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Populismo e democracia na era da intolerância

Agenda 16/06/2021 às 09:35

A era de intolerância é, também, entre nós, a era do populismo. Não falo aqui do populismo no sentido de participação popular, referido positivamente por parte da doutrina política americana, mas sim, do populismo nu e cru, extremista de direita ou de esquerda.

I. Introdução

Pretendo falar sobre Populismo e Democracia na Era da Intolerância a partir da experiência recente e da situação pela qual temos passado nos últimos anos. Sim, vivemos, não apenas no Brasil, uma época de intolerância, de polarização, de radicalidade no palco político, de jogo duro na arena pública ou nas relações pessoais e de quebra da ética comunitária da convivência pacífica. É o tempo da emergência do populismo, do risco democrático, da erosão das instituições que suportam o regime de convivência respeitosa ou de atenção aos mais elementares direitos humanos. 

A era de intolerância é, também, entre nós, a era do populismo. Não falo aqui do populismo no sentido de participação popular, referido positivamente por parte da doutrina política americana, reportando-se sobretudo ao New Deal, nem do populismo domesticado de Chantal Mouffe. Falo do populismo nu e cru, extremista de direita ou de esquerda, como o que vemos na Turquia, na Polônia, na Hungria, na Venezuela ou no Brasil. Quais as características deste populismo?

Primeiro: Um governo que pretende falar em nome do povo, assim como uma unidade, como se o povo constituísse bloco homogêneo, sem fissuras, conflitos, tensões e pluralidade.

Segundo: Um governo plebiscitário, que pretende falar diretamente com o povo, que exerce a política Up Dow, de cima para baixo, supostamente sentindo o que o povo quer e buscando aclamação, nunca debate ou contestação. O governante, afinal, tem a pretensão de encarnar o povo. Há unidade entre o povo e ele. Esse suposto povo está para ele acima, inclusive, da Constituição, da lei e das instituições.

Terceiro: Um governo que não gosta das instâncias intermediárias entre o Estado e a cidadania, não gosta do parlamento, dos burocratas, nem do Judiciário. Não gosta de limites e desconfia da representação.

Quarto: Um governo que erode as instituições democráticas, que investe contra os demais poderes. O importante é retirar a legitimidade do órgão constitucional, acusado de ser antipatriótico, corrupto ou de impedir a atividade governamental.

Quinto: Fala de democracia e de direitos fundamentais, mas até o ponto em que os termos podem ser usados para legitimar a atuação governamental. Quando constituem limites à ação, transformam-se em questões a desafiar ataques.

Sexto: A população é dividida entre povo, um bloco sem clivagens, como vimos, e os inimigos do povo, a elite, os burocratas, os juízes, os intelectuais, os professores universitários, aqueles que trazem dificuldades para o governo. Eles e nós. A lógica do amigo/inimigo reportada por Schmitt.

Sétimo. Todas as esferas da vida são politizadas ou, melhor, partidarizadas, inclusive a ciência, a polícia e as forças armadas.

Creio que, no Brasil de hoje, podemos reconhecer essas características com alguma facilidade. Se já havia, aqui, particularmente depois de 2018, embora com a resistência das instituições democráticas, sobretudo do Supremo, um ensaio contínuo de erosão da democracia, a situação ficou mais grave com a emergência da pandemia. Tratemos, doravante, portanto, em três crônicas, não de um discurso teórico sobre o populismo na era da intolerância, mas já da crônica de alguns ensaios autoritários do governo populista de direita que dirige o país.


II – Primeira Crônica: Crise pandêmica, democracia e defesa da Constituição.

Iniciada a pandemia, medidas urgentes precisariam ser tomadas e elas, certamente, implicariam restrição ao exercício da cidadania, da liberdade, dos direitos de reunião e associação, de locomoção, enfim, de alguns dos mais caros direitos fundamentais. Nestes casos, a história constitucional adverte, a instância normativa precisa regular fortemente a realidade fática, a situação de necessidade, sob pena de os fatores reais do poder assumirem a condução do país usurpando a soberania, fomentando a tentação do estado de exceção. O momento era propício para isso e, em contexto de experiências iliberais no mundo, todo o cuidado é pouco.

Vive-se, além disso, o mito da bondade do regime centralizador, segundo o qual, com um comando unificado, é mais eficaz a resposta à crise pandêmica. No caso brasileiro, entretanto, a centralização do comando não era para unificar e racionalizar as políticas sanitárias, mas antes, para evitá-las.

O ensaio autoritário do governo foi contido, felizmente, diante da resistência da sociedade civil, da imprensa e do contrapoder exercido pelos órgãos constitucionais de controle horizontal. O polêmico, mas eficaz, inquérito das fake news, e aquele instaurado pelo Supremo para investigar manifestações antidemocráticas (grupos extremistas pedindo intervenção militar e fechamento do Congresso e do STF), surtiram algum efeito.  

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O Brasil adotou um modelo jurídico próprio de combate à pandemia, fazendo uso da legislação vigente (artigos 131 e 268 do CP), com a decretação de calamidade pública para autorizar os gastos imprevistos, nos termos da lei de responsabilidade fiscal, e a aprovação de atos legislativos, inclusive complementares, e, mesmo, de emendas constitucionais voltadas ao referido combate. O Estado de Emergência ou de Sítio, previstos na Constituição Federal (artigos 136, 137 a 139), ou a intervenção federal (art. 84, X), não seriam nem necessárias nem cabíveis para a luta contra a pandemia.

O Presidente da República, aproveitando-se da delicada situação, pretendeu, como antes referido, fazer a gestão unilateral, por meio de decretos, das providências contra a crise, no que foi impedido por acertada decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo as competências constitucionais comum e concorrente na matéria. A crônica dos acontecimentos demonstra a orientação correta do aresto. Com erros e acertos, com cautela extremada ou ações exageradas, foram sobretudo os Estados e Municípios que tomaram as medidas indispensáveis, que se colocaram na linha de frente da luta, que conferiram algum relevo à proteção da saúde pública.

Sim, temos falhado muito. A questão da vacina, dependente da atuação do Ministério da Saúde, talvez seja a mais grave delas. Com o país, através do SUS, ostentando rara capacidade instalada para a promoção de campanhas de vacinação em massa, poderíamos ter atendido cerca de dois milhões de pessoas por dia. Estaríamos, agora, em condição bastante mais confortável.  

Conseguimos, entretanto, até aqui, a duras penas e com sobressaltos periódicos, superar a armadilha fatal do autoritarismo ou do aproveitamento da crise para o incremento da autoridade despótica da autoridade populista.


III – Segunda Crônica: O uso abusivo da Lei de Segurança Nacional.

O Brasil passou, depois de meados dos anos oitenta e, particularmente, após a promulgação da Constituição, por um lento processo de reconstrução das instituições democráticas. Embora o país tenha experimentado vicissitudes que colocaram à prova a robustez da nossa democracia, o percurso foi relativamente exitoso. Os movimentos de junho de 2013, as eleições presidenciais de 2014, os descaminhos da Lava Jato, o impeachment da presidenta Dilma, a polarização política e o jogo partidário duro, implacável, na arena política, operaram a divisão radical da sociedade, esgarçando a confiança na capacidade do país de erigir um arranjo institucional adequado e duradouro. Isso ficou mais evidente com o presidente Bolsonaro, eleito manobrando um discurso populista de extrema-direita supostamente regenerador. Além da corrosão continuada dos alicerces democráticos do país, por duas vezes, pelo menos, o presidente namorou com a possibilidade de golpe no sentido clássico. É nesse contexto que emerge a preocupação com o legalismo autoritário, com a defesa das instituições por meio da democracia militante e com o combate às práticas iliberais ou ao constitucionalismo abusivo.

O uso das redes sociais para a disseminação de fake news, as práticas digitais protofascistas, as ameaças aos grupos discordantes, à oposição, aos advogados e jornalistas não bastam. Cuida-se, também, além da captura das agências de controle horizontal, da cooptação de dirigentes de órgãos constitucionais ou do desmonte de políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais, da utilização dos instrumentos legais, particularmente do entulho autoritário que sobreviveu ao processo de redemocratização, para atacar, punir ou intimidar quem ousa manifestar crítica contra o presidente ou seu governo. A estratégia é bem conhecida. Trata-se de esfriar e comprimir a livre circulação de ideias, de intimidar determinados nomes como medida exemplar para desestimular o avanço da crítica, comprometendo, assim, não apenas as virtudes cívicas e a vitalidade do mercado de ideias, mas um dos pilares da república consistente no princípio de que nenhum ocupante de cargo público deve ficar imune ao escrutínio, ainda que injusto, dos cidadãos ocupando o espaço público.

A Lei de Segurança Nacional (Lei. 7.170/83), tem sido manejada como arma poderosa para a finalidade aludida. Promulgada em 1983, já no contexto da “abertura lenta, gradual e segura”, menos dura, portanto, do que as pretéritas normativas editadas durante o regime militar, ainda assim ostenta uma filosofia violadora das diretrizes democráticas e pluralistas introduzidas pela Constituição. A frequência com a qual tem sido utilizada, ultimamente, é preocupante. São dezenas os inquéritos instaurados, a maioria por iniciativa do ministro da justiça, pondo em risco direitos caros e, em especial, a livre expressão do pensamento, essenciais numa democracia constitucional robusta. Bem por isso, há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com o propósito de substituir a Lei de Segurança Nacional, muito focada na defesa do Estado compreendido a partir da velha ótica da ditadura militar, por um instrumento normativo de defesa das instituições democráticas da sociedade pluralista e inclusiva que a Lei Fundamental pretendeu instituir.

Esta é a razão pela qual vários partidos políticos (PTB, PSB, PSDB e PT, PSOL e PCdoB) aforaram  Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), mecanismo de controle concentrado da constitucionalidade, perante a Suprema Corte, para atacar a lei em questão e denunciar o seu indisputável contraste com a ordem constitucional. O Supremo não se furtará a cumprir o seu papel.

Ainda assim, uma nova lei é necessária para proteger a democracia contra aqueles que usam as franquias da democracia com o propósito de corromper as suas virtudes, aniquilar os seus preceitos e desacreditar as instituições. Falo, aqui, do paradoxo da democracia nos termos da doutrina de Popper. A superação da ingenuidade é reclamada para a sobrevivência da civilização e da Constituição democrática. Não podemos ser tolerantes com os intolerantes e inimigos da dignidade humana. Estes, como diz o velho poema de Neruda, merecem castigo, melhor, punição nos termos da lei democrática, observado, claro e sempre, o devido processo legal.


IV – Terceira Crônica e conclusão: A defesa da democracia.

É fácil concluir, pelo que foi dito até aqui, que (i) a Lei Fundamental está sendo testada, diante da tensão ocorrente na arena política, dos sucessivos ensaios autoritários do Chefe do Executivo, das violações à cláusula constitucional da separação dos poderes e dos direitos fundamentais de grupos vulneráveis com o desmantelamento das agências responsáveis pela sua satisfação. E, mais, que (ii) a democracia está, igualmente, sendo testada e cumpre trabalhar pela sua resiliência num tempo de viragem dos humores políticos e do crescimento de experiências iliberais em muitos países (Polônia, Hungria, Turquia) ou da emergência de escolhas eleitorais populistas em lugares, antes, inimagináveis.

Há uma ampla literatura demonstrando que o processo de esgarçamento, sufocamento e amesquinhamento das democracias não se opera apenas através de golpes clássicos, com o uso da força, mas também por meio da erosão contínua dos seus pilares de sustentação.

Por outro lado, emerge, no mundo político, a questão do falseamento da vontade popular, como vimos na eleição de Trump e do Brexit, através do recolhimento e manejo de dados pessoais, pelas grandes companhias de tecnologia do mundo, para a captura dos indecisos. Como combater os disparos em massa, muitas vezes carregados de informações falseadas ou contaminadas pelo ódio e rancor, que interferem na formação da vontade popular, quebrando o princípio da igualdade de chances e deturpando o sentido do processo eleitoral?

A Constituição vige por mais de trinta anos. Nenhuma Carta brasileira, depois da República Velha, vigorou por tanto tempo. Experimenta-se, agora, um governo de direita que amesquinha os direitos fundamentais em plena época de pandemia, que agride os grupos vulneráveis, que é cúmplice de disparos em massa de fake news, que consente com as mensagens autoritárias e a disseminação dos discursos de ódio pelos seus grupos de apoio, reivindicando o fechamento do Supremo Tribunal Federal ou do Congresso Nacional. Um governo que propõe uma reinterpretação oportunista do art. 142 da CF autorizadora de fantasiosa intervenção militar nos negócios do Estado, elabora dossiês contra adversários, trata os opositores como inimigos que merecem aniquilamento e, mais, que promove publicamente a defesa de torturadores e da ditadura militar.

Este é o momento, portanto, de apoiar a sociedade civil, os movimentos sociais e a imprensa na batalha de resistência democrática. A minoria, oposição no Congresso Nacional, também atua em defesa da democracia e da Constituição, fazendo uso da palavra, ampliando o alcance da voz por meio da imprensa ou das redes sociais, aproximando representantes e representados, articulando entre os pares o bloqueio de medidas do Executivo inconstitucionais ou regressivas e promotoras do desmonte daquilo que foi duramente construído ao longo destes mais de trinta anos de vigência da Lei Fundamental. A minoria oferece resistência, ainda, requisitando informações, postulando a instauração de CPIs, como a da pandemia ultimamente instalada, ou aforando, perante a Suprema Corte, medidas de controle abstrato de normas ou da omissão inconstitucional de providências reivindicadas pela Lei Fundamental.

O Supremo Tribunal Federal, cumpre reconhecer, pode atuar e, neste período, tem atuado, como verdadeiro contrapoder, fulminando medidas violadoras de direitos fundamentais e vulneradoras do discurso normativo plasmado na Constituição. É oportuno lembrar da instauração de dois inquéritos, um deles bastante polêmico. O inquérito que investiga atividades antidemocráticas praticadas por grupos de apoio com a cumplicidade do presidente da república, e o instaurado pela própria Corte, com fundamento em nova interpretação do seu regimento interno para investigar as fake News, os discursos de ódio e as ameaças ou manifestações de intolerância dirigidas contra a Corte, os ministros e as suas famílias.

Cumpre pensar, agora, na caminhada até a próxima eleição presidencial, contestar quaisquer medidas tendentes ao enfraquecimento da democracia, como aquelas que possam impor condições violadoras da igualdade de chances no processo eleitoral, aprofundar a captura das instituições ou a cooptação dos seus dirigentes para a obtenção de vantagem política ou alterar a Constituição com análoga finalidade, isso tudo num contexto trágico de regresso da história.

Tarefa cívica da cidadania, dos operadores jurídicos, dos estudantes universitários, da imprensa, em síntese, da sociedade civil, em circunstância de risco, de emergência do populismo e incremento da intolerância, consiste em, mantendo a vigilância, reclamando responsabilidade política, denunciando práticas abusivas ou protestando na arena pública, salvaguardar os valores civilizatórios, a Constituição emancipatória e as instituições políticas da sociedade aberta e inclusiva, por mais imperfeitas que estas possam ser. O momento é de preservar. Vitoriosos, podemos, depois, voltar ao contínuo trabalho de aprofundamento do compromisso democrático.

Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Populismo e democracia na era da intolerância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6559, 16 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91209. Acesso em: 21 nov. 2024.

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