- A boa-fé objetiva: sua origem no ordenamento brasileiro[i]
Determina o Código Civil atualmente vigente no Brasil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) algumas disposições que tratam da boa-fé. Sendo que duas delas (os artigos 113 e 422) mereceram destaque de um dos principais formuladores deste diploma legal: Miguel Reale. Este doutrinador chegou a colocar a questão da boa-fé como o eixo norteador de todo o trabalho gerador do novo Código Civil: “É a boa-fé o cerne em torno do qual girou a alteração de nossa Lei Civil, da qual destaco dois artigos complementares, o de nº 113 [...] e o Art. 422” (REALE, 2003, s/p). Para conhecer melhor estas disposições legais, vale a pena retomar os três artigos em que o Código Civil de 2002 trata da boa-fé. São eles:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (BRASIL, 2002, s/p).
Tartuce (2013), a respeito do tema, chama a atenção para o fato de que o Código de Defesa do Consumidor já prenuncia, em 1990, a boa-fé objetiva que só será incorporada pelo Código Civil em 2002. Isso porque o Código Civil anterior, de 1916, apresentava o conceito de boa-fé apenas em sua dimensão subjetiva, segundo este mesmo autor e grande parte da doutrina.
Quanto a essa confrontação necessária entre o Código Civil e o CDC, prevê o Enunciado n. 27 do CJF/STJ que: “Na interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos”. Um desses estatutos normativos é justamente a Lei 8.078/1990, ou seja, deve ser preservado o tratamento dado à boa-fé objetiva pelo CDC. Além disso, o enunciado também traz como conteúdo a tese do diálogo das fontes, ao mencionar a necessidade de levar em conta a conexão com outras leis (TARTUCE, 2013, 90, grifo meu).
A boa-fé objetiva não é inovação brasileira, uma vez que já existia nos ordenamentos jurídicos de outros países. Esta previsão legal gerou formulações muito elucidativas do ponto de vista doutrinal, e bem próximas da nossa, em outros ordenamentos jurídicos.
Este é o caso do Código Civil Português, que diz, no artigo 227.º, n.º 1: “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”. A dimensão obrigacional desta norma se encontra não apenas na previsão punitiva e “reparativa” prevista no próprio artigo, bem como em seu próprio título: “culpa na formação dos contratos”.
A) Princípio do Direito
Maria Helena Diniz aponta a boa-fé objetiva como um dos elementos que compõem os princípios gerais do Direito. Assim, ainda que a boa-fé objetiva não se constituísse enquanto norma positivada, ela deveria ser levada em consideração no momento da aplicação das normas jurídicas. O seguinte trecho é elucidativo, no que se refere à visão desta autora acerca deste princípio:
Os princípios gerais de direito, no nosso entender, contêm natureza múltipla: 1) São decorrentes dos subsistemas normativos. [...]2) São derivados das ideias políticas, sociais e jurídicas vigentes [...]. Muitos desses princípios estão contidos, expressamente, em normas [...]. Porém, em sua maioria, estão implícitos no sistema jurídico civil. Exemplificativamente, dentre os princípios gerais de direito temos: [...] 19) o de que nas relações sociais e contratuais se tutela a boa-fé objetiva (CC, art. 422) e se reprime a má fé (DINIZ, 2012, 95-96, grifo meu).
Trata-se de um princípio, portanto, que ultrapassa o âmbito do Direito Civil, abrangendo todo o ordenamento jurídico, em suas múltiplas facetas. Isso porque não há possibilidade de estabelecer justiça sem uma colaboração mínima entre os envolvidos nas relações jurídicas em questão. Evidentemente, não se pode esperar que sempre haja boa-fé de todos, mas de todos ela deve ser exigida, pois sem isso não haveria como tratar do bem comum ou de qualquer outro conceito de cunho axiológico.
Assim, a boa-fé não se traduz apenas como uma proteção aos particulares, em seus negócios e relações jurídicas. Ela tem o caráter de base do sistema coletivo de relações jurídicas entre indivíduos, a saber, a sociedade organizada pela interação entre os indivíduos a partir das regras do Direito. Por conseguinte, a exigência de boa-fé objetiva se inscreve nos requisitos básicos de uma ordem pública estável e organizada. Ela limita as vontades individuais, mas o faz em prol de um bem maior e tem legitimidade filosófica para fazê-lo.
A autonomia privada, vista como um dogma está teoricamente ultrapassada. Permanece, todavia, a indagação sobre o que colocar no lugar de seu conceito, no âmbito dos contratos. Depreende-se, então, a necessidade de nova proposta de reflexão transdisciplinar, para que se possa compreender melhor esse momento. O estabelecimento de uma espécie de cartografia da transdisciplinariedade impõe em repensar do sujeito e do objeto, bem como da metodologia da investigação científica, voltada para esses estatutos jurídicos fundamentais (FACHIN, 2000, 253-254).
B) A diferença entre a boa-fé subjetiva e a objetiva
A boa-fé subjetiva já se encontrava presente no Código Civil de 1916 e tem como definição a determinação em agir de modo correto, ético e moral, evitando erros, malícia, logro e qualquer tentativa de prejudicar alguém ou de sobre ele levar vantagem de modo ilícito.
A boa-fé subjetiva comporta o erro cometido por ignorância de um fato, mas sem a prévia intenção de prejudicar a outrem. Não cabe neste conceito a tentativa de induzir alguém a erro ou de mascarar a realidade. Ela se relaciona profundamente ao Direito Civil, pois é elemento que pode estar presente em diversas relações jurídicas regidas por este ramo do Direito, entretanto não se limita a ele. Sílvio de Salvo Venosa, diz, a respeito deste assunto: “A boa-fé subjetiva [...] é aquela intimamente refletida e pensada pelo declarante no negócio jurídico, e que também pode e deve ser investigada pelo hermeneuta no caso concreto” (VENOSA, 2013, 395).
Note que a boa-fé subjetiva está ligada à condição específica de um indivíduo em um dado momento. Aquele indivíduo, naquela situação, demonstra ter boa-fé subjetiva ao agir sem a intenção de causar dolo a ninguém, sem a intenção de causar danos ao poder público e sem a tentativa de obter, para si ou para outrem, vantagens ilícitas.
É preciso frisar que a boa-fé subjetiva não é uma característica idiossincrática do indivíduo, mas uma característica de sua conduta naquela situação. Em outras palavras, ela não é um atributo do indivíduo, mas de uma relação jurídica por ele estabelecida ou na qual ele tomou parte. Este mesmo indivíduo pode vir a agir com má fé em uma outra situação qualquer. Já a boa-fé objetiva extrapola esta dimensão estritamente pessoal e específica de uma certa relação juridicamente determinada e subjetivamente interpretada.
Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, “a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado”. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de “honestidade pública” (REALE, 2003, s/p).
Mais geral e abrangente, o conceito de boa-fé objetiva diz respeito a uma regra geral de aceitação e de prática do princípio da eticidade, impondo a todos o dever de agir de modo reto e irrepreensível. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:
Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, o de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar (GONÇALVES, 2011, 700).
Repare que a boa-fé objetiva é pautada pelos usos e costumes de uma determinada época e local. Em outras palavras, ela se institucionaliza a partir da percepção de uma conformidade do agir de um dado indivíduo com os usos e costumes geralmente aceitos como corretos e honestos em um determinado local. Sua dimensão objetiva está justamente nesta referência às práticas sociais reiteradamente realizadas, que se consolidam sistematicamente naquilo que Durkheim chamou de “fato social” (2010). Venosa define a boa-fé objetiva como “a conduta normal e correta para as circunstâncias, seguindo o critério do razoável” (VENOSA, 2013, 395). Ora, este critério é eminentemente social[ii].
Enquanto isso, a boa-fé subjetiva é a interpretação da realidade por uma determinada pessoa, que guia sua ação por meio dos valores da honestidade, da lealdade, da sinceridade, da probidade e do respeito aos interesses e direitos dos demais. Isso faz com que ela não cometa crime, ainda quando inconscientemente comete ato que o ordenamento jurídico classifica como ilícito. A subjetividade está no fato de que a conduta é avaliada como correta não diretamente pela sociedade, como no caso da boa-fé objetiva, mas pela pessoa que julga estar agindo segundo as regras da sociedade, embora possa não estar. Trata-se da convicção pessoal de se estar realizando um ato correto, como afirma Martins-Costa (1999).
C) A previsão legal no Código Civil e sua importância para os contratos
A boa-fé se positiva, no caso do Código Civil, nos artigos já citados acima. Sua importância para o âmbito dos contratos, portanto, é patente. Afinal, não se aceitam contratos eivados de vícios, que visem onerar tão somente uma das partes, sem lhe dar direito a nenhum benefício ou vantagem. Bem como não se aceitam contratos que tenham perfil enganoso e seja repleto de subterfúgios, com o intuito de elidir informações e prejudicar a outra parte[iii]. Assim, o princípio da obediência obrigatória àquilo que for acordado entre as partes (pacta sunt servanda) deve ser mitigado e modulado pelo princípio da boa-fé, de modo que contratos com cláusula abusiva possam ser contestados juridicamente. Os contratos podem até mês mesmo serem extintos, por ofender o princípio da boa-fé (FIUZA, 2008, 411).
O Código atual, oriundo do Projeto de 1975, em várias disposições busca uma aplicação social do Direito, dentro de um sistema aberto, ao contrário do espírito do Código de 1916, de cunho essencialmente patrimonial e individualista. Sob esse prisma, o princípio da denominada boa-fé objetiva é um elemento dessa manifestação. Nos contratos e nos negócios jurídicos em geral, temos que entender que os declarantes buscam, em princípio, o melhor cumprimento das cláusulas e manifestação a que se comprometem. O que se tem em vista é o correto cumprimento do negócio jurídico ou melhor, a correção desse negócio. Cumpre que se busque, no caso concreto, um sentido que não seja estranho às exigências específicas das partes no negócio jurídico. [...] Desse modo, afirma-se que cabe ao juiz analisar a manifestação de vontade sob esse princípio geral de boa-fé (VENOSA, 2013, 394, grifo meu).
Como decorrência do princípio da boa-fé objetiva, temos que a ofensa a este princípio leva à uma responsabilização do agente que a cometeu, independentemente de culpa ou dolo. Assim, a boa-fé objetiva deve ser preservada e respeitada como condição sine qua non para o bom andamento das relações jurídicas estabelecidas entre as partes[iv].
D) As três funções da boa-fé objetiva
Segundo César Fiuza (2008, 410), a boa-fé cumpre três funções, decorrentes dos três artigos do Código Civil que a sistematizam enquanto regra legal, dotada de coercitividade e generalidade:
1) Função Interpretativa, derivada do artigo 113 do Código Civil;
2) Função Integrativa, derivada do artigo 422 do Código Civil;
3) Função de Controle, derivada do artigo 187 do Código Civil.
A função interpretativa decorre do fato de que os negócios jurídicos e normas jurídicas devem ser interpretados a partir da presunção de que a boa-fé os motivou. Especialmente os contratos devem ser analisados pela hermenêutica jurídica partindo da razoabilidade apontada pela boa-fé objetiva.
A função integrativa, por sua vez, se consolida a partir da atribuição de deveres acessórios que as partes deverão cumprir, devido ao fato de se colocarem em acordo para a celebração de um contrato. É a boa-fé que une os “deveres, poderes, direito e faculdades primários e secundários” de um contrato (FIUZA, 2008, 410).
A função de controle, por fim, surge dos limites impostos ao exercício de direitos subjetivos, o que acarreta ao titular deste direito o dever de estabelecer uma conduta condizente com aquilo que o Direito e os costumes impõem. Este controle impede o abuso de direito.
2. A Função Social dos Contratos
A boa-fé liga-se diretamente à função social dos contratos. Afinal, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhum direito é absoluto, pois todos estão destinados a cumprir sua função social e condicionalmente limitados por esta finalidade última. Assim, o direito à propriedade é limitado pela função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII), por exemplo. Mesmo o direito à vida não é absoluto, pois há as figuras legais da legítima defesa (CP, art. 23, II), do estado de necessidade (CP, art. 23, I), do estrito cumprimento de dever legal (CP, art. 23, III) e da pena de morte em caso de guerra declarada (CF, art. 5º, XLVII, a). Assim, a função social, que regula todos os direitos e deveres das pessoas dotadas de personalidade jurídica não poderia deixar de regular também os contratos entre elas estabelecidos.
Assim, no exemplo mais buscado do art. 421 do Código Civil, quando se diz que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato", não há como se estabelecer previamente o que é interesse social do contrato, mas, traga-se à baila um determinado contrato bem como as agruras e dificuldades das partes em cumpri-lo e poderemos concluir, após um processo de argumentação, se suas cláusulas ou o contrato como um todo atendem ou não às finalidades sociais. O Código Civil em vigor está todo pontilhado de disposições dessa natureza. Se analisarmos leis longevas, que atravessaram várias décadas de vigência, veremos como a forma de julgar alterou-se no decorrer do tempo e como estão distantes as conclusões doutrinárias e jurisprudenciais do passado (VENOSA, 2013, 119).
Venosa, no trecho citado acima, destaca o caráter aberto e relativamente amplo do conceito de função social dos contratos, que é capaz de abarcar um sem-número de realidades distintas. Este princípio deve ser analisado de modo específico; caso a caso. Isso não lhe reduz o poder normativo, mas lhe permite ser abrangente e duradouro, uma vez que lhe possibilita ser condizente com diversas situações de natureza distinta, mas igualmente submissas às determinações legais sintetizadas na regra em questão. Carlos Roberto Gonçalves também destaca este aspecto abrangente e repleto de possibilidades do princípio da função social dos contratos, pelo modo como foi inserido em nosso ordenamento jurídico.
Cabe destacar, dentre outras, a cláusula geral que exige um comportamento condizente com a probidade e boa-fé objetiva (CC, art. 422) e a que proclama a função social do contrato (art. 421). São janelas abertas deixadas pelo legislador, para que a doutrina e a jurisprudência definam o seu alcance, formulando o julgador a própria regra concreta do caso. Diferem do chamado “conceito legal indeterminado” ou “conceito vago”, que consta da lei, sem definição, como, v. g., “bons costumes” (CC, arts. 122 e 1.336, IV) e “mulher honesta” — expressão que constava do art. 1.548, II, do Código Civil de 1916 (GONÇALVES, 2011, 40).
Aliás, a abrangência da função social dos contratos é tão grande que permite inclusive pensar suas consequências não apenas no âmbito do Direito Civil, bem como no de outros ramos do nosso ordenamento jurídico, tal como a o Trabalhista e o Consumerista. Isso porque este princípio não se restringe às relações entre particulares, típicas do Direito Privado e, especialmente, do Direito Civil. Ele pode ser visto mesmo como um dos princípios fundamentais de todo o Direito, por presumir que as vontades dos particulares não podem se sobrepor ao bem comum, postulado essencial para a existência do próprio Direito.
[...] o princípio da função social do contrato é expresso no Código Civil de 2002 (arts. 421 e 2.035, parágrafo único), mas implícito ao Código de Defesa do Consumidor e mesmo à CLT, que trazem uma lógica de proteção do vulnerável, do consumidor e do trabalhador, consagrando o regramento em questão, diante do seu sentido coletivo, de diminuição da injustiça social (TARTUCE, 2013, 43, grifo meu).
Assim, pode-se dizer que o princípio da função social do contrato, como aceito pelos doutrinadores aqui citados, estrutura-se enquanto regra geral de ampla aplicação; seja por seu caráter “aberto”, seja por sua condição de importante para diversos ramos do Direito. O que tem dado ensejo a uma jurisprudência que já não aceita o positivismo jurídico absoluto de cumprimento de qualquer regra que esteja no contrato, independentemente de suas consequências sociais[v].
Isso porque o bem comum e o interesse público, numa democracia, devem ser os objetivos máximos a serem buscados, o que remete, aliás, não apenas ao nosso ordenamento jurídico específico, mas ao de todas as democracias do mundo e remete até mesmo à cultura ocidental como um todo, tendo por base maior o pensamento daquele que, embora estivesse longe de defender a democracia, criou aquilo que foi lido por Hannah Arendt (2016) como o maior panegírico à política democrática e ao bem comum: Aristóteles.
Ao pensar o dever do cidadão de buscar o bem comum como algo mais importante que seus prazeres pessoais e ao defender a virtude como bem supremo (mais importante até mesmo que a felicidade), Aristóteles estabelece as condições básicas para a democracia, embora defendesse um governo aristocrático. Pois é justamente na continuidade destes princípios filosóficos aristotélicos que se baseiam tanto a boa-fé objetiva quanto a função social dos contratos. Afinal, ambas só fazem sentido se pensarmos, como Arendt e o Estagirita, que o interesse público deve sobrepujar os interesses meramente particulares.
3. Os vícios redibitórios
Outro elemento garantidor dos negócios jurídicos no Direito Brasileiro é a proteção contra danos causados por vícios redibitórios. Define-se vício redibitório o vício oculto, o defeito cuja existência nenhuma circunstância poderia ter revelado, senão mediante exames ou testes inusuais e não exigíveis. É chamado de redibitório pela doutrina posto que confere ao contratante prejudicado o direito de redibir o contrato, devolvendo a coisa e recebendo do vendedor a quantia paga. Afirma Serpa Lopes que o termo é incompleto, pois o efeito não é a simples redibição do contrato, mas a possibilidade de abatimento do preço por meio da ação quanti minoris ou estimatória.
Estes são os requisitos imprescindíveis para configuração do vício redibitório:
- A existência da coisa;
- Os defeitos devem ser ocultos, posto que se ostensivos fazem presumir que foram aceitos pelo adquirente uma vez que não enjeitou a coisa. É requisito de cunho intensamente subjetivo posto que o defeito pode ser oculto para uma certa pessoa e perfeitamente perceptível para outra. Aplicar-se-á, contudo a diligência média ou pertinente ao homem médio;
- Deverão os vícios serem desconhecidos do adquirente;
- Somente se consideram vícios os já existentes ao tempo da alienação e que perdurem até o momento da reclamação;
- Só se consideram defeitos que positivamente prejudicam a utilidade da coisa, tornando-a inapta às suas finalidades primordiais ou reduzindo sua expressão econômica (devem ter certa gravidade, portanto).
O campo de atuação do vício redibitório é o contrato comutativo (como por exemplo, a locação, empreitada, compra e venda, doações onerosas e, etc.). O alienante, via de regra, responde pelos vícios redibitórios.
Não se exige, ainda que os ignore (art.443 do CC), pois o fundamento da responsabilidade é a aplicação do princípio de garantia. Também não se exonera em função do vício oculto e preexistente (art.444 do CC) vindo a coisa perecer na posse do adquirente. A responsabilidade do alienante deriva do nexo causal entre o perecimento da coisa e defeito. Terá o adquirente direito ao reembolso do preço efetuado ainda que não devolva a coisa perempta.
O vício redibitório tem natureza jurídica de cláusula natural, pois não precisa estar estipulada em contrato a obrigação de trocar o produto ou devolver o valor integral ou parcialmente. Isso porque o fundamento jurídico da proteção contra o vício redibitório é a própria garantia.
Devemos distinguir o conceito de erro para entendermos melhor vício redibitório. Erro é noção falsa que o agente tem de qualquer dos elementos do ato jurídico ou do negócio jurídico. Consiste numa falsa representação da realidade.
Há divergência entre vontade realmente declarada e uma vontade hipotética que existiria no agente se não estivesse em erro. Erro, contudo, difere completamente da ignorância que significa a completa e rotunda ausência de conhecimento sobre fato ou direito.
O erro apresenta-se sob várias modalidades. É íntima a relação dessa modalidade de erro com os chamados vícios redibitórios. Todavia, enquanto o erro é de natureza subjetiva, referindo-se as qualidades que o sujeito imaginava ou acreditava que a coisa tivesse, os vícios são de natureza objetiva constituindo exatamente na ausência de qualidades que a coisa deveria ter.
Ensina Francisco Amaral que existem defeitos de negócio jurídico na formação de vontade (vícios de vontade ou consentimento) e aí se incluem o erro, dolo, a coação enquanto que há erro incidente na declaração de vontade tais como a fraude, simulação que atuam mui similarmente como a má fé.
Exceptio doli que permitia que o contratante ou vítima de dolo ou violência poderia se recusar a cumprir contrato e, podendo ainda, obter a restitutio in inttegrum. Trata-se a referida exceptio uma defesa oponível ao demandante que atuasse como dolo com o fito de impedir o prosseguimento da ação baseada neste ato.
Terceira Turma do STJ, ao julgar o REsp 991.317, estabeleceu a distinção entre vício redibitório e vício de consentimento, advindo de erro substancial. Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, o tema é delicado e propício a confusões, principalmente pela existência de teorias que tentam explicar a responsabilidade pelos vícios redibitórios sustentando que derivam da própria ignorância de quem adquiriu o produto.
Naquele processo, foi adquirido um lote de sapatos para revenda. Os primeiros seis pares vendidos apresentaram defeito (quebra do salto) e foram devolvidos pelos consumidores. Diante disso, a venda dos outros pares foi suspensa para devolução de todo o lote, o que foi recusado pela empresa fabricante.
Em segunda instância, a hipótese foi considerada erro substancial. Segundo acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), a razão exclusiva do consentimento do comprador do lote de sapatos era a certeza de que as mercadorias adquiridas possuíam boa qualidade, cuja inexistência justifica a anulação da avença.
Entretanto, no entendimento da ministra Nancy Andrighi, quem adquiriu o lote de sapatos não incorreu em erro substancial, pois recebeu exatamente aquilo que pretendia comprar. A relatora entendeu que os sapatos apenas tinham defeito oculto nos saltos, que os tornou impróprios para o uso.
No vício redibitório o contrato é firmado tendo em vista um objeto com atributos que, de uma forma geral, todos confiam que ele contenha. Mas, contrariando a expectativa normal, a coisa apresenta um vício oculto a ela peculiar, uma característica defeituosa incomum às demais de sua espécie, disse a ministra.
Segundo ela, os vícios redibitórios não são relacionados à percepção inicial do agente, mas à presença de uma disfunção econômica ou de utilidade no objeto do negócio. O erro substancial alcança a vontade do contratante, operando subjetivamente em sua esfera mental, sustentou.
- Diferença entre vícios redibitórios e os vícios tipificados no Código de Defesa do Consumidor (quantidade, qualidade, produtos duráveis, não duráveis)
Os casos de vício redibitório são caracterizados quando um bem adquirido tem seu uso comprometido por um defeito oculto, de tal forma que, se fosse conhecido anteriormente por quem o adquiriu, o negócio não teria sido realizado.
Além da anulação do contrato, o Código Civil prevê no artigo 443 a indenização por perdas e danos. Se o vício já era conhecido por quem transferiu a posse do bem, o valor recebido deverá ser restituído, acrescido de perdas e danos; caso contrário, a restituição alcançará apenas o valor recebido mais as despesas do contrato.
De caráter bem mais abrangente, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) representou grande evolução para as relações de consumo e ampliou o leque de possibilidades para a solução de problemas, incluindo os casos de vícios redibitórios. A lei de proteção ao consumidor preza pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, conforme prevê o artigo 4º, inciso II, alínea d.
Desde 1990, quando foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor, o instituto do vício redibitório perdeu espaço na proteção dos direitos do consumidor. O código consumerista impõe responsabilidade ampla ao fornecedor diante de defeitos do produto ou do serviço, independentemente das condições que a lei exige para o reconhecimento do vício redibitório como, por exemplo, a existência de contrato ou o fato de o vício ser oculto e anterior ao fechamento do negócio.
No entanto, o instituto do vício redibitório continua relevante nas situações não cobertas pelo Código de Defesa do Consumidor, como são as transações entre empresas (desde que não atendam às exigências do código para caracterizar relação de consumo) e muitos negócios praticados entre pessoas físicas.
Importante também analisar a distinção do sistema de vício no Código de Defesa do Consumidor e dos vícios redibitórios do Código Civil. A garantia estabelecida no Código de Defesa do Consumidor, no que diz respeito ao vício de produto, é muito mais abrangente que aquela que trata o Código Civil no que diz respeito ao vício redibitório.
Os vícios redibitórios são tratados no Art. 441 do Código Civil e são vícios ou defeitos ocultos da coisa recebida em virtude de relação contratual (contrato comutativo), que a tornem imprópria ao uso a que é destinada ou que diminua seu valor. No sistema do Código Civil são garantidas duas opções ao comprador, ele pode não aceitar a coisa, recobrando o valor ou pleitear o valor da diminuição da coisa adquirida.
O prazo para reclamar dos vícios redibitórios é de 30 dias bens móveis ou 1 ano para bens imóveis da entrega efetiva. A exceção ocorre quando o comprador só puder conhecer do vicio mais tarde, quando o prazo passa para 180 dias para bens móveis e 1 ano para imóveis contados da ciência do vício.
Os vícios no sistema do Código de Defesa do Consumidor não requerem os requisitos acima apontados, eles são irrelevantes para a configuração do vício de produto, observando que para a aplicação do Código basta existir a relação de consumo.
No Código de Defesa do Consumidor o prazo para reclamar dos vícios é de 30 dias produtos/serviços não duráveis e de 90 dias produtos/serviços duráveis. Já em relação aos vícios ocultos, os prazos são semelhantes, contudo, a contagem ocorre a partir do momento em que o problema ficar evidenciado.
Conclusão
O Direito Brasileiro, seguindo uma tendência mundial, tem deixado de focar tão somente no indivíduo e valorizado cada vez mais a dimensão plural das relações sociais, dando ênfase ao bem comum, aos Direitos Humanos e outros conceitos de forte cunho axiológico. Assim, elementos que antes diziam respeito apenas às relações privadas, como a boa-fé em seu caráter subjetivo, passam a ganhar forte matiz coletivo, como ocorre com a boa-fé objetiva. Isto é parte de um processo global de fortalecimento do Direito Público e mesmo do Direito Constitucional.
Na perspectiva constitucional a tendência individualista vem sendo cambiada pela prevalência da tutela dos interesses coletivos, exigindo um aprimoramento das concepções pretéritas da teoria do negócio jurídico. Assiste-se, no direito pátrio, ao processo da constitucionalização dos direitos, fundamental e indispensável ao ordenamento jurídico (FERREIRA; MAZETO, 2005, 76).
O resultado deste processo tem sido algumas transformações de institutos jurídicos anteriormente adotados, bem como o surgimento ou o fortalecimento de novos. Consoante estas alterações no cenário jurídico nacional, tem-se o fortalecimento da ideia de função social dos contratos, que muito provavelmente soaria como uma aberração autoritária para muitos juristas liberais do século XIX. Afinal, o princípio do pacta sunt servanda era comumente visto como absoluto e a interferência do Estado nas relações entre particulares como uma intromissão indesejada.
A função social dos contratos mitiga a liberdade dos contratantes e relativiza o princípio anteriormente citado. Isto se relaciona a uma nova visão do ordenamento jurídico, que visa não proteger os particulares como iguais, mas intervindo ativamente nas relações sociais, proteger os mais fracos dos mais fortes. É deste posicionamento jurídico que nasce o Código de Defesa do Consumidor, visando proteger o consumidor enquanto hipossuficiente diante dos grandes conglomerados capitalistas, produtores de grande parte das mercadorias diariamente transacionadas nos mercados mundiais.
Um dos mais importantes elementos da proteção oferecida pelo Código de Defesa do Consumidor é, sem dúvida, aquela destinada a salvaguardar o consumidor de danos causados por vícios redibitórios. Neste sentido, o Código de Defesa do Consumidor apresenta um tratamento do tema diferente daquele dado pelo Código Civil, aprofundando ainda mais a proteção daqueles que possam ser lesados pela ocorrência de redibição.
Percebe-se, assim, que estes três elementos (a boa-fé objetiva, a função social dos contratos e a proteção contra os vícios redibitórios), embora bem diferentes entre si, são parte de um mesmo processo: o de fortalecimento da intervenção jurídica no âmbito coletivo das relações sociais. Este processo se liga à construção de um espaço público cada vez maior e cada vez mais capaz de regular as relações íntimas e interferir no âmbito privado. Processo que é fruto de uma tentativa de resguardar os mais fracos diante dos mais fortes, partindo do pressuposto de que o Estado não pode fingir ignorar que os particulares não são iguais entre si em conhecimento, poder político ou econômico; ainda que sejam iguais em direitos e deveres, como afirma o caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2016.
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BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990: Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm>. Acessado em 24/10/2018.
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