Estabeleceu o legislador, como pressupostos necessários para a inserção do cônjuge sobrevivente na ordem de vocação hereditária do cônjuge falecido, que, ao tempo da morte, não estivesse separado judicialmente, nem separado de fato há mais de dois anos, salvo comprovação, neste último caso, de que essa convivência tenha se tornado impossível sem culpa do cônjuge sobrevivo. [01]
O direito sucessório do cônjuge sobrevivente apenas existe se ao momento da abertura da sucessão ainda subsistir a sociedade conjugal, de modo a não estarem separados judicialmente, nem de fato, segundo o dispositivo, há mais de dois anos. Este prazo, no entender de parte da doutrina de direito familiar [02](GARCIA – 2003 p. 32-44) com fulcro no art. 226, §6º da CF/88, faz com que seja cabalmente possível evidenciar-se total desvinculação entre os consortes e a possível constituição de uma união estável, mesmo que o separado de fato seja, ainda, formalmente casado.
Todavia, o Código Civil reconhece a possibilidade do cônjuge separado de fato, apesar de constatado o lapso temporal exigido, sem referir-se à hipótese de constituição de nova família, adquirir legitimidade para suceder ou não, a depender da apresentação de prova da culpa na separação ser sua ou do de cujus. Não se trata de exclusão do cônjuge separado de fato da linha sucessória, posto que o consorte separado judicialmente ou de fato há mais de dois anos, na óptica do legislador, em regra geral, na verdade não é herdeiro.
A perquirição da culpa nesta ocasião, em idêntico sentido ao das circunstâncias anteriores vislumbradas, é notoriamente injustificável, posto que o legislador ao vincular a condição de herdeiro necessário do cônjuge sobrevivente à comprovação de ausência de culpa sua na separação de fato estimula diversas discussões quanto ao patrimônio do falecido, de maneira a paralisar o inventário.
A problemática maior centra-se nos casos de falecimento de um dos cônjuges no andamento da ação de separação judicial ou de divórcio direto, onde a legitimidade para suceder do cônjuge sobrevivente somente deve ser afastada se verificada a homologação de separação consensual ou sentença transitada em julgado de separação litigiosa ou divórcio direto.
Na verdade, em havendo morte de uma das partes no decorrer do processo, este deve ser extinto em virtude de não mais ter sentindo persistir em sentença que declare a desconstituição do vínculo conjugal que terminou por ser desfeito através de acontecimento natural, segundo dispõe o art. 1.571, inciso I, Código Civil de 2002.
Ademais, por produzir efeitos ex nunc, a sentença que declara a dissolução da sociedade conjugal não retroage para alcançar momento anterior à morte de um dos cônjuges. Por mais que a intenção do de cujus fosse realmente se separar ou se divorciar de seu consorte, em razão de sua morte no decorrer do processo tal pretensão não pôde ser concretizada por esse meio, nem poderá.
Destarte, falecendo um dos cônjuges nesse contexto, o estado civil do cônjuge supérstite não será de separado judicialmente ou divorciado, e sim de viúvo. Em outros dizeres, o cônjuge sobrevivente será herdeiro necessário em sucessão legítima concorrendo com descendentes e ascendentes, conforme o disposto no art. 1.829 do Código Civil vigente. Nesse entender, o professor Silvio Rodrigues [03] assim leciona:
"A lei exige, para afastar o cônjuge da sucessão, que esteja o casal desquitado ou divorciado. Assim, a despeito de separados de fato, cada qual vivendo em concubinato com terceiro, a mulher herda do marido e este dela se morrerem sem testamento e sem deixarem herdeiros necessáriose agora como concorrente".(2004. p.77)
Segundo consta no art. 1.830 do Código Civil, deparando-se com separação de fato há mais de dois anos, o cônjuge sobrevivente, mesmo que não mantenha mais vínculo algum com o falecido, provando a ausência de culpa na separação, poderá ser chamado à sucessão. Atente-se que, na realidade, o cônjuge sobrevivente deve provar que a "culpa" na separação de fato, que a causa pela interposição da ação de separação litigiosa, relacionada ao grave descumprimento de obrigação matrimonial, decorreu de ato proveniente do de cujus.
Por se abordar situação de fato difícil de ser provada, uma vez que o cônjuge sobrevivente se deterá a acusar o falecido como culpado, enquanto que os demais herdeiros persistirão na prova da inocência do de cujus com o fim de excluí-lo da herança, essa norma disposta no art. 1.830 vem sendo criticada por alguns doutrinadores, por temerem que a imputação de um responsável culpável pela separação de fato venha a estacionar o inventário por tempo incerto, principalmente nos casos em que houver companheira em união estável sobrevivente, posto que a contenda entre esta e o cônjuge sobrevivente será inacabável.
Além de a separação de fato por período superior a dois anos revelar que o cônjuge sobrevivente não participava mais da vida do outro, não havia cooperação na formação do patrimônio, e justamente, por tais argumentos, não faria jus à herança.
Mário Luiz Delgado [04] (2005 – P.427-428) explicita que a perquirição da culpa demandaria uma discussão post mortem sobre intimidades conjugais e conflitos familiares que na maioria das vezes são inexplicáveis pelos próprios cônjuges e que acarretam conseqüências inalcançáveis, quão mais dificultoso seria a verificação de culpa na ausência de um deles.
Parece implausível defender a possibilidade do sobrevivente invocar a culpa do falecido, salvo se tal fato já tiver sido alegado e comprovado em data anterior à abertura da sucessão. Entenda-se, quando a culpa do de cujus já estiver comprovada através de processo judicial de separação litigiosa principiado quando ainda em vida, no qual o juiz se convença da culpa do falecido apenas com as provas já acostadas aos autos antes do falecimento, parece possível a inclusão do cônjuge sobrevivente na linha sucessória.
Frise-se que o vocábulo culpa, empregado no dispositivo, apresenta interpretação em sentido lato, de culpa stricto sensu ou de dolo, de modo a abranger quaisquer atos ou omissões que importem grave violação dos deveres matrimoniais e tornem insuportável a vida em comum. Todavia, se a convivência se tornou impossível em razão do falecido não mais nutrir amor pelo outro cônjuge, a doutrina majoritária entende que não se admite alegação de culpa.
Se os cônjuges estiverem separados de fato há mais de dois anos e a alegação da culpa de um dos cônjuges não tiver sido discutida antes da abertura da sucessão, por não ser dado ao de cujus a oportunidade de defesa, não poderia ser aceitável. Logo, presume-se que a culpa deve ser exposta em separação judicial litigiosa interrompida com a morte de um dos cônjuges, somente cabendo ao sobrevivente discutir seu chamamento à herança se já comprovada sua ausência de culpa na ação anterior interposta e, simultaneamente, acuse o cônjuge falecido.
Rolf Madaleno [05]entende que o supérstite deveria ter seu direito sucessório excluído com a simples separação de fato independente de lapso temporal ou argüição de culpa. Essa posição, apesar de sustentável juridicamente, não exprimiria, entretanto, o valor da justiça nos casos de abandono de lar por um dos cônjuges, ou de decretação de separação de fato pelo Poder Judiciário dos cônjuges em virtude de tentativa de morte ou injúria grave, de casais unidos, por exemplo, há mais de vinte anos, e que estão separados de fato há mais de dois anos. Seria absurdo defender que uma mulher que conviveu por anos com seu esposo e contribuiu para a dilatação do patrimônio do casal, em sendo abandonada por seu marido não tivesse direito à herança do falecido, por ser legalmente apartada da sucessão.
Fato ainda mais complexo se verifica quando o cônjuge falecido, ao tempo da separação de fato inferior a dois anos, mantivesse união estável com outra pessoa, ou mesmo em período superior ao determinado lapso temporal, fosse provada a culpa do falecido pela separação de fato, casos em que o direito sucessório do cônjuge sobrevivente não estaria afastado. Ocorreria uma concorrência do companheiro em união estável com o cônjuge sobrevivente, em razão de aparente antagonismo entre o art. 1.830 e o art. 1.790, inciso IV.
Para solucionar tal polêmica legal, a doutrina sugere que, para compatibilizar os artigos supramencionados, a participação do companheiro deve se restringir aos bens adquiridos na constância da união estável, enquanto que o direito sucessório do cônjuge apenas alcançará os bens anteriores constituídos antes da data de reconhecimento judicial da união estável. De certo, a companheira em união estável ainda enfrentará a necessidade de comprovação da existência da união e o tempo exato de seu início para pleitear seus direitos sucessórios.
O legislador poderia ter evitado discussões profundas a respeito da perquirição da culpa, visto que o dispositivo 1.830, em sua totalidade, por estender a imputação da culpa também para a seara do direito sucessório, será foco de discórdias entre cônjuge sobrevivente, companheiro em união estável, descendentes e ascendentes, passando a responsabilidade da solução dos conflitos para o campo jurisprudencial.
Ainda relativo ao direito sucessório, o legislador trata de incapacidades específicas para determinado testamento, ou melhor, falta de legitimação para adquirir por testamento, ao proibir, no art. 1.801, III, do Código Civil vigente, a nomeação na condição de herdeiro ou legatário do concubino, homem ou mulher, de testador casado, salvo se o falecido, subentenda-se, ao tempo da feitura do testamento, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos, não tendo sido a ruptura ocasionada por culpa sua.
Norma esta inaceitável, a começar pela nomenclatura ao tratar como iguais o companheiro em união estável e o concubino sob a forma escrita deste último, visto que pessoa que se encontra separada de fato ou judicialmente, sendo irrelevante a contagem temporal, pode unir-se em união estável, não se tratando de concubinato, segundo dispõe o art. 1.723, §1º do Código Civil.
O dispositivo permite a constituição de união estável de pessoa casada, desde que separada judicialmente ou de fato, sem determinar prazo de duração da união para ser considerada estável, nem o tempo da separação de fato que justificaria a cessação dos deveres matrimoniais ou o momento a partir de quando se permitiria à pessoa casada assumir uma união estável, de modo a diferenciá-la do instituto do concubinato. Apenas fala-se em união duradoura, pública e contínua, sem precisar o tempo necessário para sua caracterização. Para a doutrina, a estabilidade da união depende mais dos aspectos afetivos do que do período de relacionamento.
Conclui-se que o art. 1.801, III, traz, na verdade, três hipóteses: a) a proibição de nomeação de concubino como legatário ou herdeiro por testador casado; b) a proibição de nomeação de companheiro em união estável de testador separado de fato da consorte há menos de cinco anos na condição de herdeiro ou legatário do testador; c) a admissão de nomeação de companheiro em união estável de testador separado de fato, sem culpa sua, há mais de cinco anos.
Pasmem, pois a norma incisivamente veda regra geral, nomear o companheiro em união estável na qualidade de herdeiro ou legatário, ressalvada a hipótese de ser provada a ausência de culpa do testador casado pela separação de fato, separação esta que deve existir, demonstradamente, há, pelo menos, cinco anos.
Quão infeliz se posicionou o legislador ao menosprezar a companheira em união estável. Tal relação familiar, segundo a doutrina e a jurisprudência, não é reconhecida de acordo com o lapso temporal, bastando, tão-somente, ser configurada a convivência duradoura, pública e contínua com o objetivo de constituir família.
De certo, determinadas normas encravadas no ordenamento jurídico incitam à interpretação de que o período de separação de fato necessário que possibilita o indivíduo ainda casado a constituir uma união estável com outra pessoa é de no mínimo dois anos. A Constituição Federal vigente institui o prazo de dois anos como marco temporal para iniciar a contagem de possibilidade de rompimento do vínculo conjugal pela separação fática, conforme dispõe seu art. 226, §6º [06].
Não é oportuno olvidar os empecilhos na apuração da existência de união estável diante da ausência de prazo preestabelecido em lei que determine seu início, até porque o prazo mínimo poderia suscitar situações de injustiça e enriquecimento ilícito em benefício de quem registrou patrimônio em seu nome e rescindisse a relação antes de completar o prazo de constatação de união estável, de modo a prejudicar o outro convivente. Excede demasiadamente o legislador ao determinar que, para efeito de doação e deixa testamentária em favor do concubino (ou companheiro em união estável), o tempo de separação de fato é de cinco anos, conforme dispõe os arts. 1.642, V e 1.801, III, do Código Civil de 2002. Deve-se lembrar, todavia, que prazo determinado que demarque o início do núcleo familiar – união estável, em verdade, não há. [07]
Desfavorecer a pessoa a quem o falecido detinha o maior dos sentimentos e com quem passou seus últimos momentos de felicidade é extremamente injusto. Vedar a possibilidade do companheiro em união estável transferir patrimônio seu a sua companheira, seja como herdeira ou legatária, é desprestígio intolerável. A exigência de delimitação temporal para caracterizar o início do amor, do companheirismo, da cumplicidade é desumana, além de complicado de ser comprovado o início da verdadeira família de fato, da entidade familiar. Ou há quem concorde em estabelecer prazo para tornar válido um casamento, não satisfazendo a manifestação volitiva dos nubentes e as formalidades exigidas para sua celebração? Devem-se desatrelar os princípios religiosos e pessoais das linhas da lei, aplicando-se o princípio isonômico às entidades familiares, que se supõem justas e equânimes, não importando sua origem, e o preceito constitucional de proteção à família.
Em sensato entender, o cônjuge sobrevivente não teria direitos sucessórios plenos, em se reconhecendo a existência de união estável, independente de sua duração. No tocante aos bens adquiridos no decorrer da união estável, justo que sejam transferidos para companheira. No que pertine aos bens anteriores ao início da união estável, estes devem pertencer ao cônjuge sobrevivente. Em havendo testamento, todavia, acredito que deva ser respeitada a vontade do testador, sempre em atenção ao entendimento supra explicitado, posto que em prazo inferior a cinco anos, o cônjuge poderia até mesmo ter entrado com o divórcio, ou provar em cláusula testamentária que os bens em comum com o cônjuge sobrevivente já tinham, faticamente, sido divididos. Perante as prováveis discussões possíveis, o legislador preferiu encaminhá-las ao âmbito jurisprudencial a enfrentá-las.
Notas
01 Art. 1.830 – Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.
02 GARCIA. Marco Túlio. União estável e concubinato no novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família. n. 20 - out./nov./2003, p. 32-44.
03 RODRIGUES, Silvio; Direito Civil. Direito das Sucessões. v.7. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 77.
04 DELGADO, Mário Luiz. Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente. Uma proposta de harmonização do sistema. Questões controvertidas no direito de família e das sucessões. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves (coord.). São Paulo: Método, 2005, p. 427-428.
05 MADALENO. Rolf. O novo direito sucessório brasileiro. Disponível em: www.gontijo-familia.adv.br>. Acesso em: 11 jun. 2005.
06 Art. 226, § 6º - o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
07 Concubinato – Alimentos - União estável - Prazo mínimo de convivência de cinco anos - Lei n. 8.971/91- Derrogação, no mínimo em parte, quando não total, pela Lei n. 9.278/96.
A Lei n. 8.971/94 fixou prazo "há mais de cinco anos" para fins de assistência mútua alimentar entre concubinos, mas a Lei n. 9.278/96, disciplinando norma constitucional, omitiu o prazo e consignou "convivência duradoura, pública e contínua", deixando, em termos, ao critério do julgador estabelecer o prazo e condições para reconhecimento da união estável, o que significa dar ao juiz a responsabilidade enorme de apreciar subjetivamente, no contexto da prova, o que seja convivência duradoura, pública e contínua. A Justiça carioca, em sua maioria, considerou ideal o prazo de cinco anos, "consagrado pela consciência jurídica nacional e por diversos textos legais", como critério para a configuração de convivência duradoura, salvo casos peculiares. Já os juízes especializados de São Paulo passaram a considerar o prazo mínimo de dois anos de união estável, a fim de que um dos companheiros possa requerer benefícios. Não há critérios científicos ou consuetudinários que dê legitimidade absoluta a uma ou outra das soluções. Uma união entre homem e mulher pode durar dez ou mais anos e não ser, necessariamente, estável (texto constitucional), como pode durar menos que cinco anos e atender a este requisito. Qualquer prazo mínimo não deve ser imposto em termos absolutos. Importa, isto sim, a existência de certa continuidade e um entrosamento subjetivo para distingui-la de uma união passageira, descomprometida. Fixar um prazo cronológico mínimo para aferir a existência de uma união é correr o risco de detectá-lo onde não existe ou, o que é pior, negá-la onde de fato se afigura. (Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 2ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 9.812159-0, Relator Desembargador Vanderlei Romer. Data de julgamento – 28.12.1999, p.9).