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O garantismo penal e a infiltração do direito penal do inimigo no ordenamento brasileiro

Agenda 25/05/2021 às 16:44

Análise do fenômeno que transforma cidadãos comuns em defensores natos de um Direito Penal punitivo, para combater crimes como homicídios qualificados, estupradores, sequestros e ainda o crime organizado. que não é compatível com nosso ordenamento pátrio.

1 INTRODUÇÃO

            O trabalho aqui proposto tem a finalidade de abordagem em alguns aspectos sobre a Teoria do Direito Penal do Inimigo, destarte, poderá parecer simples ou cercado de obsolescência, no entanto merece um olhar aprofundado, novas reflexões e a busca de novos paradigmas principalmente pelo modo que o indivíduo, está sendo tratado pelas políticas públicas prisionais.

        O princípio basilar da Carta Magna e base de todo ordenamento brasileiro, o princípio da dignidade humana, garante a todos os cidadãos, inclusive aos delinquentes, a dignidade mínima para subsistência, bem como garantias, tais como ampla defesa, contraditório e presunção de inocência. (SOUZA, 2012). Ainda, afronta, ao princípio da dignidade da pena, consagrado no artigo V da Constituição e na Lei de Execução Penal.

             Fato é que o assunto é pouco abordado por doutrinadores brasileiros, pretendemos assim analisar se os meios arguidos para punir com mais severidade criminosos truculentos obedece aos critérios da nossa Constituição da República ou são legislada para dar resposta merecida a sociedade midiática. É mister, que apesar de toda política garantista brasileira, a sociedade agoniza clamando por uma política criminal de “tolerância zero” O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), nossa base de pesquisa, implantado primeiramente em São Paulo, divide opiniões quanto à sua constitucionalidade.  Exemplo disso, como assinala Nepomuceno & Homem: “o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária é uma das instituições que se manifestaram contrárias ao regime, por outro lado Fernando Capez, conceituado jurista do Direito, contrapõe o CNPCP e sai em defesa do RDD”. (NEPOMUCENO & HOMEM, 2017, pag.124).

         A teoria do Direito Penal do Inimigo, criada pelo alemão Günther Jakobs, foi pouco aderida no Brasil, por ser um país garantista, devido ao radicalismo que propõe esta teoria. Jakobs busca suporte filosófico em Kant, Hobbes e Rousseau, onde as bases conceituais tornaram-se pilares deste arcabouço teórico. Desta maneira, busca-se esclarecer até onde esta teoria de Jakobs tem influenciado de maneira direta ou indireta no ordenamento jurídico pátrio, através de uma abordagem qualitativa, objetivando gerar conhecimentos para elaboração do texto científico, através dos métodos dedutivo e dialético, utilizando-se da investigação e fontes bibliográficas ou seja uma pesquisa do tipo exploratória.

         O certo é que desde o século XVIII, os primeiros reformadores do sistema penal até então vigente já clamavam: “É preciso que a Justiça Criminal puna em vez de se vingar.” (FOUCALT, 2016. pag. 74). A OAB enxerga a inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado, porque a única distinção prevista na Carta Magna de diferenciação para o cumprimento da pena é feita em benefício do réu, aliviando a pena por conta de sua idade, seu sexo ou da natureza do delito cometido. Não é prevista uma mudança de pena para castigar o detento. A OAB ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.162) em relação ao RDD.

            De certo, que discorreremos neste trabalho, sobre a inconstitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado e sua adequação a teoria de Jakobs, do Direito Penal do Inimigo, como nos orienta Zaffaroni, (2016, p.9):

Entendemos que este tratamento diferenciado provoca uma contradição entre doutrina penal (e uma certa filosofia política de ilustre linhagem), por uma lado, e a teoria política do Estado constitucional de direito, por outro, visto que a última não o admite nem sequer numa clara situação bélica, pois a implicaria abandonar o princípio do Estado de direito e passar ao de polícia, que deslizaria, rapidamente, para o Estado absoluto. (ZAFFARONI, 2016,p.9)

             Assim, os meios arguidos para punir com severidade criminosos “truculentos” obedece aos critérios da nossa Constituição, não podem simplesmente serem legisladas para dar uma resposta a sociedade midiática, tendo em vista a manifesta vontade de defender os direitos daqueles que já estão condenados pela sociedade, antes mesmo de um devido processo legal.

2 O INIMIGO NO DIREITO PENAL

        No sentido de tratarmos o assunto sob uma perspectiva bibliográfica, buscar-se-á, apresentar as divergências entre os grandes autores, sendo que para uns o Direito Penal do Inimigo é o caminho para o combate de criminosos especializados, sendo que para outros ofende diretamente o próprio Estado de Direito. Historicamente os seres humanos que cometem crimes sempre tiveram um tratamento punitivo discriminatório, com penas que não atentavam para o princípio da dignidade humana, considerados inimigos, muitas vezes com penas de suplício.

2.1 DO CONCEITO DE “INIMIGO”

            É difícil estabelecer um conceito preciso de “inimigo” devido à grande complexidade.  Entretanto no que consiste a expressão, segundo o professor Miguel Polaino-Orts, com base nos estudos de Jakobs, define inimigo como:

Inimigo é quem, inclusive mantendo intactas suas capacidades intelectiva e volitiva, e dispondo de todas as possibilidades de adequar seu comportamento à norma, decide motu próprio se auto excluir do sistema, rejeitando as normas dirigidas a pessoas razoáveis e competentes, e se despersonalizando ou, por melhor dizer, despersonalizando-se a si mesmo mediante a manifestação exterior de uma ameaça em forma de insegurança cognitiva, que precisamente por colocar em perigo os pilares da estrutura social e o desenvolvimento integral do resto dos cidadãos (pessoas em Direito)– há de ser combatido pelo ordenamento jurídico de forma especialmente drástica, com uma reação assegurativa mais eficaz. Esta reação se circunscreve a garantir e restabelecer o mínimo de respeito para a convivência social e os direitos fundamentais dos cidadãos: o comportamento como pessoa em Direito, o respeito das demais pessoas e – em consequência – a garantia da segurança cognitiva dos cidadãos na norma. (POLAINO-ORTS, 2014, pg. 63)

            O fragmento acima evidencia o conceito de inimigo como aquele sujeito que não aceita as normas jurídicas do ordenamento vigente, desrespeitando-as com constância. Ou seja, é aquele que, devido a sua ocupação profissional (que possui vínculo com organização criminosa ou afim) deixa claro que não garante a segurança cognitiva necessária para a vida em sociedade.

2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS DO INIMIGO

            Analisando os aspectos históricos podemos notar que o termo inimigo ganhou novas interpretações, tendo início como um conceito que surge em função da busca de um Estado ideal a um ponto de aplicação da prática delitiva, afastando-se cada vez mais de um simples caráter descritivo e assumindo um papel legitimador que justificasse a punição daqueles considerados inimigos do Estado. (BATISTA, 2017).

            Os precedentes históricos mais remotos podem ser encontrados na História Antiga, mais precisamente no Império Romano, um dos maiores impérios que a humanidade conheceu, é no império romano que achamos as raízes mais distantes do significado da expressão inimigo, o que serviu de base para a construção e sistematização, séculos depois, de uma teoria, no direito, denominada Direito Penal do inimigo. O outro, o estranho, o estrangeiro, o subjugado, o reduzido à condição de escravo são os primeiros seres humanos privados da condição de cidadão, com o beneplácito do próprio direito. (NASCIMENTO, 2014).

          Vários filósofos propuseram-se a definir o inimigo e consequentemente as sanções que a ele seriam aplicadas, Locke, Rousseau, Hobbes e Beccaria, somaram ao arcabouço filosófico concepções acerca do tema.

        Kelvin Alves Batista, assinala que, numa corrente filosófica, para se manter o equilíbrio social, isso conseguido graças ao papel do Estado, o governante deverá agir com rigor contra aqueles que tentam contra a ordem social, porque ao ferir o direito dos cidadãos, fere o próprio direito do soberano. Seguindo as ideias contratualistas destarte Locke nos ensina:

 Quem usurpa violentamente, quer seja senhor ou súdito, os direitos do príncipe ou do povo, que conduzam a um golpe de estado à constituição e à totalidade da estrutura de um governo justo, é culpado pelo pior dos delitos que, na minha opinião, um homem pode cometer, Deve responder por todos os males de derramamento de sangue, roubos e devastação que provoca em um país a destruição do governo. E quem se comporta dessa maneira é considerado, com razão, como inimigo comum, como parasita da humanidade e deve ser tratado, em correspondência, como tal. (LOCKE, 2006, p.5).

             Por esta perspectiva, o inimigo deverá responder pelos seus atos e ser tratado em consonância com o delito que praticou, afastando aqui qualquer proteção enquanto entendemos hoje, elencadas nos direito e garantias fundamentais, como exemplo a dignidade da pessoa humana.

             Da mesma forma preceitua Rousseau:

 Longe de dispor da própria vida nesse tratado, nós cuidamos somente de assegurar, e não creio que algum dos contratantes, premedite nesse tempo ir à forca: quanto mais todo malfeitor insulta o direito social, torna-se por seus crimes, rebelde e traidor da Pátria, de que cessa de ser membro por violar as leis e a qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua, deve um dos dois morrer, e é mais como inimigo que se condena a morte que como cidadão. (ROUSSEAU, 2006, p.42)

              Para o filósofo Rousseau, não deve ser tratado como cidadão quem deixa de cumprir as cláusulas do contrato social e deverá sim, ser tratado como inimigo, pois ao atentar contra a sociedade atinge diretamente o próprio estado.

             Na mesma linha de pensamento nos remete Beccaria ao extremismo penal onde vê a necessidade da aplicação de uma pena capital, quando o cidadão for considerado perigoso para o governo. Numa outra análise, ainda numa visão contratualistas, Hobbes caracteriza o inimigo e o faz sob uma visão política, para ele o inimigo não é um simples transgressor, mas é aquele que ao cometer um crime desafia as instituições fundamentadas no contrato social, crime esse que ataca além do direito penal, fere a soberania do Estado. Assim nos orienta o professor alemão  Günther Jakobs, 2009, p.6: “Para Rousseau, todo criminoso em si, é inimigo; para Hobbes ao menos, o alto traidor”. Considerando o mesmo fator para a qualificação do inimigo, Beccaria conclui:

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 A morte de um cidadão só pode ser considerada necessária por dois motivos: primeiro, quando, ainda que privado de sua liberdade, ele conserva poder e relações tais que podem afetar a segurança nacional; o segundo quando Sua existência pode produzir uma revolução perigosa para a forma de governo estabelecida. (BECCARIA, 2005, p. 95)

              Nesta perspectiva, o autor vê a necessidade da aplicação da medida mais extrema contra aquele que é considerado de alta periculosidade, que seria a decretação da pena de morte.

               Adotando uma distinção entre o Estado natural e o Estado civil, Kant, entende o inimigo como aquele que vive em negação do Estado civil, vivendo, portanto, em um Estado Natural; onde o inimigo seria, tão logo, aquele que ameaça de forma continua aqueles que vivem sob a égide da ordem civil. Assim Kant (2008, p. 23) em sua obra “A paz perpetua” relata:

[...] o homem (ou o povo) no puro estado de natureza tira de mim esta segurança e me lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato, pela ausência de leis de seu Estado, pelo que eu sou continuamente ameaçado por ele, e posso força-lo ou a entrar comigo em u m estado comum legal ou retirar-se de minha vizinhança. -O postulado, portanto, que serve de fundamento a todos os artigos seguintes é: todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil (KANT, 2008, p.23).

            O tratamento diferenciado aos indivíduos está presente ao longo da história. Desde os tempos mais remotos, existe a concepção de que alguns sujeitos devam ser tratados como inimigos desde que ameace a soberania do Estado

2.3 ASPECTOS SOCIOLOGICOS DO TERMO “INIMIGO”

            Para que possamos entender sobre as abordagens do termo “inimigo” faz-se necessário uma reflexão sob o olhar sociológico. Esta análise nos remete aos estudos sobre conflitos que nos traz um conjunto extenso de teorias e interpretações sobre a lógica do sistema social e de sua própria história, e será necessário fazer abordagens analisando pelo menos as principais correntes sociológicas.

             Celia Passos nos mostra que entre os precursores da sociologia e adeptos da chamada escola funcionalista Augusto Comte e Émile Durkheim, preocupados com as transformações sociais e com a ameaça à coesão social produzida pelas desigualdades promovidas pela industrialização e com suas consequências. Assim, ao analisar o conflito, Comte pensa em uma sociedade autoritária organizada com uma estrutura de castas que evitaria o temível conflito. Durkheim nas poucas referências que alude ao tema, refere-se ao conflito como uma “anomalia social”. (ENTELMAN,2005, p.31).

             Èmile Durkheim, por exemplo, nas “Regras do Método Sociológico” (2001, p.124-125) considera que o crime é dependente daquilo que sócio historicamente é entendido como normal ou patológico. Para ele, ao nascerem os indivíduos são uma folha em branco, as condições para o envolvimento das pessoas com a criminalidade seriam construídas no decorrer de suas vidas, isto independentemente de classe social, gênero ou raça. Ele entende que o crime é algo normal por existir em todas as sociedades, em qualquer tempo e lugar (a ausência absoluta do crime é uma utopia), e necessário, por permitir a evolução moral do direito. Na sua concepção a sociedade é um complexo integrado de fatos sociais, esta integração se daria em dois níveis, primeiro do indivíduo em relação ao sistema (conjunto de atores, Estado, escola, família, trabalho, vizinhança, etc.) e segundo, entre as partes deste sistema. Uma sociedade totalmente integrada se refletiria em indivíduos dotados de uma capacidade moral que transcendesse as exigências individuais, o resultado desta equação seria a solidariedade. Ainda nos ensina Durkheim:

 Por outro lado, uma sociedade povoada por pessoas motivadas por um individualismo excessivo e egoísta, resultaria em uma desintegração social ou anomia. O principal fator integrador da sociedade seria o trabalho e o elemento desintegrador, a ausência ou corrosão da moral. Desta forma, o que levaria uma pessoa a cometer um crime não seria a pobreza material, o desemprego ou a falta de assistência estatal, mas sim, o egoísmo que leva o indivíduo a querer somente para si o que poderia ser compartilhado com os demais, a ganância desmedida que o faz desejar sempre muito mais do que possui, e a preguiça que o impede de conseguir algo através do trabalho e o impele a utilizar métodos escusos. (DURKHEIM, 2001, p.124).

               Essas teses de Durkheim sobre a origem da violência e do crime são muito mais plausíveis do que os argumentos daqueles que traçam uma relação determinista entre pobreza e criminalidade, concepção esta que, infelizmente hoje acaba por amparar ações equivocadas do Estado. E esta anomia, falta de regras, os levam de acordo com outros pensadores a transformar esses atores sociais no chamado inimigo. (GODOY, 2009).

2.4 ASPECTOS FILOSOFICOS DO TERMO “INIMIGO”

             Analisando os aspectos filosóficos, temos que retornar nas ideias dos contratualistas que defendem a ideia que aquele que não demonstrasse submissão frente ao estado não seria merecedor de fazer parte do mesmo, sendo portanto excluído da sociedade. O culpado deveria morrer mais como inimigo que como cidadão. Johann Gottlieb Fichte, filosofo alemão (apud JAKOBS, 2010, p.25) defendeu o pensamento que o violador do contrato social deveria perder todos os seus direitos como cidadão e como ser humano, passando a um estado de ausência completa de direitos. Günther Jakobs explicava que não seguia as concepções apresentadas anteriormente. Já que para Fichte   e Rousseau, ensinavam que todos aqueles que infringissem uma conduta social seriam taxados de delinquentes, e consequentemente, postulados como inimigo do Estado. Jakobs(2010) fundamentava sua oposição aos mencionados pensadores estabelecendo a seguinte ideia:

 Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressupostos a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato. (JAKOBS, 2010, p.25)

              Para Jakobs quem comete um crime teria o direito de reparar seus erros e voltar a sociedade dentro do estado de direito e para tanto manter seu status de cidadão.

             Segundo ensinamento de Thomas Hobbes (apud JAKOBS, 2010, p.26), o delinquente continuaria com o seu status de cidadão, a não ser que sua conduta lesiva fosse considerada de alta traição, o que nesse caso seria interpretado como o ato de rescindir a submissão. Dessa forma, o indivíduo não seria castigado como súdito, mas como inimigo.

             Para Immanuel Kant (apud JAKOBS, 2010, p.27) “seria denominado de inimigo aquele que ameaça constantemente a paz social.” Defende também, que aquele que é visto como inimigo deve perder o seu status de pessoa, já que o indivíduo ao recusar a entrada em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do status de cidadão, inclusive sequer do conceito de pessoa. Consequentemente deixa de ser sujeito processual. Segundo Jakobs, o Direito penal do cidadão é o direito de todos. O Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar a guerra. O entendimento obtido com tal ensinamento é que no Direito penal do cidadão o escopo seria manter a vigência da norma, punindo a infração danosa através da pena, a fim de reprimir tal ato delitivo. Enquanto, no Direito penal do inimigo, o Estado não cominaria pena para os indivíduos considerados como inimigos estatal, mas estabeleceria medidas de segurança, a fim de combater perigos.

           O inimigo não estaria sujeito a pena, visto que esta deve ser cominada aos indivíduos que são submissos ao poder estatal, e aquele que viola a paz social de forma permanente, não estaria adequado aos ditames pré-estabelecidos no contrato social, uma vez que o mesmo afronta a existência de tal relação contratual. Já que o contratualismo pregoava a existência estatal na expectativa de solidificar a paz social.

             Nos estudos de Beatriz Lage Brum (2016, apud JAKOBS, 2007, p. 30) podemos notar que o Estado não necessariamente excluirá o inimigo de todos os direitos. Este estará submetido à custódia de segurança, e ficará incólume em seu papel como proprietário de coisas. O Estado não tem por que fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não estabelecer obstáculos que impeça uma possível reconciliação com o indivíduo infrator. (BRUM, apud JAKOBS, 2007, p. 30)

              A personalidade é um atributo conferido ao indivíduo que lhe garante a capacidade de adquirir direitos e deveres. Ao retirar a personalidade de um sujeito, esse teria os seus direitos alcançados, isto é, haveria supressão dos mesmos, porém seu dever de abster-se em perturbar a ordem e a paz social, juntamente com o dever de reparar o dano, também seria alcançado. Portanto, para Jakobs, aquele não poderia perder a sua personalidade. Demonstrando que esse jurista resolveu enveredar por uma trilha diversa do pensamento apresentado por aqueles filósofos supra citados. Já que defendiam a perda de personalidade do indivíduo.

             Para Luís Flávio Gomes, deve ser considerado inimigo “quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel a norma”, Como exemplo, Jakobs cita os “criminosos econômicos, terroristas, delinquentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas”. (GOMES, 2009, p.10).

3 LEGISLAÇÃO ALIENÍGENA E O DIREITO PENAL DO INIMIGO

           Uma análise informativa acerca da Teoria de Jakobs em países que adotaram medidas extremas no combate à criminalidade, sendo algumas consideradas de tolerância zero. Podemos notar claramente a supressão do direito constitucional. Um exemplo clássico a prolongação da pena na Espanha direcionadas para os crimes de terrorismo, sem chances de redução ou mesmo da concessão de liberdade condicional.

             Ainda como demonstra Francisco Munoz Conde, as leis na Espanha trouxeram a criminalização da apologia de alguns crimes, que configuraram as condutas de alguns infratores como perigo em abstrato, verificando assim a aplicação de um direito penal do autor e não do fato. (CONDE, 2012).

             Verifica-se ainda nos Estados Unidos, a existência de uma política criminal punitiva de tolerância zero, onde se nota a influência de Jakobs e a introdução da teoria do inimigo do direito penal. Nota-se o desejo dos legisladores americanos em legitimar em alguns casos a pena de morte, ou ainda a legitimação do adiantamento da mesma, sem dá direito as garantias processuais, sem direito ao devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. (MELO, 2013).

4 DIREITO PENAL DO INIMIGO: UM NOVO DIREITO PENAL?

            Para Greco (2011), dizer que a sociedade, na qual todos nós estamos inseridos, é composta por cidadãos e por inimigos, para os quais estes últimos devem receber tratamento diferenciado como se houvesse um estado de guerra, é querer voltar ao passado cuja história a humanidade quer, na verdade, esquecer. Na verdade no Brasil por ser um país garantista não é bem vista pela maioria dos doutrinadores, no entanto, frente ao clamor da população pela onda de criminalidade que cresce a passos largo e pela apelação midiática, temos visto surgir um novo modelo punitivo que abre discursões acerca de sua (in)constitucionalidade.

4.1 A TEORIA DE GUNTHER JAKOBS

             Essa teoria do doutrinador alemão “Günter Jakobs”, denominada como “Direito Penal do Inimigo” vem, há mais de 20 anos, tomando forma e sendo disseminada pelo mundo, conseguindo fazer adeptos e chamando a atenção de muitos. De uma forma sintética, essa Teoria tem como objetivo a prática de um Direito Penal que separaria os delinquentes e criminosos em duas categorias: os primeiros continuariam a ter o status de cidadão e, uma vez que infringissem a lei, teriam ainda o direito ao julgamento dentro do ordenamento jurídico estabelecido e a voltar a ajustar-se à sociedade; os outros, no entanto, seriam chamados de inimigos do Estado e seriam adversários, inimigos do estado cabendo a estes um tratamento rígido e diferenciado.

            Na Teoria pura do Direito Penal do Inimigo, o inimigo é considerado uma coisa e é anulado, não é considerado mais um cidadão e nem mesmo um sujeito processual. Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), mas sim um procedimento de guerra. Quem não oferece segurança suficiente de um comportamento pessoal não deve ser tratado como pessoa, pois se assim fosse, o Estado vulnerária o direito à segurança das demais pessoas, e por isso deverá ser punido observando o perigo e a ameaça que este representa no futuro, com uma medida preventiva, e prospectiva.

            Muitas são as críticas acerca desta Teoria, se remetendo a um Direito Penal nazista, que não se adequa com o Estado Democrático de Direito, a não observância dos princípios e garantias penais, ou ainda que este seja também inconstitucional, mas não se quer aqui, exaurir todos os argumentos a favor desta teoria, e sim, demonstrar que é possível sim aproveitar reflexos desta, diante do aumento e desenfreado da violência em nosso país e no mundo. (MATOS, 2009).

5 DIREITO PENAL DO INIMIGO E O GARANTISMO PENAL BRASILEIRO

            A dignidade da pessoa humana é o princípio norteador para os direitos individuais e coletivos e vem na Constituição da República como o principal valor tutelado.  É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo este princípio basilar e orientador de todo o sistema jurídico brasileiro.

            Bom lembrar, que cada vez mais doutrinadores tem defendido a existência de um direito penal mínimo, onde o poder punitivo do estado seja utilizado apenas como última ratio, ou seja, somente quando não existirem mais alternativas para solucionar o problema. A introdução do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico, com esse tratamento diferenciado provoca uma contradição entre a doutrina penal de Jakobs e a teoria política do Estado Constitucional de direito, pois implicaria abandonar o princípio do Estado de direito e passar ao de polícia, que deslizaria, rapidamente, para o Estado absoluto. (Zaffaroni, 2016.p.9).

             A teoria criada pelo professor alemão Günther Jakobs em meados da década de 80 do século passado tinha o propósito de fixar limites materiais à “criminalização no estágio prévio à lesão do bem jurídico”, em sua teoria originária Jakobs distingue o cidadão comum do inimigo, assim, não deve ser reconhecida nenhuma garantia constitucional haja visto que lhe é aplicado um direito penal diferente. Para Jakobs inimigo é todo aquele que insiste em reincidir na prática de crimes ou que comete crimes que ameacem a própria existência do Estado. (Souza, 2012, p.4).

              Desde a antiguidade até a modernidade o poder punitivo do Estado sempre esteve atrelado e vinculado a vingança contra aqueles que desafiassem o poder e somente com a Revolução Industrial e o desenvolvimento de uma nova classe, a solução encontrada foi o encarceramento em prisões. (Zaffaroni, 2007, P.44). Já na idade média podemos ver nascer os primeiros direitos, uma breve aparência de “humano”, e somente em 1215 com a famosa Carta Magna, vem uma legislação limitando o poder do rei, um marco importante para a construção dos direitos humanos do ocidente.

             Para Almeida, outra importante conquista foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, promulgada pela ONU, que garantia a proteção dos direitos humanos pelos quatro cantos do planeta, elevando a dignidade da pessoa humana à fundamento dos direitos humanos.

             Uma das grandes conquistas para os direitos humanos foi a Convenção sobre Tortura, Crimes e outras práticas cruéis realizada em 1984, garantindo a todos o direito de não ser submetido a tortura, nem tratamento degradante. No entanto, os acontecimentos de setembro de 2001, representam um marco no Direito Internacional, uma “rachadura”, que pode colocar em risco os avanços e conquistas dos direitos humanos alçados nos últimas décadas como bem salienta Olívia Cerdoura Garjaka Baptista. Outros eventos terroristas após o 11 de setembro colaboraram com esse clima de insegurança e pelo desejo de leis mais rígidas contra esses tipos de crimes.

5.1 OS PRINCIPIOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

              Os princípios adotados na Declaração Universal dos Direitos Humanos foram introduzidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como exemplo o Princípio da Dignidade da pessoa humana, a proibição de tortura, tratamento degradante, cruel e desumano, adotando-os e os colocando topograficamente no início da mesma e dando-lhes status de cláusula pétrea. Da mesma forma que houve os avanços, o retrocesso internacional após o 11 de setembro pode ser visto também aqui no Brasil. Após esses atentados, podemos ver que em vários países restringiram o direito à liberdade para a proteção de seus cidadãos. Podemos observar que vários países apoiaram a tortura e consequentemente se utilizaram da teoria de Jakobs.

              Sobre o tema Alexandre de Moraes, nos ensina que a pena conferida a um presidiário pela prática de um crime só pode restringir o seu direito de liberdade e não limitar outros direitos, como o convívio com sua família, ou seu direito de defesa (este se encontra violado pela limitação do tempo em que o preso pode passar com seu advogado), ou, mesmo, a sua segurança física e mental (esta última colocada em risco pelo isolamento em que o preso é submetido, por exemplo no Regime Disciplinar Diferenciado.

              Assim, qualquer teoria que afronte o princípio da Dignidade da Pessoa humana, fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como outros tratados internacionais e locais.

             A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os Pactos Internacionais das Nações Unidas (de direitos civis e políticos e de direito Econômicos, Sociais e Culturais) são fatos jurídicos indiscutíveis e reais, por mais que sejam violados em muitos cantos do mundo. (Zaffaroni, 2016. Pág. 181).

             O direito penal do inimigo, amplamente divulgado através da obra de Günther Jakobs, é um sistema penal punitivista, com vistas não somente ao fato perpetrado mas, principalmente, à personalidade do agente transgressor da lei. Tal sistema, devido ao seu radicalismo extremo, cercado do abandono aos direitos fundamentais do indivíduo, não é abertamente aceito pela legislação pátria, haja vista seu total antagonismo aos preceitos constitucionais e aos tratados de direitos humanos adotados pelo Brasil. (LEMINI, 2019).

             Para Lemini, a punição indiscriminada do autor cria instabilidade jurídica, ao ponto de o indivíduo, sabedor que não importa se sua conduta será mínima ou máxima, será punido com todo rigor da lei, cria um movimento adverso à pacificação social, qual seja, a desconfiança na prática da Justiça.

CONCLUSÃO

             O grande desafio na atualidade é que façamos uma profunda reflexão sobre o sistema punitivo que temos adotado no Brasil. O Direito Penal não é só punitivo, na verdade ele é a linha divisória entre a prepotência do Estado e os direitos individuais. É perceptível que as leis internas não asseguram o devido processo legal para a proteção dos direitos violados.

             Não se trata aqui de afrouxar a aplicação da lei penal. Devemos sim observar os limites constitucionais vigentes no país, tais como: a dignidade da pessoa humana, a humanização das penas, a proibição da pena de banimento da sociedade, além da

proibição da pena de tortura, ainda que psicológica e mental. O que nos remete ao art. 10 da Lei nº 11.671/2008, onde o RDD não deve ser aplicado a uma estadia superior a 1/6 da pena aplicada, pois corre-se o risco de ser criado um regime Bizarro (ad eternum) ou ainda uma pena infinita, que seria uma analogia in malam partem, em desfavor do réu, algo expressamente proibido no país, como nos assinala Nepomuceno & Homem. (NEPOMUCENO & HOMEM, 2017. Pag.143).

            O RDD torna-se assim algo inconstitucional e põe em risco o Estado Democrático de Direito, tendo que a dignidade da pessoa humana fundamenta todos os outros princípios da nossa Constituição. A observância dos princípios e garantias fundamentais se faz necessário, para que o sistema penal seja humanitário, que se volte sempre para um direito penal mínimo e garantista. E que não possamos perder de vista e nem deixar que os direitos fundamentais conquistados ao longo do processo histórico sejam fortemente abalados.

             A tão almejada mudança na segurança de nosso país, só vai ser conquistado com mudanças na base estrutural do sistema, com a adoção de medidas políticas e socioeconômicas que transformem a educação, a saúde, o trabalho, transportes e habitação. Políticas públicas que garantam aos filhos dos presos uma oportunidade para fugir do mundo do crime, um projeto que alcance as famílias que são vítimas deste bizarro sistema, que nada mais é do que um círculo vicioso. É mister agir com prudência, pois o garantismo penal e o direito penal do inimigo são completamente antagônicos e não podemos deixar de lado a promoção e as conquistas dos direitos fundamentais alcançados ao longo do processo histórico, tendo como princípio basilar a dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

ABELIN, Gabriel. Inimigo: Conceito político ou normativo? Disponível em: <http://www.justificando.com/2015/06/05/inimigo-conceito-politico-ou-normativo/> Acesso em 16 out 2018

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Sobre o autor
Valdeci Filho Ribeiro Melo

Mestrando em História pela UPF. Professor Especialista graduado pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR),Bacharel em História e Direito. Natural de Porto Velho-RO, pós graduando em Direito Tributário e Direito Processual Penal.

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