1. INTRODUÇÃO
Há mais de seis anos, este autor já vinha estudando o fenômeno do denominado “Stalking”, “Assédio por Intrusão” ou “Perseguição” e a falta de uma tipificação adequada no ordenamento jurídico – penal brasileiro. 1
Destacava-se que a expressão “Assédio por Intrusão” e o termo em inglês “Stalking” designam a ação de perseguição deliberada e reiterada perpetrada por uma pessoa contra a vítima, utilizando-se das mais diversas abordagens tais como agressões, ameaças ou ofensas morais reiteradas, assédio por telefone, e-mail, cartas ou a simples presença afrontante em determinados lugares frequentados pela vítima (escola, trabalho, clubes, residência etc.). Com a disseminação da informática e telemática e o fenômeno das Redes Sociais, tem-se denominado especificamente de “Cyberstalking”, “Cyberviolência” ou “Cyberbullying” essa prática realizada por meio da internet.
A lição de Damásio, um dos precursores nacionais na abordagem do tema, já era e continua sendo válida:
“Stalking é uma forma de violência na qual o sujeito ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras e atos variados, empregando táticas e meios diversos: ligações nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima, permanência na saída da escola ou trabalho, espera de sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo local de lazer, em supermercados etc. O stalker, às vezes, espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada pela polícia etc. Vai ganhando, com isso, poder psicológico sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral dos seus movimentos”. 2
Conforme se vê a conduta de “Stalking” é bastante variada, abrangendo uma série praticamente indeterminada de ações e podendo ter por sujeitos ativo e passivo qualquer pessoa.
A conduta varia desde agressões físicas, ofensas morais, ameaças, violações sexuais até práticas aparentemente menos graves ou mesmo de cunho afetivo, tais como mensagens amorosas e abordagens com propostas de relacionamento. Ocorre que mesmo nestes últimos casos a conduta do “stalker” é incomodativa, desagradável e insistente para além do tolerável, ocasionando inconveniências e constrangimentos.
Embora as condutas variem mantém em comum certos traços como a reiteração dos atos, a violação da intimidade e da privacidade da vítima e o constrangimento com consequente dano psicológico e emocional ao ofendido. Nesse quadro será também comum a ofensa à reputação da vítima, mudanças forçadas de seu modo de vida e restrições à sua liberdade de ação e locomoção. 3
O “Stalking”, dada a já mencionada variedade de condutas que abrange, pode ensejar responsabilizações civis (danos materiais e/ou morais) e penais (crimes ou contravenções). Na seara criminal os casos mais simples podiam configurar a contravenção penal de “Perturbação da Tranquilidade” (artigo 65, LCP). Mas, nem sempre, conforme já foi exemplificado, o “stalker” se limita a perturbar a vítima (lotando caixas de mensagens, fazendo ligações telefônicas inoportunas etc.). Muitas vezes extrapola para práticas mais graves que podem configurar crimes de ameaça (artigo 147, CP), constrangimento ilegal (artigo 146, CP), crimes contra a honra (artigos 138 a 140, CP), estupro (artigo 213, CP), lesões corporais (artigo 129, CP) ou até mesmo homicídio (artigo 121, CP). Note-se ainda que em alguns casos, dadas as circunstâncias de tempo, lugar, forma de execução e espécie delitiva, poderá configurar-se crime continuado nos termos do artigo 71, CP. Também não é incomum constatar-se a ocorrência nesses casos da chamada “progressão criminosa” em que o agente inicia com uma conduta de “Stalking” que configura infração penal menos gravosa, mas vai aos poucos ou mesmo abruptamente tomando atitudes cada vez mais agressivas e invasivas e atingindo bens jurídicos mais e mais relevantes. Em sua obra sobre a violência entre casais, Hirigoyen expõe o fato de que normalmente as violências de gênero são progressivas, iniciando pela coação psicológica até atingir a agressão física que pode chegar não tão raramente na prática de homicídio. 4
Outras contravenções, além da já mencionada “Perturbação da Tranquilidade”, podiam também ocorrer. São exemplos: Vias de Fato (artigo 21, LCP), Importunação Ofensiva ao Pudor (artigo 61, LCP, atualmente revogado pela Lei 13.718/18, mas se podendo falar em crime de Importunação Sexual, conforme redação dada pela mesma lei ao artigo 215-A, CP) e Perturbação do Trabalho ou do Sossego Alheios (artigo 42, LCP). Com o advento da Lei 13.718/18 também não se poderia descartar condutas como as que configuram o crime de “Divulgação de cena de estupro, de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia”, conforme dispõe o atual artigo 218 – C, CP.
Como se percebe nem sempre a reação penal então disponibilizada pela legislação era proporcional aos danos físicos, psicológicos e emocionais ocasionados à vítima de “Stalking”, tendo em vista as especiais características dessa conduta dotada de diferenciada variação e, principalmente, em virtude de sua reiteração de atos que, mesmo aparentemente de pequena monta ou até inofensivos isoladamente, podem tornar-se altamente danosos em seu conjunto e persistência.
Vale o alerta de Gilaberte no sentido de que “a perseguição ou Stalking pode se revelar um comportamento grave, apto a limitar a liberdade individual alheia e, não raro, a causar transtornos diversos à pessoa perseguida, inclusive psicológicos”. 5
Por isso mesmo, concluía-se à época assistir razão a Damásio quando aduzia que o “Stalking” em sua “ação global de perseguição” assume maior gravidade do que “os próprios delitos parcelares”, estando a merecer na ocasião “mais atenção e consideração do legislador brasileiro” quiçá “transformando-se em figura criminal autônoma e mais bem definida”. 6
Enfatizava-se à época e continua sendo válido que a conduta do “Stalking” possa ser perpetrada e sofrida por qualquer pessoa (homem ou mulher). Não obstante, é estatisticamente mais comum a presença dos homens no polo ativo e das mulheres no polo passivo, especialmente no que se refere a relacionamentos amorosos pretensos ou findos em que o “stalker” passa a perseguir a vítima dos mais variados modos.
Hirigoyen comenta a questão do “Assédio por Intrusão” ou “Stalking”, chamando a atenção para o fato de que “a maioria dos homicídios de mulheres ocorre durante a fase de separação”. Aduz que “a violência e a opressão se acentuam nesse momento e podem perdurar por muito tempo, depois de separados. O homem se recusa a deixar livre sua ex – companheira, como se ela fosse propriedade sua. Não consegue aceitar sua ausência, e a vigia, segue-a na rua, assedia-a por telefone, espera-a à saída do trabalho. Muitas vezes acontece de a mulher ter de mudar de local de moradia. É como se a agressividade e a violência que haviam se mantido contidas durante a relação agora tivessem livre curso”. A autora destaca que em países como os Estados Unidos “foram tomadas medidas de proteção (protective orders) para as mulheres vítimas desse tipo de assédio, extremamente perigoso, porque pode terminar em homicídio”. 7 Também em Espanha criou-se a “Lei de Proteção Integral contra a Violência de Gênero” com medidas de proteção que determinam o afastamento do agressor e sua prisão em caso de desobediência (“quebrantamiento de condena”). 8 A partir do ano de 2004 em Madri são disponibilizadas às mulheres vitimizadas “pulseiras de proteção contra maus – tratos”, ligadas telematicamente a “uma manga especial de que deverão ser portadoras as pessoas condenadas por agressão”, de maneira que sinais são emitidos se o agressor se aproximar da vítima a uma distância inferior a cinco metros ou se ele tentar retirar o aparelho. Também a vítima pode acionar um dispositivo da pulseira se sentir-se em perigo, comunicando imediatamente os serviços de urgência.
Ainda sem dispor de toda essa tecnologia o Brasil ao menos já se adiantou na criação das chamadas “Medidas Protetivas de Urgência” que podem ser aplicadas em casos de “Stalking” envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, nos estritos termos dos artigos 5º., I a III; 7º, I a V; 11; 12, III e 22 I a V; 23, I a IV e 24, I a IV, todos da Lei 11.340/06.
Assim sendo, a legislação brasileira é dotada de medidas capazes de conter o “stalker” em sua sanha persecutória, inclusive tendo à disposição o importante instrumento da Prisão Preventiva para os casos de contumácia ou persistência, mesmo após a ordem judicial protetiva (artigos 20 c/c 42, da Lei 11.340/06 e artigo 313, IV c/c 311 e 312, CPP).
Estes exemplos nacionais e estrangeiros são louváveis iniciativas de tratamentos especiais para a contenção dos “stalkers”, eis que essas condutas não se amoldam à costumeira lentidão das medidas penais definitivas, exigindo providências cautelares informadas pelo “fumus boni juris” e, principalmente, pelo “periculum in mora”.
Destaque-se que a Prisão Preventiva como instrumento para efetivar o cumprimento de medidas protetivas de urgência na legislação brasileira, nos termos do artigo 313, IV, CPP, deve ser encarada não só como um novo caso de aplicabilidade da prisão provisória (crimes que envolvem violência doméstica contra a mulher, independentemente da pena), mas também como um novo fundamento desta, objetivando garantir o cumprimento efetivo das medidas protetivas de urgência e somente então reclamando do artigo 312, CPP os requisitos da prova do crime e dos indícios suficientes de autoria. Para além disso, é de se ver que a conduta do “Stalking” também normalmente se amoldaria ao fundamento da preventiva previsto no artigo 312, CPP, da “garantia da ordem pública”, certamente abalada com a atuação reiterada do infrator.
Contudo, restava ainda uma lacuna para o tratamento especializado e mais rigoroso do “Stalking” sob o aspecto penal. Neste passo era oportuna a sugestão de Damásio quanto à necessidade de criação de figura específica para a conduta do “Stalking”. Essa infração penal, viria a lume para afastar as contravenções penais em caso de “Stalking” e até mesmo alguns crimes de pequena gravidade, cuja pena venha a ser menor do que aquela a ser atribuída ao “Stalking” ou “Assédio por Intrusão”. Isso sem qualquer lesão à proporcionalidade, dadas as especiais características do “Stalking”, capazes de amplificar o potencial lesivo das condutas mais simples isoladamente consideradas, as quais ganham dimensões altamente lesivas em face da acumulação de atos e da persistência do agente. Note-se ainda que não se trata de previsão de mais uma forma dos chamados “crimes de acumulação” tão criticados pela doutrina. 9 Nesses a conduta do agente é ínfima e muitas vezes não lesiona o bem jurídico, sendo criminalizada na perspectiva de que se fosse repetida por um sem número de outras pessoas poderia tornar-se terrivelmente destrutiva. No “Stalking” não se trata de criminalizar um mero perigo de disseminação da conduta por terceiros. Refere-se, na verdade, à conduta do próprio agente que a perpetra de forma reiterada e insistente e efetivamente ocasiona uma sensível lesão aos bens jurídicos envolvidos com maior intensidade devido justamente à repetição dos atos, cuja acumulação produz lesão diferenciada da conduta isolada, merecendo proporcionalmente uma reação penal mais rigorosa. Não se trata, portanto, de qualquer espécie de prognóstico de disseminação da conduta por terceiros ou de uma lesão potencial ou suposta ao bem jurídico e sim da responsabilização adequada e proporcional do agente por sua conduta própria e pelos danos reais que ocasiona aos bens jurídicos de que é titular a vítima.
Finalmente esse projeto de criminalização especial do “Stalking” na legislação brasileira se concretizou com a criação do crime de “Perseguição”, ora previsto no artigo 147 –A, CP, conforme determinado pela Lei 14.132/21.
Seguem abaixo os comentários acerca dos principais aspectos do crime de “Perseguição” ora em vigor.
2. BEM JURÍDICO TUTELADO
O crime em estudo se encontra no Título I da Parte Especial do Código Penal, “Dos Crimes contra a Pessoa”, em seu Capítulo VI, “Dos Crimes contra a Liberdade Individual”. Com segurança, portanto, se pode afirmar que tutela a liberdade individual da pessoa humana. No entanto, também pode tutelar subsidiariamente outros bens jurídicos atingidos de acordo com a espécie de perseguição empreendida (crime de forma livre), tais como a honra, integridade física, inviolabilidade do domicílio, intimidade, vida privada, imagem, liberdade sexual etc.
Em acordo com esse entendimento da proteção subsidiária ou indireta de outros bens jurídicos, inclusive com base em decisão judicial do Direito Comparado (Espanha) acerca da questão, se manifesta Callegari, aduzindo que “também podem ser afetados outros bens jurídicos (...), em função dos atos em que se concretize a perseguição”. 10 Ademais, noticia o mesmo autor, também com sustento em pesquisa no Direito Comparado que
Na Espanha foi proferida decisão judicial afirmando que “mais que a liberdade de autodeterminação do sujeito, o que se defende com esse crime seria o direito de sossego e tranquilidade da pessoa”. 11
Afinal, a própria autodeterminação é certamente prejudicada quando lhe falta o pressuposto de uma condição psíquica de tranquilidade de ânimo para a tomada de decisões.
3. SUJEITO ATIVO
O crime é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, independentemente de alguma especial qualidade. Como já destacado, o delito pode ser perpetrado tanto por homens como por mulheres. Não obstante, estatisticamente é mais comum sua prática por homens contra mulheres, envolvendo assim, muitas vezes, questões atinentes à violência doméstica e familiar contra a mulher. Observe-se, porém, que homens também podem ser vítimas de perseguição, seja por outros homens ou por mulheres. O crime em estudo, como já dito, é comum.
O concurso de pessoas é acidental, podendo ser praticado por um só indivíduo (crime unissubjetivo). Não há concurso necessário ou crime plurissubjetivo. É claro, no entanto, que nada impede o concurso de agentes.
Importa ressaltar a manifestação de Leitão Júnior que, com esteio no escólio de Belarmino Júnior e Pereira, sugere uma suposta “evolução” legislativa consistente na criação de uma figura que importe em responsabilidade penal de pessoas jurídicas por perseguição, sob o argumento de que estas também invadem corriqueiramente a “privacidade e liberdade” das pessoas “com práticas abusivas e lesivas”. No entender de Leitão Júnior e dos demais autores em que se escora, “a Constituição Federal prevê a responsabilidade penal de pessoas jurídicas de forma não restrita” e então “o legislador infraconstitucional perdeu a oportunidade de versar sobre essa matéria”. 12
Com o devido respeito, há que discordar dessas assertivas. Eventual responsabilização penal de pessoas jurídicas por perseguição seria inconstitucional. Isso porque a Constituição Federal somente prevê essa possibilidade para duas situações: crimes contra a ordem econômica e financeira e a economia popular, de acordo com o artigo 173, § 5º., CF (hipótese que nunca foi posta em prática pelo legislador ordinário) e crimes ambientais, nos termos do artigo 225, § 3º., CF (já com previsão prática pelo legislador ordinário no artigo 3º., da Lei 9.605/97). 13 Não corresponde à realidade a afirmação de que a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica é irrestrita na ordem constitucional brasileira. Embora os sistemas de “common law” (anglo – saxão) e de “civil law” (romano – germânico) venham se aproximando cada vez mais no que diz respeito ao reconhecimento da necessidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas14, fato é que tal modelo é tradicional no sistema de “common law” e uma novidade e, portanto, uma exceção, no sistema romano – germânico que informa o ordenamento jurídico brasileiro. Sem previsão constitucional expressa, ordenamentos de origem romano – germânica como o brasileiro não admitem, como regra, a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, sendo regidos, de ordinário, pela máxima latina “societas delinquere non potest” (a sociedade não pode delinquir). Enfim, “a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em nosso ordenamento, constitui-se em novidade e excepcionalidade” que somente é constitucionalmente prevista de forma casuística em 1988, bem como regulada na lei penal ordinária em 1998, apenas no que diz respeito a crimes ambientais. 15 Nem mesmo com relação à criminalidade econômica (outra excepcional permissão constitucional) houve até o momento previsão na legislação criminal. A abordagem é tão tímida e limitativa no ordenamento brasileiro que mesmo no que tange aos crimes ambientais existe discussão na doutrina se a responsabilidade penal de pessoas jurídica ficaria limitada aos delitos previstos na Lei 9.605/98 ou poderia se espraiar para crimes de natureza ambiental com previsão em outros diplomas legais. 16 E não há que confundir essa discussão acerca da restrição da responsabilidade penal de pessoas jurídicas à Lei Ambiental ou a sua expansão irrestrita a outros diplomas sobre o mesmo tema, com uma suposta previsão amplamente irrestrita de possibilidade de responsabilização criminal na legislação brasileira ao bel prazer do legislador ordinário. A Constituição, na verdade, é bastante limitativa no que diz respeito a isso. Eventual irrestrição dependeria de emenda constitucional, acaso se considere isso como algo adequado a se fazer em termos de Política Criminal. Nossas raízes romano – germânicas e a fórmula casuística e pontual com que o constituinte tratou do tema são incompatíveis com a hipótese de responsabilidade penal irrestrita das pessoas jurídicas. Para isso o modelo adotado pela Constituição teria de ter sido muito explícito no estabelecimento de norma permissiva genérica, o que afastaria a previsão específica para os casos de crimes ambientais e econômicos. Haveria uma guinada no modelo originário e não seria necessária a menção casuística, de modo que a sua própria previsão conforme consta dos artigos 173, § 5º. e 225, § 3º., CF, indica que se tratam de casos excepcionais, sendo a regra a vedação da responsabilização penal da pessoa jurídica. 17
Assim sendo, eventuais abusos perpetrados por pessoas jurídicas no que diz respeito à violação da liberdade e privacidade das pessoas não deixarão de constituir atos ilícitos, mas sua solução deverá dar-se nos âmbitos civil e administrativo, não na seara penal.