3. A JURISPRUDÊNCIA ANTE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: ANÁLISE DE CASOS.
O primeiro caso a ser analisado, possui caráter discriminatório antissemita e em julgamento pelo STF, o réu foi condenado pela prática do crime de racismo. Em 1991, o Ministério público do Rio Grande do Sul, abriu denúncia de racismo contra o autor e proprietário da editora Revisão Editora, Siegfried Ellwanger Castan, por publicar um livro intitulado “Holocausto judeu ou alemão- nos bastidores da mentira do século” de sua autoria e publicar livros de outros editores que possuíam a mesma temática.
Em obra de sua autoria, Ellwanger argumentava que os campos de extermínio judeu na verdade, eram somente campos de trabalho forçado e que nunca houve câmaras de gás, concluindo que o holocausto judeu era uma mentira forjada. A denúncia foi feita com a alegação de que as obras incitam o ódio e a discriminação ao povo judeu com mensagens antissemitas, elencando vários trechos das obras em questão que fundamentam a pretensão punitiva e finalizando com o requerimento da apreensão dos exemplares estantes na sede da Revisão Editora e de todas as livrarias ou locais em que estivessem expostos ao público.
No mesmo ano foi determinada a busca e apreensão dos livros. Em contrapartida, o réu foi absolvido em 1ª instância, seguindo a seguinte linha de raciocínio:
Os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica ao povo judeu. Constituem-se em manifestação de opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo. Lidos, não terão, como não tiveram, porquanto já o foram, e por um grande número de pessoas, o condão de gerar sentimentos discriminatórios ou preconceituosos contra a comunidade judaica. (...) As outras manifestações apresentadas pelas obras, com relação aos judeus, outra coisa não são senão simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão. O preconceito e a discriminação religiosa, racial, étnica, etc., são condutas abomináveis, porquanto sempre foram as causas das grandes tragédias da humanidade. Por outro lado, entender que opiniões e manifestações contrárias à dominante, a ela muito desfavoráveis, implicam incitação ou induzimento ao crime de preconceito e discriminação étnica significa, também, uma posição de preconceito, mais quando aquelas vêm demonstradas em obras literárias. (RJTJRS, 2004, pág. 46)
É notório que a juíza em questão priorizou o princípio fundamental da liberdade de expressão, acima da vedação à discriminação tanto racial, quanto religiosa. Decisão essa que não agradou, pois a sentença é equivocada e mau justificada, frente ao uso de somente palavras de sua convicção e nenhum apelo a uma doutrina ou qualquer prova que seja para seu ponto de vista. Ainda pior, é ignorar que palavras em um livro podem impactar a vida dos leitores e possuem potencial para reproduzir a discriminação e a violência contra um grupo. Por esses motivos, apelou-se à instância superior que condenou o acusado, expondo que o processo se trata do abuso do direito à livre manifestação e que em nenhum momento, a livre expressão se sobrepõe ao princípio da igualdade.
Não satisfeito com a condenação, o acusado pediu o Habeas Corpus, sob a alegação de que o caso não se tratava de racismo, pois o termo “judeu” não designa uma raça. É importante analisar os votos em favor ao Habeas Corpus. O Relator Moreira Alves argumenta sobre a não configuração dos judeus como raça, e portanto, não tipifica crime de racismo e também não há punibilidade por prescrição. O que se entende pela posição do referido Ministro, é que seu foco é o racismo prescrito e não a discriminação de fato. Observando o não foco do processo sobre a discussão do termo “raça”, do mesmo modo ainda haveria crime pela discriminação de um povo e de uma religião e controvérsia com os principais princípios do ordenamento jurídico.
Em seguida, o voto do Ministro Marco Aurélio Mello em favor ao HB usa de justificativa de que os livros alvos do processo não reproduziriam a discriminação e a violência por não incitarem as mesmas de forma direta, são apenas uma forma distinta de se interpretar a história e são reflexo do livre exercício da liberdade de expressão. Novamente, observa-se o desprezo pela clara e absoluta influência que a literatura gera sobre o indivíduo, de modo a incitar o leitor a absorver ideias do autor como “verdades absolutas” e reproduzi-las da maneira que preferir, até mesmo de maneira ilícita. Merece destaque, portanto, a função humanizadora da literatura, colocada em foco e exemplificada por Candido (1999, pág. 84):
Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, enfrentando ainda assim os mais curiosos paradoxos, — pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente o que as convenções desejariam banir. Aliás, essa espécie de inevitável contrabando é um dos meios por que o jovem entra em contacto com realidades que se tenciona escamotear-lhe. Vejamos um exemplo apenas. Todos sabem que a arte e a literatura têm um forte componente sexual, mais ou menos aparente em grande parte dos seus produtos. E que age, portanto, como excitante da imaginação erótica. Sendo assim, é paradoxal que uma sociedade como a cristã, baseada na repressão do sexo, tenha usado as obras literárias nas escolas, como instrumento educativo. Basta lembrar, na venerável tradição clássica, textos como a Ilíada, o Canto IV da Eneida, o Canto IX dos Lusíadas, os idílios de Teócrito, os poemas apaixonados de Catulo, os versos provocantes de Ovídio, — tudo lido, traduzido, comentado ou explicado em aula. Esta situação curiosa chegou até os nossos dias de costumes menos rígidos, e vive gerando brigas entre pais e professores, por causa da leitura de Aluísio Azevedo ou Jorge Amado.
Ademais, o Ministro Ayres de Brito afirmou em favor ao HC, que o crime foi cometido dois anos antes da Lei Caó, que define a punição pelos crimes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, após a promulgação da lei os livros ainda estavam em circulação e disponíveis para a venda, ou seja, o crime ainda persistia no momento da denúncia.
Atentando à fala do Ministro Gilmar Mendes em favor à condenação no caso Ellwanger, o princípio da proporcionalidade pode representar um adequado meio de julgar casos em que princípios sofrem colisão, como no deferido processo, entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. O princípio abarca subprincípios que permitem a ponderação necessária, são eles a conformidade ou aplicação dos meios, a exigibilidade ou necessidade desses meios e a proporcionalidade em sentido estrito.
O subprincípio da conformidade ou aplicação dos meios examina se a medida adotada é adequada para o cumprimento do objetivo central, visando o bem público que o Ministro referiu como a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista e em que o valor da dignidade humana compensava o ônus imposto à liberdade de expressão. O subprincípio seguinte, da exigibilidade ou necessidade, reflete sobre se não há disposta outra medida mais adequada, com custos menores, que atingisse do mesmo modo os objetivos e Gilmar Mendes afirma que a condenação é adequada para salvaguardar uma sociedade pluralista, onde reina a tolerância. Por último, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito questiona se o resultado obtido é proporcional à decisão.
Evidente que considerando-se o objetivo do total extinção da discriminação e proteção do povo judeu, a decisão do tribunal em pouco seria eficaz e recompensaria. No entanto, tendo em vista a propagação de um ideário errôneo e discriminatório por meio de um livro e seus danos, o julgamento é adequado e a retenção à liberdade de expressão não se dá sobre a possibilidade do autor se expressar, de forma radical, retirando completamente seu direito. Apenas restringe o determinado livro do processo, que se apresenta como clara ameaça, do mesmo modo que uma propaganda de cunho racista deve ser retirada dos meios de comunicação e entretenimento. Seria até impossível pensar na completa extinção de uma concepção tão presente no seio da humanidade, em virtude à sua história como a discriminação com somente uma condenação, mas é mais um passo para a preservação da igualdade.
Partindo de outro recurso utilizado pelo mesmo tribunal, a ponderação de interesses entre o direito à liberdade de expressão e os direitos de igualdade e dignidade também se configura como um recurso adequado, concluindo, portanto, que a livre manifestação não entra em conflito com a condenação pela prática do racismo pois o direito fundamental não é absoluto e não pode abarcar em seu bojo a prática de atitudes ilícitas e passíveis de punição. Maneira interessante de limitar a liberdade de expressão, o argumento de que não existem direitos absolutos são amplamente utilizados no direito brasileiro, estabelecendo uma “hierarquia” de um suposto sobredireito sobre outros direitos constitucionais (ZILIO, 2017, pág. 186).
O segundo caso a ser analisado, para o fechamento deste artigo, abrange o núcleo da discussão até aqui feita. Onde a intolerância religiosa se faz presente em divergência ao proselitismo, meio pelo qual muitas religiões sobrevivem, e em divergência com o salvaguardo da constituição sobre a discriminação religiosa.
Jonas Abib é um sacerdote da Igreja Católica conhecido por fundar, no interior de São Paulo, uma comunidade no movimento de Renovação Carismática chamada Canção Nova e em 2003 lançou, pela editora de sua comunidade, um livreto intitulado “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação”. O objetivo central do livro é “libertar o povo brasileiro” de todo o sincretismo entendido como religiões espíritas, tendo como representantes as religiões africanas como a Umbanda e o Candomblé, as “filosofias orientais” e até mesmo o Yoga, referidos na obra como “obras do demônio”, de “espíritos malignos” e “das trevas”.
O Ministério Público da Bahia, ingressou com uma ação penal por prática do racismo. O caso chegou ao STF por meio do pedido de Habeas Corpus, sendo decidido no final de 2016, pelo trancamento da ação penal, justificado pela conclusão dos ministros de que apesar do uso de palavras ofensivas e desrespeitosas, não houve crime de racismo.
Analisando, portanto, a motivação dos ministros. O colegiado ponderou sobre o proselitismo e como muitas religiões precisam dele para sobreviver, o que é visível não ser o caso da religião católica, tendo em mente que 50% dos brasileiros são católicos (G1, 2020), ou seja, retirando-se o mérito sobre o proselitismo não justifica de forma alguma a intolerância religiosa, o catolicismo não precisa do proselitismo para sobreviver e também não sofre com o risco de se extinguir, ainda mais em um dos países mais católicos no mundo como o Brasil. Também, os ministros, citam que a própria religião em questão possui em sua filosofia que os seus fiéis busquem converter outros indivíduos e para o convencimento muitas vezes são necessárias comparações ofensivas entre religiões, desse modo, atacar o proselitismo seria atacar a profissão de fé dessa religião.
Tão somente existe a tentativa de justificar a discriminação e o discurso de ódio, tentando colocá-los em situação de “normalidade”, quanto é incitado de que a religião católica tem como profissão de sua fé esse proselitismo deturpado, diferindo de todos os valores de igualdade, fraternidade, respeito que ela prega.
A corte ainda propõe uma averiguação por três etapas, para que seja evidenciado o crime de discriminação no caso concreto, sendo estas etapas a primeira de juízo cognitivo, em que se reconhecem as diferenças entre os indivíduos e a simples declaração na obra de que católicos são diferentes de espiritas, seja em ritos, crença e práticas religiosas, é disposição desta etapa. A segunda etapa, juízo valorativo direcionado à hierarquização, é bem visualizada ao autor inferiorizar as religiões espiritistas como “demoníacas” em relação a sua como “salvadora” e a corte salienta novamente que a comparação entre religião faz parte da própria natureza dos discursos religiosos.
Na terceira etapa, juízo em que se exterioriza a necessidade ou legitimação de exploração, escravização, ou eliminação do indivíduo ou grupo considerado inferior, entendeu-se que a intenção do padre é “salvar” e não há a intenção de isolar ou inferiorizar as pessoas não professantes de sua fé.
Tendo como base o principal argumento da corte sobre o proselitismo e seus conceitos, se torna necessário evidenciar que existem dois tipos de proselitismo, o primeiro de caráter tolerável, não se dirige à coação dos receptores e não se fundamenta na ofensa à religião alheia. O segundo tipo é passível de punição, pois ultrapassa o estágio anterior e além de se valer da discriminação pode usar da imposição aos não aderentes, como discorre Ciáurriz (2001, pág. 141):
Um proselitismo tendencioso, abusivo e explorador da miséria humana, da pobreza, da ignorância, da drogadição, da enfermidade, das necessidades humanas; às vezes é um proselitismo seletivo e excludente; às vezes um proselitismo que joga com vantagens, encerrando-se na mísera captação que tende somente a incrementar o poder, a influência e o dinheiro. Tudo isso se encontra em aberta contradição em o proselitismo que nasce na desinteressada e salutar comunicação da fé e exercício de caridade.
Incompatível com as noções de tolerância e direito fundamental à liberdade religiosa, a decisão de trancamento da ação penal externa um fator histórico e de difícil discussão, o falso Estado Laico. Protegido pela constituição, a laicidade não se faz presente ante à influência das grandes religiões sobre a sociedade como um todo e em um caso concreto de evidente discriminação e intolerância religiosa com todos os termos e provas necessários, a jurisprudência prefere usar até da ofensa ao credo do réu para que o mesmo seja inocentado e tentando avidamente justificar, por meio do proselitismo, as injúrias e claras discriminações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante ao estudo, denota-se a Liberdade de Expressão e a Liberdade Religiosa como construções revolucionárias da sociedade e integrantes dos direitos da dignidade da pessoa humanas, criadas em detrimento ao caos social e como uma solução imediata e necessária. Tal conduta, motivou o surgimento de lacunas em seus conceitos, bem como a falta de limitação no arbítrio do indivíduo. Tanto a formação apressada e caótica, quanto a sua categorização como direitos fundamentais, influenciou a concepção de que esses direitos são ilimitados e estão acima de qualquer outro, mesmo que entrem em embate contra o dever de punir a intolerância e a discriminação.
A legislação brasileira trata desses direitos de maneira semelhante ao cenário mundial, entretanto, coloca limitações ao seu exercício em seu próprio texto constitucional e penal, bem como assinala de forma expressa a não subordinação entre suas normas. A liberdade de expressão é defendida em toda e qualquer forma, mas a liberdade religiosa sofre algumas restrições ao que a legislação não garante o apoio a prática das religiões e, portanto, esquece que liberdade religiosa não é somente sobre proteção contra a discriminação, mas também sobre liberdade e apoio para professar qualquer fé.
O caso do atentado terrorista à revista Charlie Hebdo enfatiza que a intolerância e o discurso de ódio (hate speech), não se caracterizam somente pela ameaça e a incitação à violência. Eles são toda e qualquer declaração que discrimine, diminua e inferiorize a crença e as convicções de outro indivíduo, provocam o medo, a raiva e o sentimento de exclusão por parte da vítima. A intolerância não pode ser justificada pelo livre exercício do direito à liberdade de expressão, defesa de um princípio democrático ou proselitismo, pois a intolerância ignora uma das principais características desses conceitos, a reciprocidade. O discurso de ódio inviabiliza que a vítima exerça sua liberdade de liberdade de expressão, que ela defenda um princípio democrático e que ela do mesmo modo, pratique o proselitismo de sua fé.
Tolerância não é tão somente não praticar o hate speech utilizando as opiniões e crenças de outro indivíduo, mas também as ouvir e aceitá-las, mesmo que para a sua convicção, elas representem o “erro”.
A jurisprudência brasileira apresenta dois meios de resolver litigâncias com embates entre dois princípios constitucionais, pelo princípio da proporcionalidade e seus subprincípios e pelas três etapas ou três juízos. Ambas apresentam uma ponderação de forma lógica e justa sobre o caso concreto, defendendo a falta de hierarquia entre os direitos e não se valendo da busca por uma brecha para que se coloque um direito acima de outro.
Ademais de nada se valem os mecanismos judiciais adequados se os juristas não ponderarem sobre as várias formas da intolerância, não somente como incitação à violência não entenderem o proselitismo como direito tanto de um indivíduo como de outro, a conversão de mais fiéis para sua fé não pode ser usada de justificativa para a discriminação religiosa. Novamente o direito brasileiro se enquadra na dinâmica de ideal em sua legislação e sua doutrina teoria, entretanto, peca em não formar adequadamente os aplicadores de direito sobre como utilizar seus instrumentos adequadamente, se forma a suprir as necessidades sociais e se adequar à aquela da qual se deriva o direito, a sociedade.