a gestante sofra eminente risco à saúde é permitido o aborto. Seria mais claro que no inciso II fossem acrescidas alíneas elencando cada tipicidade que a legislação “permite” para a prática do aborto. Em contrapartida, acabaríamos com a questão de a anencefalia ser ou não inconstitucional, se ela fere ou não o princípio pregado na nossa Carta Magna.
Assim, o Estado facultaria a mulher o direito de decidir neste tipo de situação sob pena de desrespeitar o princípio da dignidade da pessoa humana, além de, fazer com que ela sofra de forma injusta, porque ela estaria gerando um feto que independente da sua conduta, o resultado final será um só, a morte.
Contudo, deve-se ponderar uma diferença latente, no caso que é pregado no inciso I, por exemplo, no que se trata de estupro, normalmente o feto tem expectativa de vida saudável o que é totalmente diferente no caso de um feto anencéfalo, onde não resta qualquer esperança de vida ao produto da fecundação. Diante disso, vemos uma diferença no que é elencado no Código Penal com o que é exposto ao longo desse trabalho ao que concerne a anencefalia.
Se fizermos uma análise sobre os dois incisos do artigo 128 pode-se elencar a seguinte questão se compararmos a anencefalia com tais incisos; assim como uma gravidez resultante de estupro, uma gravidez de feto anencéfalo gera vários transtornos psíquicos negativos à mãe, além de causar sérios danos à saúde o que podemos associar com a gravidez geradora do aborto terapêutico; diante disso nota-se de forma ampla que o aborto de feto anencéfalo se enquadra no elencado nos dois incisos do artigo 128, lógico cada um com sua peculiaridade.
Hodiernamente, a forma que se tem para alcançar êxito no aborto de feto anencéfalo é a medida judicial, que vem sendo cada vez mais recorrida pelas gestantes que optam em não prosseguir com a gravidez. A decisão de manter ou de interromper a gestação, nos casos de anencefalia, deve ser resultado de processo de escolha livre da mulher e não de forma impositiva pelo Estado.
Pode-se entender que o aborto do feto anencéfalo não pode ser punido e nem ao menos ser caracterizado como inconstitucional, porque é violado dessa forma a saúde física e psíquica da gestante, assim como a dignidade da pessoa humana. Em contrapartida, tal gravidez restará infrutífera, pois será gerado um feto que não se tem ao menos a garantia de vida.
Com a procedência da ADPF nº 54 o Supremo Tribunal Federal veio definitivamente consolidar tal entendimento a fim de que seja dado a gestante o livre arbítrio, o direito de escolher entre manter ou não a gestação. O que não se pode é fazer com que o Estado seja uma mera norma imperiosa, com a finalidade de simplesmente impor a seus tutelados o regramento que lhe convir indo de encontro com os direitos fundamentais e basilares de cada um, diante disso, o entendimento do STF de que se fazia necessário uma regulamentação quanto à matéria, tendo em vista a inercia do Congresso Nacional em discipliná-la partindo daí a ideia de que por se tratar de ordem pública que envolve não só o requisito da saúde física e psíquica da gestante engloba ainda diversos fatores intrínsecos e extrínsecos que justificam tal intervenção da corte. Outro ponto determinante além das vias jurídicas cabíveis que levou o STF a intervir no âmbito da temática é o número de ações judiciais aforadas pelas gestantes a fim de se fazer valer seu direito em consonância com as normas constitucionais.
Com a liberação do STF o Conselho Federal de Medicina, a fim de ter uma maior eficácia e garantir a máxima idoneidade no processo de aborto de feto anencefalo editou no dia 14 de maio de 2012, todo o regramento para que se possa diagnosticar sem falhas a anencefalia e preservar a integridade médica e moral de quem faz o procedimento, com o fito de estar em adequação ao que foi solicitado pelos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, para que fosse elaborado um diagnostico preciso, eficaz e acima de tudo sem dúvidas para que se tivesse a devida garantia da realização do aborto nos casos específicos de fetos com anomalia fetal, neste caso, a anencefalia.
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